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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Os Andrades

Parte 4

Quando o destino parecia traçado e a sua sina de diletante cada vez mais concreta, bateram-lhe à porta do consultório. E, com o caraças, era ela! Eduarda pedia ajuda para a filhota, que estava de molho. Foi imediatamente. Nada de especial com a pirralha. Que ficasse descansada e que procurasse desanuviar. Convidou-a para um fino. Aceitou. Houve léria até tarde, mas nada de molhar a sopa. Aquilo era coisa séria. Só o facto de ela ser casada o deixava lixado da mona.

Uns dias depois, teve visita do marido de Eduarda. Um frique abrutalhado e de mau aspeto. Sentiu algum caçago, é preciso que se diga, mas o trambolho só lhe queria dizer que estivesse à vontade, que ela era só sua amante e que não queria nada com ela. Que não se ralava em levar com os pés.

Apesar de tudo, eram boas notícias. O caminho estava livre para o romance. Que foi crescendo e crescendo. Os dois mandavam grande cenário. Tinham nascido um para o outro. Carlos até batia mal com tanta felicidade. Eduarda andava num sino. Eram o casal perfeito e rapidamente toda a cidade falava deles como o par mais romântico de sempre. Deixavam-se fotografar para a imprensa da socialite e até o JN fez reportagem com muita letra sobre os dois. Como pasta não lhe faltava, Carlos comprou um apartamento à maneira no centro. Anda-me, bib’ó luxo!, disse ela, que até revirou os olhos com tanto mimo.

João estava feliz pelo amigo, mas sentia-se um pouco só, agora que tinha perdido a companhia. Eram unha na carne, mas desde que escorregara na calçada, Carlos vivia apenas para a tipa. Que, está certo, era de fazer parar o trânsito, mas não se deixa assim um amigo na mão, c’os diabos! Para arejar a cornadura, decidiu ir ao Sarau do Trindade. Ia ser seca, mas era melhor do que ficar alapado em casa sem fazer nenhum, a coçar os tomates. Foi lá, no intervalo do espetáculo, que conheceu o senhor Barcelos que, vindo do Brasil, lhe entregou um cofre com uma chave e pediu que o entregasse ao amigo Carlos. Ou então à irmã. Que devia ser engano, replicou, que Carlos era filho único, menino da mamã. Mas o senhor Barcelos contou que a irmã era a Eduarda e que dentro da caixinha estavam papéis que explicavam tudo.

João não resistiu. Saiu imediatamente e abriu o cofre. Estava lá tudo, preto no branco. Carlos e Eduarda eram irmãos, filhos de Pedro e de Maria. Ele tinha ficado com o pai quando a mãe se pirou com o italiano, mas com ela levou a miúda! Eduarda! Não havia dúvidas. Aliás, pensando bem, os dois eram farinha do mesmo saco, completamente diferentes dos demais. Destacavam-se pela beleza, pela postura. Pareciam irmãos. E eram…

Correu para o apartamento onde se encontravam os dois. Chamou o amigo à portaria e não esteve com delongas nem se armou em fiteiro. Contou tudinho, tintim por tintim e terminou:

– Agora amanhai-bos!

Abananado, Carlos puxou de um cigarro que, como todos os outros, era pensativo e taciturno, e nem pio deu. Regressou ao recuado e meteu-se na cama. Eduarda acordou e perguntou o que tinha acontecido.

– Nada, volta a chonar, respondeu Carlos. No dia seguinte, lhe diria.

– Perdi o sono, Carlinhos…

Carlos sabia o que significava ser tratado pelo diminutivo. Era código para fazerem o amor. Uma última vez, o pincel haveria de ser molhado. Perdido por um, perdido por cem, pensou. E, num ápice, passou ao ato.

Bem à moda do Porto, na manhã do dia seguinte, toda a Baixa já sabia e comentava o escândalo. João não teve culpa. Só contou ao barbeiro. Mas pediu segredo. O barbeiro também não teve culpa, pois igualmente segredo pediu quando contou ao cliente seguinte. E por aí adiante.

Eduarda pôs-se na alheta e nunca mais ninguém lhe voltou a botar a vistinha em cima. Afonso de Andrade não aguentou a vergonha. Deu-lhe o derradeiro chilique e quinou. Carlos meteu-se no comboio e começou um longo inter-rail por essa Europa fora.

– É grupe! Tás a mangar comigo! A sério! Num acredito! És mesmo tu, Carlos?

Era mesmo ele. Com mais 10 anos no lombo, mas com a mesma fronha de sempre. Parecia que os anos não passavam pelo amigo. Enquanto isso, ele, João, estava bem mais quota, a penca adunca no rosto magro e comprido.

– Que estás aqui a fazer, mano? Nem avisas nem o caraças…

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Que estava só de passagem para tratar de uns negócios da família, que depressa voltaria à estranja. Tinha um estrugidinho em Londres. Que não queria deixar arrefecer.

– Baim’á loja, meu bacôco! Estás na mesma. Vamos tomar um copo. Festejar o teu regresso. Pelos bons velhos tempos, ó murcom.

Foram à Brasileira, a Sá da Bandeira. O cimbalino sempre do melhor. Carlos saboreou. Saudade de um café assim. Deviam ter muito para contar um ao outro. Uma década é tótil de tempo. Mas o patois não surgia. Eram perfeitos estranhos sem nada para contar. Falaram do tempo. Que era um griso do caneco em Londres, que no Indústria, agora, era só quengas, dizia o outro. Enfim, os dois a darem água sem caneco e visivelmente incomodados, a olhar incessantemente para o relógio.

– Bom, tenho de ir andando, disse Carlos.

– Eu também, confirmou João.

– A gente vê-se…

– Pois…

Um abraço silencioso disse mais, em 30 segundos, do que a meia hora interminável de conversa. E abriram o coração.

– Falhámos, amigo…

– Falhámos, sim. Podia ter sido diferente…

– Carlos, meu tretas, deixa-te de choradinhos e faz-te à vida, homem! – João recompunha-se e recuperava o estilo.

– Foi bom ver-te. Fica bem. Tenho de ir, está a sair o metro das seis menos um quarto.

Carlos correu e João ficou a vê-lo afastar-se. Tinha pinta o rapaz. Era um Andrade. Um gajo do Porto alevanta-se sempre, com o caraças.

FIM

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Os Andrades – Parte 1
Os Andrades – Parte 2
Os Andrades – Parte 3

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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