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“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

10.ª hora

O sonho do nosso herói começa, precisamente, no edifício-sede da comissão política concelhia do Partido. No meio da maior agitação, a vitória é anunciada, oficialmente, pela televisão. Os resultados já haviam sido noticiados pela Comissão Central do Partido, mas as garrafas de champanhe só nesse momento se abriram. As felicitações surgiam de todo o lado. O fax* não parava de trabalhar com mensagens de congratulações, provindas dos mais variados sectores da cidade. Era curioso que até os mais acérrimos detratores parecessem imensamente satisfeitos com a maioria absoluta de Tó Morcego.

A vitória tinha sido difícil, mas estava alcançada e, com ela, três anos de vidinha boa, sem grandes preocupações e com um salário de algumas chorudas centenas de contos*. Isso é que era vida! Bem melhor do que ser técnico sanitário! Menos preocupações, mais proveito! Tó agradecia a altura em que o seu velhote o chamara à sua presença e, tendo uma conversa de homem-para-homem, o convencera a entrar para o partido. Ainda se lembrava das suas palavras:

— Meu filho, tens que ganhar juízo. Já tens idade para saber que, nesta vida, há dois tipos de pessoas: os que chulam e os que são chulados. A qual destes grupos queres tu pertencer?

A pergunta era retórica. Tó Morcego, de imediato, optou pela primeira parte da questão. A partir daí, foi um ver-se-te-avias. A sua subida, dentro do Partido, foi astronómica. Claro que teve que passar por cima de muitos bons sentimentos, isto é, teve que tirar o tapete a inúmeros seus camaradas. Mas isso que importava? O que interessava era que ele se tinha safado. E de que maneira! Aquando das eleições para a concelhia, fez uma campanha à amaricana, não poupando os seus camaradas da lista contrária. Claro que terminava todos os seus discursos e manifestos, alegando que a causa de ambos era comum: o bem do Partido! E os pastores dos militantes acreditaram. Há cada morcão neste mundo! Bem, mas agora, naquela sala, estavam todos eles, de chapéu na mão, aguardando, obedientemente, as palavras do seu líder. De língua esticada, esperavam uma pequena oportunidade para lhe lamber as botas. Tó comprazia-se com aquele espetáculo. Adorava ser vangloriado e eles adoravam, também, essa atitude de submissão. Claro que havia os graxistas profissionais: os que engraxavam sem olhar a quem. Eram os que, servilmente, se mantinham no poder desde tempos imemoriais, graças à sua polivalência e à sua habilidade em mudar de discurso como quem muda de camisa. Esses eram, naturalmente, os que mais interessavam ao Partido, ou seja, ao município, pois colocavam os seus interesses acima dos interesses dos cidadãos, sendo, por isso, facilmente manietáveis e controláveis pelos chefões. Os honestos (o que é isso?) já, há muito tempo, haviam sido afastados das altas esferas, uma vez que eram um perigo constante para a harmonia interna, logo, elementos perturbadores de uma gestão eficiente.

Pela primeira vez, o Porto teria uma Câmara maioritária, com todos os vereadores da mesma cor. A luta, a partir daqui, ir-se-ia travar entre os potenciais candidatos aos pelouros. Tantos eram os cães que, sua excelência, o novel senhor presidente, António Bernardes da Silva (Tó Morcego, para os amigos) teria dificuldade em distribuir os ossos. Era óbvio que o Zé Pacóvio, que havia contribuído, com dinheiro do seu bolso, para os melhoramentos da sede, teria que ser contemplado. Mas depois, havia, também, o Albano Malandro, amigo de infância, seu correligionário de luta (nas bulhas da escola), que não poderia ser esquecido. E o otário do filho do João das Quintas, que tinha pastel a dar cum pau, tinha, igualmente, lugar seguro. É pá! Ia ser o caraças! Eram mais do que as mães! De toda a forma, se os pelouros não chegassem, nomeá-los-ia seus assessores*. Ora aí está uma excelente ideia! Então é ou não verdade que o presidente pode ter até 526 assessores? E, mesmo que este número não fosse suficiente, teria ainda a possibilidade de nomear assessores para os seus assessores que, por sua vez, poderiam também ser assessorados! Todos eles, claro está, muito bem pagos, dado que o dinheiro vinha do bolso dos eleitores! “Tó Morcego: és um rato dos diabos!” – exclamou o senhor presidente para os seus botões.

Ilustração: Marisa Pina

No momento em que se preparava para fazer o discurso da vitória, perante a sala apinhada de condiscípulos e fotógrafos, uma voz irrompeu no quarto, arrebatando Tó Morcego aos seus sonhos:

— Ó meu estapor! Tu não acordas? Já são dez horas!

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Quem assim falava era a Micas, sua irmã mais velha. Tó Morcego não esteve com contemplações:

— Minha grande filha da CENSURADO, vai para o CENSURADO! Não vês que ainda agora me deitei?

E virou-se para o outro lado, procurando a sintonia exata, que lhe permitisse continuar o sonho.

Notas para putos e malta de má memória
Fax: Aparelho absolutamente milagroso, que despareceu tão depressa como apareceu, que fazia um texto aparecer misteriosamente num outro aparelho, à distância.
Centenas de contos: O conto equivalia a mil escudos, antes da entrada em vigor do euro. Era uma pipa de massa, nos anos 90.
Assessor: Só para relembrar que se escreve tudo com “esses”, para desilusão dos muitos acessores que ainda andam hoje por aí.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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