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“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

11.ª hora

Maldita Micas, que o arrebatou ao melhor sonho que já tivera! Fama, dinheiro, veneração, tudo lhe era dado.

Tó Morcego fechava os olhos e aguardava, desesperadamente, voltar para os braços de Morfeu. Mas o sono tardava em chegar. Mal-humorado, tateou o interior da gaveta da mesinha de cabeceira e procurou um cigarro esquecido. Quando, finalmente, o encontrou, acendeu um fósforo e, à sua luminosidade, constatou que já passavam quinze minutos das dez da manhã. Lá fora, a algazarra dos madrugadores de domingo impedia-o de dormir. Ele há gente mesmo mal-educada! Os filhos da aleivosa não respeitavam quem desejava descansar após uma noite tremendamente agitada. Mas a sua vingança não se faria esperar. Iam ter, seguramente, o que mereciam!

O cigarro ia diminuindo à medida que as cinzas se avolumavam no chão. Não havia cinzeiro à mão e não havia pachorra para o ir buscar. Paciência! As irmãs, depois, que fizessem a limpeza, pois, afinal de contas, precisavam de ter alguma coisa para ocupar o tempo. As mulheres é que têm sorte. Não trabalham e ficam em casa a dar à língua com as vizinhas, sem fazer nada.

Ilustração: Marisa Pina

O nosso protagonista começava a impacientar-se. Queria ver como terminava aquele divinal sonho. Como diz o Bowie, “Ai cude biking and yu cude bi mai queen… jaste for uane dei”. Todos temos a possibilidade de, no reino do imaginário, dar largas à imaginação e à criatividade e dominar o mundo, quanto mais não seja, por fugazes minutos. Tó descobriu uma nova faceta na sua obscura personalidade: a de líder de massas.

Um carneiro, dois carneiros, três carneiros, quatro carneiros, cinco carneiros, seis carneiros… Bolas! Não havia maneira de adormecer!

Foi nesse momento que lhe apareceu a Fada Boa Zona, sua eterna protetora e, dando-lhe com a sua varinha de condão na cabeça, tirou Tó Morcego daquela agonia, enviando-o para o reino do onírico.

Antes de recomeçar a sonhar, o nosso herói não se esqueceu de agradecer a boa ação (e o galo na cabeça) à boa da Fada Boa Zona. Então, sim, procurou a onda que lhe devolvesse as imagens de alta definição da presidência da Câmara do Porto.

O tempo tinha passado e já estava refastelado no seu cadeirão presidencial, no seu magnífico gabinete. Tudo estava faustosamente decorado, pois no que toca ao supremo representante da região, não havia que olhar a gastos. À sua volta, encontrava-se a restante vereação. Era chegada a altura de aprovar o plano de atividade e orçamento do mandato que, há dois meses, tinha começado. Como havia prometido aos seus pastores, isto é, eleitores, tudo estava a acontecer a tempo e horas. Tinha olhado rapidamente para o volumoso documento e chegado à brilhante conclusão de que se tratava do mesmo plano do ano anterior, com uma ou duas exceções. Melhor. Assim, não precisava de perder tempo a lê-lo e podia, imediatamente, assinar. Ao fundo, porém, estava um vereador estúpido a mandar leis sobre não-sei-que-parágrafo-da-página-tantas-do-capítulo-não-sei-quantos. A intervenção do presidente foi pronta e eficaz. Voltou-se para um dos seus assessores e segredou:

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— Olha lá, ó Zé do Pipo, vê lá se convences o homem a estar calado!

Nesse momento, foi decretada uma pausa para o café. Hora e meia depois, a reunião reiniciava-se. O vereador de há pouco, completamente controlado, já não colocava quaisquer obstáculos. Antes pelo contrário, levantava-se de pronto para votar afirmativamente todas as propostas da presidência.

Findo mais um árduo dia de trabalho, depois do almoço, Tó Morcego ia a entrar na sua limusine, quando um conhecido empresário o interpelou. Queria qualquer coisa sobre um prédio que estava a construir, em frente a uma escola. Segundo parecia, as associações de pais queriam agir judicialmente contra ele, só porque o referido prédio estragava a estética da zona e estava prevista a instalação de uma discoteca e de uma casa de tias. O pobre do homem lamentava-se e chorava. Havia investido muito dinheiro naquela empreitada que, diga-se de passagem, só viria a beneficiar o concelho e os munícipes. O senhor presidente descansou o bondoso homem e garantiu que o bem das populações iria ser salvaguardado. O santo empreiteiro, reconhecido por tanta compreensão e magnificência, estendeu-lhe a mão, que continha um cheque de um valor avultado. É bom ser presidente…. Despediu-se e entrou no automóvel. Todavia, quando fechou a porta, uma voz penetrou, novamente, no sonho:

— Tozinho, acorda! Já são onze horas! Lembra-te que hoje é um dia muito importante para ti!

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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