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“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

8.ª hora

O senhor padre Jeremias-eu-cagava-e-tu-comias (era assim que, normalmente, a malta a ele se dirigia. Com muito respeito), em polvorosa, arrastava-se em direção a Tó Morcego. Quando os dois se encontraram, o sacerdote começou a pregar uma lengalenga impercetível para o nosso herói. Não percebendo bem o que estava a passar-se, e depois de confirmar que não se tratava de um exorcismo, Tó pediu algum tempo e um local mais privado para conversarem, dado que, entretanto, uma imensa mole humana se havia aglomerado a fim de ver a batalha de Armagedom dos tempos modernos. Foi com indignação que viram os dois protagonistas encaminharem-se para dentro da igreja. Sempre a mesma treta, a cortarem a ganza ao pessoal.

O santo homem quis saber os caminhos que havia calcorreado e quais os motivos que tinham levado aquela ovelhinha a tresmalhar-se do rebanho. Tó Morcego ganhou fôlego, olhou para o relógio (eram sete e cinco) e principiou a contar a atribulada história da sua vida:

“Nasci, no Cerco, numa humilde casinha. Éramos pobres, mas muito honrados. O meu pai, homem taciturno e trabalhador, era desempregado de profissão*, embora nas horas livres se dedicasse à mui nobre arte do furto, o que, por si só, garantia uma vidinha boa para toda a família. Certo é que, de quando em vez, ouvia amiúde minha mãe comentar para a Laura e para a Micas, minhas irmãs mais velhas, qualquer coisa como “o vosso pai foi passar umas férias ao Brasil, a uma das suas mais belas praias: Custóias. Por isso, meninas, temos que trabalhar!”.

E, no dia seguinte, lá saíam elas, todas elegantes, torneando-se nos seus apertados e curtos vestidos de couro preto. Que bonitas que ficavam! E, no fim do dia, voltavam cansadas e cheias de sacas da Baratucha*, a abarrotar de iguarias. Como dizia, éramos uma família humilde, mas muito honrada.”

Ilustração: Marisa Pina

O senhor abade escutava, abismado, aquele torrencial descritivo. Desconhecia que alguns dos seus paroquianos vivessem em tão pecaminosa vida. Tó Morcego bebeu um gole da Super Bock, que trouxera no bolso, para aclarar as goelas, e continuou:

“Os anos iam passando, rápidos como as pole-positions do Miguel Shumacar* e dei por mim a frequentar a instrução primária na magnífica Escola de S. Roque da Lameira. Tinha seis anos e já não era propriamente uma criança. Comecei a reparar nos indivíduos do sexo feminino, aqueles a que designamos de gaijas. Notava também que as miúdas da minha turma, todas com o dobro da minha idade (atenção! Isto é uma crítica social referente à taxa de insucesso escolar nos meios pobres) me olhavam de maneira bastante suspeita. No entanto, por serem ainda muito chavalas, não lhes passava cartão. Galava, sim, as garinas que frequentavam a Secundária. Aquilo é que eram umas touras!

No meu sétimo aniversário, decidi sair à noite com a malta da passa e pagar um copo ao Pérola Negra*. Lá engatei uma quarentona, uma brasa docaraças, e passei a minha primeira noite fora de casa. Depois dessa, muitas se seguiram.

Com doze anos, era considerado um homem de sucesso. Tinha já conseguido passar para a segunda classe, já soletrava fluentemente e conseguia fazer contas de somar com uma calculadora que uma velhinha, inadvertidamente, havia esquecido na mesa do café. Para além das mulheres, meu hobby preferido, tinha outra paixão: o futebol. E era tão bom jogador que, por alturas dos onze anos, fui convidado para jogar na equipa de seniores do glorioso Futebol Clube do Porto. Logicamente que não aceitei, porque o meu sonho era ir para Itália*. Continuava, porém, a fazer uma perninha no Cerco F. C., onde estava para as miúdas como o Maradona estava para os traficantes de droga. Aos quinze anos, era considerado um ser demiurgo, transcendental e começaram a chamar-me Tó Morcego. Não havia mulher que não me desejasse. Adorava, particularmente, vê-las lutar por uns ténues minutos com a minha adorável pessoa. Chegavam, inclusivamente, a puxar de naifas e a matarem-se umas às outras. Nada me divertia mais do que isso. Por fim, lá dava o beijo da vitória à vencedora que, na maioria das vezes, extasiada com a emoção, acabava também por expirar, tendo assim uma morte feliz. Enfim, se fui escolhido para fazer as mulheres felizes, que posso fazer contra o meu fado?

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Com 20 anos, concluí o meu curso na Faculdade da Primária do Cerco e, satisfeito com tamanha proeza, o meu pai ofereceu-me uma embalagem de preservativos, novinha em folha, e explicou-me para o que serviam. Experimentei, gostei e passei sempre a usar. É tal qual como eles dizem na televisão! E se resulta! Agora, eu uso-os e o meu pai também! *

Prontos! E depois de ter sido o primeiro da família a conseguir tão elevado patamar, no que se refere a habilitações literárias, o meu velhote arranjou-me, por intermédio de uns amigos lá do Partido, um lugar nos Serviços de Higiene e Limpeza, onde desempenho, há cerca de um ano, funções de Técnico Sanitário.”

Com isto tudo, o sacerdote havia-se esquecido que tinha missa. O relógio soava as oito da manhã. Lá fora, os crentes começavam a ficar impacientes. Finalmente, conseguiu articular algumas palavras e disse para o nosso Tó:

– Meu filho: eu perdoo-te, mas tens que me prometer uma coisa!

Notas para putos e malta de má memória
Baratucha – Juntamente com a Villares, eram os “hipermercados” dos portuenses: as duas lojas (hoje seriam uma espécie de mini-mercado) ficavam em lados opostos ao mercado do Bolhão.
Desempregado de profissão – Não havia, recordo, na altura, rendimento mínimo…
Michael Shumacher – piloto alemão sete vezes campeão do mundo de Fórmula 1, entre 1994 e 2004.
Pérola Negra – Boîte de referência da noite do Porto, ali, junto à Praça da República, mas isso vocês já estão fartinhos de saber…
Sonho de ir para Itália – O grande objetivo dos futeboleiros dos anos 90 era serem transferidos para um clube Italiano. Era aí que se ganhavam grandes fortunas a dar pontapés na bola.
Agora, eu uso-os e o meu pai também!” – referência a um spot publicitário televisivo da época, muito conhecido. Já não me lembro é qual… Se alguém se lembrar, agradeço!

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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