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Os clássicos contados à Moda do Porto

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Sermão do Padre Tone aos Cámones da Ribeira

Capítulo 2

Olhou para o cebola. Eram onze menos um quarto. Ou, como se diz no estrangeiro, um quarto para as onze. Saiu, resoluto, da igreja e encaminhou-se para a Ribeira. Pelo caminho, passou na confeitaria da Alfândega, deitou abaixo dois napoleões, outras tantas natinhas e emborcou dois finos. Para dar coragem. E estava quase, quase a chegar à praça, quando o Bítaro Tasqueiro o convidou a entrar e a provar uns bolinhos de bacalhau que até os anjos do céu e-os-comiam, palavras dele. Era verdade, confirmou. As iscas também estavam qualquer coisa. Mas a seco é que não podiam ir. Foi mais um fininho. Ou dois. E a coragem aumentou.

Já era quase meio-dia. Melhor almoçar primeiro, que começava a ficar com fome. O sermão não perdia pela espera. Enquanto morfava, faria uns rabiscos no papel, uns improvisos para que nada falhasse. E encornou aquilo tudo. Estes cámones bão ber com quanto molho se faz uma francesinha!

Encheu bem a mula. Queria ir forte para a Ribeira. Durante os morfos, pensou na abordagem. Iria dividir o sermão em partes lógicas: as gabarolices, em geral, primeiro; depois, as gabarolices, em particular, pormenorizando as virtudes de alguns cámones. A seguir, falaria das sacanices, em geral e, por fim, escolheria meia-dúzia de sacanices, em particular, dos cámones mais reles. Para acabar, uma conclusão de estalo, para que não mais esquecessem o nome de Padre Tone.

E chegou ao Largo do Cubo. A verdade é que por ali praticamente só paravam cámones. Poucos ou nenhum compreendiam português, quanto mais a língua nativa, o PORTOguês. Melhor, ouviriam e comeriam calados. E se falassem, não entenderia um chavelho, o que, bem vistas as coisas, era grande vantagem. Aos menes haveria de lhes demonstrar que o molho está em perfeitas condições para a francesinha. Depois, está certo que os portuenses são a nata da nata, o supremo povo à face da terra. Mas também os cámones têm direito à salvação. Ao fim e ao cabo, são Jorge Nuno, na sua homilia dominical aos fiéis do Dragão, não lhes asseverou que “todo o gaijo que é gaijo – e isso inclui as gaijas – debe ser conduzido das trebas à claridade, seija ele de que clube for”? Há quem afiance que o santo homem terá atalhado, baixinho, “menos quem for do Benfica”, mas isso ainda está por provar. Logo, todos os seres merecem sair da ignorância e levar com o raio do molho em condições e são tóteis os motivos para isso.

São os cámones que nos trazem o guito. São muitos, de diferente aspeto. Alguns têm uma fronha que até assusta, mas que importa? Lá no fundo, bem no fundo, são como nós. Só que têm mais pastel e como vêm de férias, não estão para apertos de cinto e largam graveto à grande. A malta pode bater-lhes o coro à vontade, que nem desconfiam. Haverá maior qualidade do que essa? Murcões que são comidos duas e três vezes e botam sempre aquele sorriso estúpido de lorpa dos lábios?

O doutor da igreja Jaime Pacheco, nos seus cadernos sagrados, escreveu, um dia, que “jogar à defesa pode ser uma faca de dois legumes”. Ora estes cámones vêm para cá descontraidinhos da Silva, a laurear a pevide com as carteiras recheadas a alardear confiança, a pedi-las. Será, pois, pecado dar-lhes o palmanço? Não estão eles mesmo a rogar que os inocentes e imberbes moçoilos da Ribeira lhas levem emprestadas? Nem dão por ela. São tantas as notas de cinquenta e de cem, que é mais uma, menos uma. Ou duas. Ou três, não vem ao caso. E matam a fome de muito desgraçadinho com tamanha generosidade.

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Finalmente, é de elogiar aquele ar tão devoto com que nos escutam, os acenos afirmativos a menear o capacete, a expressão totó de aprovação, mesmo quando os indígenas os estão a mandar à fava. E vão lá para a terrinha deles, todos contentes. Recomendam o Porto a todos. E votam em nós em tudo quanto é concurso de melhor destino europeu ou mundial. E regressam. Regressam sempre para serem novamente comidos de cebolada.

Como se não bastasse, apesar desta aparente bonomia, algures, por baixo daquela parolice toda, os bimbos até são inteligentes. Sabem que devem ter cuidado na aproximação com as gentes do Sul. São cautelosos. Quanto mais longe dos Mouros, melhor. Trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Haverá maior qualidade do que esta? Os cámones são bicho sagrado, abençoado pela própria mão de São Jorge Nuno, até mesmo porque, quando andam por cá, como salientava o sábio Beato João Pinto, o coração destes cámones só tem uma cor: o azul e branco.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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