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Os clássicos contados à Moda do Porto

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Os Andrades

Parte 3

Carlos foi crescendo com muito sol e, mal ganhou força nas gâmbias, Afonso pô-lo nas escolinhas da Constituição. Quando fez dez anos, fez uma viagem a Inglaterra e foi com o avô à terra dos cámones, por onde se demoraram por dois meses. Haveria de entrar na escola quinze dias depois de as aulas terem começado, mas mais importante do que encornar os rios e as estações era ver a realidade ao vivo e a cores. E nada melhor do que ir ver uma final da Taça a Wembley, ouvir uns poéticos palavrões em Anfield Road, misturar-se por entre os hooligans do United. Isso é que era educar um rapaz, caraças. Mas não se pense que Afonso era baldas com o puto. Bem pelo contrário. Metia-o no ninho bem cedinho e acordava-o às seis da matina. Mesmo que o briol apertasse, não havia desculpa. O Carlinhos depressa perdeu o direito de ser chamado pelo diminutivo e Carlos passou a ser apenas.

Por vezes, o bô passava-se. Como naquela noite em que houve festarola na casa da aldeia. Tudo a bombar até às tantas e ele despejado para o quarto. Mesmo o Jordãozinho, aquele puto mete-nojo, a quem na escola todos chamavam amarelinho dos peidos, ficou. A armar-se em carapau de corrida, a gregar poesias e rimas tiradas do cu c’um gancho, que o céu está plúmbeo ou minha avó qu’é torta. Que bontade de lhe enfiar umas lamparinas nas bentas… Mas o abô não ia curtir. Ou melhor, até ia, mas ia fingir que não. A murcelada ficaria para depois.

Jordãozinho brilhou nessa noite de gala lá na terrinha. Dezasseis estrofes de alexandrinos, inteirinhas, bufadas de um fôlego! Foi lindo. Toda a gente bateu palmas ao paridinho até ficar com as manápulas a doer. A mãezinha, orgulhosa, rezava terços de enfiada, agradecendo ao divino e jurando que o menino haveria de ser sempre assim, atinado, certinho e bom português.

Os anos foram passando, numa prolepse impetuosa. Eis que Carlos de Andrade faz o curso em Coimbra, forma-se doutor e ganha nova viagem de tirocínio aos países avançados, com óbvio especial destaque pelas Inglaterras. Quando regressa, monta consultório nos Aliados, tudo à grande e à francesa, mas doentes para atender, nicles. Aliás, nem o moço se maça muito com isso. Aproveita é para a sostrice, tornando-se macho bem conhecido e cobiçado pelo mulherio. Vai que não não vai, e porque, parece, ficava bem ter uma amante casada, envolve-se com a Condessa Rosmaninho, mas o estrugido não chega a aquecer, para desilusão da moça, um bom pedaço de mau caminho.

Mas o Doutor Carlos não atava nem desatava. João, colega de Coimbra, também emigrado para a Embíqueta, entre copos e paibas, por entre o denso nevoeiro da pista de dança do Indústria, não ajudava à missa. Os dois combinavam altos projetos, esquemas da alta, mas tudo se transformava em pó. Esta inconsistência começava a ser conhecida no meio e os amigos até já diziam que o Dr. Carlos sofria de mal sem cura: diletantismo agudo, seja lá o que isso quer dizer.

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Mas, um dia, haveria de ficar paneleiro dos olhos. Sem apelo nem agravo. Viu a tal. Mulher misteriosa, presa nova no pedaço. Disseram que era casada, que estava com um brasuca, ou melhor, com um retornado do Brasil. Carlos não desarmou. Soube o nome da deusa: Eduarda. E não descansou enquanto não a conheceu.

Era costume a malta reunir-se nos locais que estavam a dar. Mas não a encontrou no Sarau do Rivoli nem no jantar do Hotel da Batalha. Nas corridas de automóvel da Boavista muito menos. Só gentalha, mulheres insonsas, sem qualquer interesse. De Eduarda nem cheiro. Uma noite, no Indústria, vislumbrou uma silhueta que só podia ser ela. Deu corda aos bitorinos, mas não foi a tempo. Ela tinha-se sumido algures pela Foz. Desesperado, Carlos incumbiu o amigo Dâmaso de ir ao jornal pôr um anúncio nos classificados. A ver se alguém sabia do paradeiro dela. Mas, em vez disso, o badameco do caga-na-saquinha pôs notícia nos classificados, sim, mas a dar grande tanga, a pô-lo a ele, Dr. Carlos de Andrade como um otário faminto de peso a procurar “touro lindo e gostoso para cobrição imediata”. Tinha saído melhor do que a encomenda o Dâmasosinho. Foi ao pasquim reclamar, oferecer milho ao diretor, ainda lhe sacudiu o pó ao casaco, mas nada de especial. Depois, procurou o “amigo”, que havia de enfardar das boas.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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