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Recheio 2024 Institucional

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

12.ª hora

Ó voz melodiosa! Ó canto límpido e cristalino da mais pura ave do paraíso! Quem seria possuidora de tão divinais acordes? O caso não era para menos. Tó, no seu quotidiano, não estava, de todo, acostumado a escutar meigas e ternas palavras. No camião do lixo, no “Toutaver”, a malta só usava de porra para cima. Tozinho!! Jamais houvera ouvido esse diminutivo. Seria a boa Fada Boa Zona? Seria, porventura, sua mãe, num raro devaneio maternal? Ou então, quiçá, a Micas que, num rasgo de sandice, havia metamorfoseado o seu âmago?

Mesmo no tratamento no trabalho, em que andava a limpar a estrumeira dos outros, poucos ou nenhumas eram as palavras de gratidão. Bem pelo contrário. Desde o recorrente “estudasses!” ao “porco do car@lho!”, o mais vulgar era o munícipe achar que ele e os camaradas eram, simplesmente, uns mamões que faziam tudo por não vergar a mola, uns chupistas “que vivem à gosma, à nossa custa”. Era o que ouvia não raras vezes desses ingratos, muitos deles a viverem à custa de subsídios (qu’imbeija, minha Nossa Senhora da Vandoma! Deve ser tão bom viver com um garfo espetado nas costas…)! E havia-os até de fina classe. Na política, então, não faltavam.

E, por falar nisso, deixemos um pouco a saga do jovem guardador dos dejetos de outrem e reflitamos um pouco sobre o impacto que a mesma tem causado no burgo. Para não me alongar muito, passo a transcrever, na íntegra, uma missiva que me chegou de um dos mais conhecidos politiqueiros da região:

cariçimo autore das binte e cuatro oras:

foi com munto praser e de leite que aconpanhei a sua nobela até há nôna ora mumento em que boça escelenssia desatoue a ovrar sobre um campo que consserteza des conhece: a pulitica purtuençe!

Naõ irrarei se falare em nome do meu partido cuando digo que o cenhôr é uma ao tentica nolidade! Boçê num perceve nada de pulitica! Anda praí a de negrir a noça image como se nós foçe um vando de inguenorantes e currutos!

Eu vem sei que a gente somos munto imbejados, mas da parte que me toca perocuro comprir o meu deber da milhore maneira que me é possibel. Alem domais, sou um home impuluto e intergo. Nada do que boçês, de tratores, digais me pode avalar!

Teinho dito!”

Ilustração: Marisa Pina

Palavras para quê? É um político português e só usa os outros quando precisa. Um berdadeiro, como o tipo da Pasta Medicinal Couto*. Todavia, não pensem que, na minha modesta opinião, todos são assim. Não! Isso não é verdade! Na verdade, não são todos, mas sim quase todos. Um amigo jurou-me a pés juntos que na Junta de Campanhã há um gajo em condições*. Ou havia. Parece que já foi corrido. De toda a forma, esse amigo já me disse isso há bastante tempo. Enfim, também não vem ao caso. Nem sei por que diabo fui buscar esta história. Ninguém quer saber disso.

O nosso Tó não era dos piores. Vivendo numa sociedade consumista e hiper-materialista, não possuía uma formação moral que lhe permitisse renegar à corrupção (facto, aliás, similar a tantos outros). Ensinado a safar-se conforme pudesse, não via qualquer pudor em esquartejar o parceiro. Assim crescera e assim vivia. Daí que estranhasse sobremaneira alguém lhe ter dirigido a palavra naqueles termos. Tanta suavidade, tanto carinho.

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Tinha até medo de abrir os olhos. Antes de enfrentar aquela nova espécie humana, encarou o rádio-despertador* e compreendeu que, perante aquela voz de quebranto, havia novamente adormecido. Era quase meio-dia! Uma hora havia passado! Se calhar, a maravilhosa pessoa já lá não se encontrava. Mas não. Sentiu a sua respiração branda e leve a ecoar-lhe nos ouvidos. Percebeu também que estava a sonhar. Que estava a sonhar e que estava a escrever umas bacoradas sobre esse sonho em que, por acaso, ele era presidente da Câmara do Porto. E depois tinha sonhado que escrevia um livro e que recebera uma carta de um político real. E esse político tivera o troco que merecia.

(a ver se me desenrasco…)

A voz, de novo, encheu todo o quarto:

— Tozinho! Querido Tozinho! Estás acordado? Não me digas que te esqueceste do que vai hoje acontecer!

As doze badaladas soaram na igreja onde, na semana seguinte, teria de ajudar o padre a rezar a missa. Tó voltou-se repentinamente e, boquiaberto, siderado, balbuciou:

– Não é possível! Que fazes tu aqui?

Notas para putos e gajos de má memória:
Pasta Medicinal Couto: referência a um conhecido spot televisivo da época, em que um homem fazia habilidades, segurando uma cadeira nos dentes, um “artista português”. A Couto foi obrigada a mudar, mais tarde, de nome, passando a designar-se “pasta dentrífica Couto”.
História do político honesto na Junta de Campanhã: pura ficção.
Rádio-despertador: aparelho muito comum nos anos 90. Uma espécie de paralelo volumoso que se punha em cima da mesinha de cabeceira. Dava música e despertava. Sucessor do relógio-despertador e antecessor do telemóvel.

… Por decisão do autor, a VIVA! irá interromper, a partir desta quarta-feira, 24 de janeiro, a publicação da novela “24 Horas”.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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