PUB
Recheio 2024 Institucional

Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Sermão do Padre Tone aos Cámones da Ribeira

Capítulo 1

“Hostel”, anunciava a placa dourada, acabadinha de pregar por cima do batente. Uma pena. Durante cinco anos servira perfeitamente de residência paroquial. Ali, na rua do Infante, a dois passos da igreja de São Nicolau. Antes disso, muitos foram os párocos a dela fazerem o seu ninho para que a nobre função de condutor de almas e de homens fosse como manda a sapatilha. Mas até a dona Miquinhas, beata dos sete costados, se rendera ao poder dos euros e das modas. Casinha ali plantada, em sítio nobre, não podia continuar alugada por dez reis de mel coado, o senhor abade que tivesse paciência e que a comunidade paroquiana metesse rolhas, que ela também era filha de Deus, sim senhora, e se via o maralhal todo a dizer “desanda” aos chulos dos inquilinos, não era o senhor Padre Tone que iria amparar-lhe a loja, era o que mais faltava!

Foi ao paleio com a senhora advogada, inteirou-se das leis e saiu do escritório com minuta da carta já redigida nas manápulas, prontinha a enviar nos correios, com registo e aviso de receção.

Nesse dia, o último na rua do Infante, Tone Vieira, pároco de São Nicolau, pouco sornou. Quase não bateu de choco. Acordou maldisposto, com um tao daqueles de que nem é bom falar. De nada adiantou mandar uns bitaites ao episcopado para que intercedesse e que tentasse demover Miquinhas dos seus intentos. Não estavam para aí virados nem queriam pagamento aos bochechos. Aliás, o diabo da jarreta propunha-se a pagar boa compensação ao senhor Bispo para que do despejo não adviessem complicações e papeladas de demora do assunto. Levou com Mateus, duzentos e troca o passo e Lucas ou minha avó que é torta, em resposta esclarecedora do líder espiritual da Imbíqueta. E para onde iria? Já havia, de certeza, alguma solução. Mas não, não havia. “Bais ficáre na Pensom do Cubo uns tempos e entretanto haberemos de dar um jeito nisso. Bai em paz e num apoquentes essa carola, meu filho”.

Na Pensom do Cubo?! Até sentiu um nó nas tripas. Fosga-se, mas aquilo é paradeiro de tudo o que é gente de má fama, senhor Bispo! Ainda bem, retorquiu o outro. “Mais almas poderás trazer para o teu rebanho. Ou num és tu um ganda Pastor?”. Ficou a matutar se o caga-tacos não estaria a metaforizar com a palavra “pastor” que, no Porto, em certos ambientes, mais não é do que um perfeito morcão. Não. Não devia ser. Quer-se dizer… Despediu-se e saiu. Por ali, não havia nada a fazer.

Ao bater a porta, olhou novamente para a placa. O Porto tinha mais um hostel, essa é que era essa. Foi para onde um padre tem de ir quando busca consolação espiritual, sobretudo quando está com um toco do tamanho dos Clérigos: a igreja. A sua bela igreja, onde, de resto, estava aprazada missa para as dez da matina. E, com o caraças, já estava atrasado. Fez o que qualquer bom pároco faria: deu corda aos bitorinos, acelerou nos calcantes, botou opa e batina às três pancadas e deixou a consolação espiritual para outro dia.

Preparava-se para botar faladura. O Sermão ia ser tótil, inflamado de paixão e de portismo. Mas, c’os diabos, onde estavam os fiéis? Tone arregalou os faróis, esfregou a ramela, mas as bistinhas não mudavam. O seu público eram três almas. A contar, claro, com o Godofredo Biscas, que ninguém sabia se estava a curar a cardina da noite anterior ou a iniciar a do presente. E tinha sido assim, na véspera. E na véspera da véspera. As ovelhas andavam tresmalhadas, essa é que era essa. Quer-se dizer, pensou alto com os seus botões (podia, de facto, pensar alto, porque, além do Biscas, que roncava como um camúrsio, as outras duas almas eram a Alicinha, que era mouca, e o seu jeco Feroz, o velho Chihuahua. Que também era surdo). Quer-se dizer, repetiu, já sem botar sentido a quem estava ou não estava, anda um gajo a dar a litrada, a dar o cu e cinco tostões para trazer malta à igreja… e esta gente só pensa em baldar-se. Deteve-se na primeira parte da expressão. Os cinco tostões ainda vá que não vá. Agora o resto, Deus me livre e guarde. Ainda bem que eram surdos. Deu voltas e voltas à mona. O caso era bicudo. Ali, a dois passos, na Ribeira, àquela hora, era tanto maralhal, que se atropelavam uns aos outros. E era assim todo o santo dia. À memória, acorreram-lhe palavras sagradas de S. Mateus Rosé:

“Vos estis molhus francesinhus”

PUBLICIDADE - CONTINUE A LEITURA A SEGUIR

Carago!, é isso mesmo. “Vós sendes o molho da francesinha”! Foram estas as palavras do Santo Papa Jorge Nuno, quando se dirigiu aos portadores da divina mensagem portista. A francesinha não estava boa. E se assim era, o defeito ou era do molho ou da própria francesinha. Tone era um dos arautos da palavra, o molho. Os fiéis os que precisavam de ser convertidos, as francesinhas. Era tão óbvio. E tão claro o que havia a fazer: se o molho estava fora de prazo, deita-se fora; se a francesinha estava estragada, é só ir buscar o apanhador e lixo com ela. Padre Tone, bom português, acreditava piamente que o problema era dos outros. Vai daí, decidiu seguir o exemplo de São Jorge Nuno que, em época de crise terrível de fé azul e branca, decidiu sair das Antas e pescar almas para o Douro.

Para o rio é que num bou, que não sei nadar, cogitou Tone. Mas bou lá para a beirinha. Bou para a Ribeira pregar aos cámones, carago!

Alguém falou, da última fila da igreja. Parecia a voz do Biscas:

– Olhe que eu oubi a parte do senhor abade dar o cu só por cinco tostões.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

PUBLICIDADE

PUB
Prémio Literatura Infantil Pingo Doce