
Sermão do Padre Tone aos Cámones da Ribeira
Capítulo 4
Fez uma pausa no discurso. Uma pausa ensaiada, daquelas que um bom orador sabe fazer, quando domina o seu público. Palmas, muitas palmas. A plateia estava conquistada. Ninguém pensava em dar de frosques. Todos coladinhos ao sermão. Os compromissos, se os havia, iam todos no Batalha. Tone pigarreou para aclarar a voz, abriu o chuço para se proteger da brasa e, sem endrominações, encorrilhou a testa e prosseguiu. Adivinhava-se mudança de discurso. Entrou de chancas.
Se vos falei das vantagens, irei, agora, pôr-vos ao corrente das azeiteirices e sacanices dos cámones. Daqueles a quem só nos apetece dizer “andor, violeta”. Mas que, infelizmente, vão ficando por aí a arrastar o nalgueiro para mal dos nossos pecados. Primeiramente, os cámones são bicho sem escrúpulos, que se comem uns aos outros. E não me refiro apenas aos que abafam a palhinha, que são muitos. Toda a gente sabe que não olham a meios para atingir os seus fins. Veja-se o caso dos hostéis, por exemplo. Há uns anos alguém pensava que iria ter que ir para o olho da rua para que na sua casa nascesse um hostel? Não é esta uma calamidade que nos afeta a todos nós, tripeiros? Quantos de nós se viram privados do seu lar, porque estes cámones, só porque têm graveto, tentaram o nosso povo com o vil metal? E, agora, para onde vamos? Para Gaia? Toda a gente sabe que bale mais uma rua no Porto c’agaia toda, carago! Para Rio Tinto, terra de betão e do Rocha? Ou pior: para Balongo?…
Os cámones comem tudo, tudinho. Levantam o testo e rapam o fundo ao tacho. E, para sustentar o peixe graúdo, é preciso muito alimento. Quanto maior o cámone, mais cámones tem de comer. E se não houver cámones à mão, corremos o risco de nos comerem a nós, tripeiros! Eles metem-se nos negócios, na política, metem o bedelho em tudo. Alguns estão aí bem perto, disfarçados de bons tripeiros, mas são falsos. É meter-lhes um açaime na boca e fechá-los a sete aloquetes. E que não temamos em arriar a giga se for necessário. É dar-lhes um facho de porrada naquelas bentas. Pô-los à brocha até ficarem feitos num óito. Um cámone bom é um cámone totalmente abafadinho dos olhos. E estaindes todos cegos se não compreenderdes o que vos digo. Fazende como o apóstolo Paulinho Santos, que, como obrou o arcanjo do demo, Gabriel Alves, “não deixou João Vieira Pinto penetrar”. Se não, já fosteis!
Capítulo 5
Descendo ao particular, direi, agora, cámones, o que tenho contra alguns de vós. E, começando pelos que falam a nossa língua e, quando lhes convém, dizem ser nossos compatriotas, cito os mais estaporados, aqueles que se fartam de roncar e de tentar aproveitar-se de quem passa o dia a vergar a mola. Sim, refiro-me aos Mouros, essa gente marca anzol que se passeia por aí, alardeando grandeza e muito pastel e que, se formos a ver melhor, anda para aí aos caídos, com uma mão à frente e outra atrás. É vê-los, cheios de salamaleques, de cu tremido. Parecem uns lordes, mas andam sempre no cravanço, a fazer fosquinhas e com muita falta de ar. É que aquilo, lá no Sul, anda tudo parado. Andam sempre de gesso. Mesmo assim, quem não os conhece bem, acaba por comprá-los. Haverá ser mais falso? Roncam como javardos, mas só sobrevivem graças ao trabalho dos outros. É fugir dessa gente. Mouros? Nem com molho de francesinha!
Também geograficamente à nossa beira, mas igualmente cámones a manter afastados, são os espanhóis. São muitos. E, se excetuarmos os galegos e os catalães, ainda sobram muito milhões. Não são flor que se cheire. Ao longo da história não faltam exemplos das tramoias engendradas por esses gajos. Sempre nos tentaram lixar. Fizeram-se inúmeras ocasiões nossos amigos, com discurso meloso, mas sempre com o objetivo de nos tramar, com “F” maiúsculo. Mas os piores, meus filhos, são os da atualidade. Eles estão aí! Além dos que botam os cascos só para laurear a pevide, há os que já cá estão há muito tempo e que, sem sabermos, nos controlam. Vende Santa Catarina, por exemplo. Sabendes que quase todas as lojas são deles? Qualquer diz, põem-nos a comer tripas com gaspacho e a dar uma chinca a francesinhas com tortilhas. Estes são os cámones mais perigosos, já que são de gancho. E de olhão. Se deixarmos, deitam-nos o garfo e depenam-nos com as suas galegadas!
Dizia eu que os espanhóis dormem todos os dias de galochas. Mas o que dizer, então, dos alemães? Povo esperto como um alho, sempre disposto a entrar de chancas e a encher o fole? Não têm noção da sua pequenez. A história, a tradição que caracteriza os grandes povos, nada tem que ver com estes tipos. Mas, meu bom São Jorge Nuno, na sua ignorância, julgam-se os donos do mundo! E, mal começam a desatinar, dão início a uma guerra. Só estão bem quando veem tudo à traulitada. Isto não é povo de bem. Mas o pior de tudo é que nos ganham no futebol. Quem não se lembra do massacre de Munique, em que nos enfeitaram sem apelo nem agravo? E nós, de olhos esbugalhados, a ver os ciclistas passar… Por isso vos digo: é enfrascá-los bem enfrascados e mandá-los de volta para a terrinha deles, mais a sua língua que mais parece que estão sempre a tirar das goelas uma bisga de 15 dias!
E vêm estes artistas armados ao pingarelho, lá com o seu banco central, a querer controlar os nossos bolsos, a mandar bitaites sobre as nossas poupanças! Tendes muito a ver com isso, tendes! Era quem vos fosse e não vos pagasse, isso é que era, germânicos duma figa!
Temos de acreditar que é possível pô-los a milhas. Como profetizou o douto beato João Pinto, “estivemos à beira do abismo, mas soubemos dar um passo em frente”!
Não poderia terminar este capítulo sobre as sacanices sem vos falar daqueles que, bem, até tenho cagufes em referir. As suas peneiras, a sua arrogância deixam-me que nem posso. É dos maricanos, claro, de que estou a falar. Dessa raça maldita, que mete o bedelho em tudo, que faz e desfaz, que mexe no que tá queto, que pensa que são os moinas do mundo! Pois, cá para mim, tenho que se acham que são os polícias do planeta, eu, tenho a certeza, se pudesse, calcava um polícia! E não deve haver coisa mais desagradável para um portuense do que calcar um polícia.
São falsos como Judas, fazem-se passar por amigalhaços só para nos lixar, só se metem quando lhes cheira. São uns santinhos. Dizem que é para o bem-estar de todos. Qual quê? É para se aproveitarem, para nos chuparem até ao tutano. É isso que os maricanos fazem todos os dias, se os deixarmos. Esta cambada só canta de galo porque nos encolhemos. Mas, quando crescemos para eles, não lhes cabe um feijão! E já levaram coça velha da canalha! A tática para correr com estes morcões já o doutor da igreja Jaime Pacheco sabia. É “jogar ao ataque, fechadinhos lá atrás”.
Capítulo 6
Dito isto, Padre Tone deu-se um pouco à sostrice. O sol já entrava na linha do horizonte, sinal de que a tarde estava a terminar. Era tanto o entusiasmo que se esquecera de lanchar. E a larica apertava. Virou-se para um dos alemães que assistia ao sermão e disse-lhe: “Ó Adolfo – para ele, todos os germânicos eram Adolfos -, vai-me ali à tasca e traz-me duas bifanas, que estou cá com uma traça. E um traçadinho!”. Mudou-se para uma das mesas das várias esplanadas que se confundiam numa só. Tudo cheio de cámones. A Ribeira era uma infindável Babel onde todas as línguas estranhas se faziam ouvir: espanhol, maricano, lisboeta, alemão, italiano, etc. Enquanto esperava pelos morfos, achou por bem concluir o sermão, ciente de que, como calculava, o mal não estava no molho, mas sim na francesinha: “ego sum bonnus molhus. Sum molhus do caragus”, reconheceu. Era um molho do carago, sem dúvida. O problema residia naquela malta, que sobrevivia tão apressada que não se apercebia de que não tinha tempo para viver. Havia que insistir na francesinha. No dia seguinte, voltaria a pregar para os cámones. Na Ribeira, na Rua das Flores ou até mesmo na Afurada. Logo se veria.
“Para concluir, caros cámones, eu bos digo: num querendes ser mais que nós. Num abusaindes da nossa generosidade, porque, lembrainde-bos: o Porto é o centro do Uniberso! E acabou. Amanhã, há mais. Sou quem sabes, Maria Alice”, abreviou, quando se apercebeu que o psstfáchavor chegava com as bifanas.
– Ó Adolfo, arrota aí. E num te esqueças de deixar uma boa gorja ao rapaz.
… FIM.
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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor