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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Auto do Rabelo de Bila Noba de Gaia

Parte 3

E eis que, vindo de mil ramboias, se aproxima o Vendedor da Feira de Custóias. Nos pés umas alpercatas que lhe alindavam as belas patas. Cu das calças coçado de pano bem falseado e um crocodilo na camisola, sinal de quem não anda à gola, mas com etiqueta da Lacoste de Angola. Vidrinhos escuros da Carrera, ao estilo de acelera, e no pulso um Rolex a dar uma imagem pr’á frentex. Trazia uma mala onde nada era à pala. Bem pelo contrário: tudo para fazer a folha a qualquer otário. Apregoava telemóveis do Japão e relógios da Suíça. Também vendia roupa em primeira mão e até boa chouriça.

Preparava o Diabo a cantilena, quando o Vendedor lhe estragou a cena:

-Mano, estás precisado de nova indumentária. Essa fatiota está boa é para a solitária. Olha-me aqui esta rabona! Ficava a matar até à ramona. E larga-me essa esfregona, que dá ares de quem trabalha na zona. Compra esta bengala, que trago na minha mala, e ficas logo distinto. Era da avó do João Pinto!

Pobre Diabo, coitado, foi bem enfeitado. Comprou tudo o que havia a comprar e ainda bichinhas de rabear, porque o de Custóias, com desenvoltura, o convenceu de que eram boas para a soltura. Levou ainda para a patroa uns postais de Lisboua e um conjunto de toilette para a higiene do capacete. Já feito num cangalho, com vontade de ferrar o galho, juntou toda a sua coragem para fazer frente a tanta vadiagem:

-Com a fajardice vais parar, mais música não me vais dar! Cuidas que andei na Escola do Cadela? Por acaso tenho escrito lorpa na lapela? Tu mentes, mentes e mentes, mas só aqui entrarás quando as galinhas tiverem dentes.

“Tá bem, ó abelha”, pensou o Anjo, já com a pulga atrás da orelha. A coisa estava preta e no seu guarda-vestidos não queria aquela cruzeta. Decidiu interferir para uma exceção não abrir:

-Infelizmente, Belzebu, quem escolhe os passageiros não és tu. São os atos do defunto que decidem este assunto. Ora com tantas tramoias para onde há de embarcar o de Custóias? Vai vender para a moirama, que terá lugar cativo em Alfama.

Com os fusíveis em queima devido a tal freima, deitava o Diabo os bofes pela canseira e pediu ao amigo um chá de cidreira. Juntou o adoçante e assumiu de novo postura dominante. Já no cais havia embarcadiços outra vez. E agora eram três. Bradou no ar a bengala enquanto bebia um pingo, questionando-se se pertencera mesmo à avó do João Pinto. Não queria pensar na bola, que lhe dava a volta à tola, mas o trio que assomava os estádios frequentava. Era um árbitro e seus assistentes e prometiam ser bons clientes. Vinha a rasgar folheto aquela equipa de preto. Apito, walkie-talkie para comunicar, bandeirinha e até espuma de barbear, mas traziam igualmente um cheque altamente, assinado na parte traseira por um tal de Vieira. Sentenciou Satanás, sem intenções más:

-Ao Rabelo, ao Rabelo, venham lá, que há espaço para todos, ó se há! Sois juízes de sameira e árbitros de primeira. Da justiça fazeis vossas linhas, apitando sem espinhas. Portanto, dizei-me se o livre arbítrio é, de facto, tê-los no sítio? E a que acontecimento torpe se deve a vossa morte?

Uma maçada, lamuriaram-se, fora a queda de uma bancada. Foi tal a traulitada que nem deram por nada. Estavam a dar ao badalo, em pleno intervalo, quando no exterior do estádio, o público ouvira pela rádio que o trio de pombinhos era novo caso “quinhentinhos”. Invadiram a superior e numa descascadela maior puseram-se a gritar e, como loucos, a pinchar. O balneário não aguentou e sobre os desgraçados desabou. O árbitro apitou e, por fim, acrescentou:

-A única coisa que nos pesa na consciência é, até coro, alguma flatulência, mas é a idade, haja paciência. Tudo o resto é dor de coto de palrador maroto. Ou de mariola que nada percebe de bola e que não sabe fechar a matraca. É morrinha fraca. Nós somos os justos da Praça. Só me contradirá quem estiver com grande nassa.

De argumentos à míngua, perguntou o Juomnhe, sem papas na língua:

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-E esse cheque, meu ganda queque? Recebeste-o de algum aveque?

O árbitro corou. E o Anjo atalhou:

-São pagamento por tão reles procedimento. Por atitudes de porcaria, uma verdadeira chungaria. Sois uns chupistas, uns oportunistas, que vos vendeis por dez reis de mel coado em qualquer mercado. Já me estais a meter verdete. Ide, imediatamente, para Lisboua à velocidade de foguete! Castigo por tanto mal há de ser na capital.

A tarde ia avançada e a noite já se avizinhava. Os pescadores recolhiam o anzol, porque começava a ficar briol. De convés cheio de almas, o Diabo estava nas calmas com tantos intrujões caídos do céu aos trambolhões. Mas a barca não ia ao fundo. Cabia ainda mais meio mundo! Alto e para o baile no Rabelo, que se aproxima mais um caramelo! Melhor: em fila, pelo carreiro, vinham mais quatro galos para o capoeiro. “Isto hoje está a dar!”, disse o Demo para seu par. Deitou fora a bengala e retomou o tridente. Não se podia fazer sala com toda aquela gente. A avó do João Pinto que se encharcasse em absinto.

Que estranho quarteto. O visual era seleto, mas a vaidade haviam mandado para o teto. Junto às barcas especaram. Eram quatro e esperaram. Dois mancebos e duas donzelas. Topava-se que era gente cinco estrelas, mas não deviam ser condes ou reis, pois vinham carregados de papéis. Eram testes e fichas de avaliação, alguns deles a carecer de correção. Mala cheia e carteira vazia, apresentavam-se sem azia. Apenas com pesaroso desgosto por não permanecerem no seu posto. É que havia exames a preparar… trabalhos de casa para entregar. Valha São Jorge Nuno, o que dizer agora ao aluno? E ao encarregado de educação, pois então? Iam acusá-los de manguelice ou, quiçá, de sostrice. Está mais do que visto que estes senhores eram da escola professores. Do primário, secundário ou universitário? Todos mandavam igual cenário. Mas era tamanha a tensão, que morreram de depressão. Satanás meneou a pança e preparou nova aliança. Como não era nenhum urso, botou unto ao discurso:

-Ao Rabelo, ao Rabelo, compareçam e vossas mágoas terrenas esqueçam! Aqui, todo o professor nortenho tem Excelente na avaliação de desempenho! Deixem a cena das quotas para os diretores borra-botas, porque a vossa progressão está garantida sem avaliação. Na cidade de Lisboua vos darei vidinha boa, sem horário de estabelecimento e turnos não pagos de cumprimento. Acabarei com as aulas assistidas e tomarei outras medidas. Tereis alunos interessados e pelos pais sereis muito amados. E, homessa, tenho uma última grande promessa: até o Ministério da Educação não será governado por um perfeito morcão! Para de tal usufruir só para esta barca tendes de vir…

Era tentação desmedida, proposta de escacha pessegueiro. Os quatro, na ida, iam aceitar o poleiro. Mas, na volta, pensaram e outro rumo tomaram. Ser professor é uma missão que não cede à tentação e, por isso, em coro responderam “Vai mas é dar banho ao cão!”

O Anjo os recebeu. Iam direitinhos para o céu.

Na barca do paraíso ao Juomnhe puseram um guiso. Só para alertar quando o atrofiado estivesse a chegar para chagar e chatear. Embarcaram também os quatro, neste fim de teatro, com todo o conforto, pois assim são as contas à moda do Porto.

FIM

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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