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“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

4.ª hora

Sem nada pronunciar, inseriu, tremulamente, a chave na ignição da fragonete. São, cumprindo, na perfeição, o seu papel de mulher submissa, deixava-lhe toda a iniciativa. Geralmente, Tó Morcego fazia o serviço mesmo ali, no aparcamento da Romano’s. Mas, naquela noite, pelos vistos o pessoal todo tivera a mesma ideia. O local mais se assemelhava a uma feira popular, tais os barulhos inusitados dos amortecedores dos veículos vizinhos e os ruídos guturais e exclamativos que deles provinham.

Não que o nosso Tó não tivesse lata para dar a sua quequinha em público, mas aquela gaja era especial. Valia o esforço de procurar um local mais apropriado. Por isso, sintonizou o rádio numa emissora altamente e engatou a marcha-atrás. Iam dar uma volta lá para os lados do Monte de Santa Justa*.

Foi a custo que a carrinha escalou a íngreme subida que dava ao cimo da elevação mas, uma vez no topo, Tó Morcego deu por bem empregados os quinze minutos que houvera desperdiçado. O panorama era espetacular e, para além deles, não havia vivalma. Só a ritmada e excitante música dos últimos ralos. O cenário estava montado. Competia aos atores atuar. E, nesse capítulo, o nosso protagonista não se fazia rogado. Num ápice, calças, casacos e camisas começaram a voar por toda a fragonete.

A terra preparava-se para tremer, os sinos para tocar em loucas badaladas e alguém batia no vidro traseiro… Alguém batia no vidro traseiro? Mau, parecia haver crise. A chuva não batia daquela maneira, o que queria dizer que deveria ser gente, certamente.

Ilustração: Marisa Pina

Com as mãos, Tó limpou um pouco o vidro que, previamente, havia cuidadosamente embaciado para tecer uma cortina intransponível aos possíveis mirones e deparou com uma mancha escura e de formas opulentas. A cerca de três, quatro metros, estava parado um jipe com os faróis desligados. Não havia outra hipótese: era a bófia. São, meio despida, entrou em paranoia e tentava enfiar, à pressa, a roupa. Na confusão, vestiram-se precipitadamente, não reparando sequer nas peças que enfiavam. Entretanto, a mãozinha marota do guarda continuava a bater na janela. Ouviam-se várias vozes e risos sarcásticos. Os sacanas dos moinas divertiam-se com a situação. Quando Tó saiu, com o top cor de rosa da miúda vestido, originou uma imensa gargalhada aos agentes da “autoridade”*. O nosso artista sabia estar feito num óito. Apanhado literalmente com as calças nas mãos, não possuía nem carta de condução nem quaisquer documentos da fragonete com ele. Para agravar, o veículo não estava devidamente registado, pois o Bítaro tinha-o adquirido a um sucateiro e, à custa de muito trabalho e empenho aos fins-de-semana, conseguira pô-lo a carburar. “Bigue chite! – pensou Tó Morcego – Agora é que estou mesmo feito ao bife!”.

A parada estava muito difícil e requeria uma tática perfeita. Caso contrário, o resto da noite seria passada na choça. O indivíduo fardado articulou qualquer coisa num português impercetível. Quando se movimentava dentro do apertado casaco de cabedal preto, fazia uma barulheira infernal. Tirou um bloco de apontamentos do bolso interior, molhou de saliva a ponta do lápis e começou a escrever. Pediu, primeiro os dados pessoais, ao que Tó retorquia obedientemente.

— Morcego é com um ou com dois esses? – perguntou ele, a dado momento.

— Tanto faz. Com o novo acordo, pode escrever-se das duas maneiras – respondeu, tiritando de frio. Subitamente, fez-se luz no seu reduzido cérebro. Havia uma saída. Arriscada, mas era a sua única hipótese.

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— Vossa Excelência queira desculpar, mas acabo de me lembrar de que tenho os documentos no porta-luvas. – O guarda sorriu, como que conivente e satisfeito por ter sido, finalmente, compreendido.

Abrindo a porta da carrinha, pediu a São, que fumava um nervoso cigarro, a última Dona Maria* que tinha no casaco. Esperava ardentemente que chegasse para untar o bófia. Quando lha entregou, o gajo fez uma cara azeda, mas, topando a aflição estampada no rosto de Tó, lá se deu ao trabalho de rasgar a multa que havia passado e regressou, sorumbático, para junto dos da sua laia. Azeiteiros do caraças! Anda para aí o pessoal todo a drogar-se e a roubar e estes jeitosos a surripiar os últimos cobres de um trabalhador honesto!

Com isto tudo, os ponteiros do relógio já marcavam quatro horas. Tudo tinha voltado à estaca zero. Era outra vez necessário dar a volta à São que, abalada com o sucedido, queria a toda a força voltar para a discoteca. Sem coisa-e-tal? Nem pensar! Depois de todo aquele trabalho…

Notas para putos e malta de má memória
Monte de Santa Justa: Elevação da Serra de Santa Justa onde fica a capela com o mesmo nome. Outrora, ao contrário de atualmente, em que o sítio tem mais luz do que o Estádio do Dragão, era um local ermo e onde apenas de viam os pirilampos. Daí que fosse bastante procurado para outras atividades, que não apenas as religiosas.
Dona Maria: Nota de mil escudos, hoje equivalente a 5 euros (mas, nos anos 90, ainda dava para uma farra mais ou menos), assim conhecida por ostentar a figura de D. Maria II.
O top cor de rosa do Tó e a gargalhada do moina: Piada anacrónica, só entendida porque, nesse tempo, ainda não era bem visto um gajo andar vestido de cor de rosa, sobretudo se de um top se tratasse.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

Artigos relacionados:
“24 HORAS” – 1.ª hora
“24 HORAS” – 2.ª hora
“24 HORAS” – 3.ª hora

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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