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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Auto do Rabelo de Bila Noba de Gaia

Parte 1

Como tudo que é cão e gato sabe, quando batemos a bota, vamos parar ao rio Douro, que temos de passar sem abébias num dos dois rabelos que estão atracados no cais de Bila Noba de Gaia. Um deles vai em direção ao Porto e outro vai para Lisboua. Os barcos têm, cada um, o seu manda-chuva. O do Porto, um Anjo, e o de Lisboua, o Diabo e um amigalhaço.

O primeiro a chegar é um conhecido Autarca, que, descendo do seu mercedolas, enfiado no seu alto fato de mene da alta, vem acompanhado de 132 assessores, cada um deles na sua respeitável banheira de alta cilindrada. Aproxima-se do Rabelo do demo que, satisfeito, zumba para o amigo:

-Ao Rabelo, ao Rabelo, venham lá, que há espaço para todos, ó se há! – e, voltando-se para o autarca, quis deixar a sua marca – Quanta honra, sr. Presidente. Vem, então, cá com a gente?

Desculpou-se, que só estavam de passagem para lhe dar um bacalhau, no meio da viagem. E uns brindezitos de campanha, sem qualquer artimanha. Que agradeciam a amabilidade, mas seguiam para outra cidade. Sabiam fazer-se ao piso. O destino era a margem do paraíso. E não tinham tempo a perder, porque as eleições estavam aí a aparecer e, pelo povo, tinham de continuar a exercer funções e inclusivamente estreitar relações. Um sacrifício este míster de servir, algo a que só era impossível fugir com muito espírito de missão e um grande coração.

-Tou t’a bêre, tou t’a bêre… Se te estou a manjar, não queres no meu Rabelo embarcar. Mas não passaste tu a vida a pecar? Pecar é pouco! Bai m’á loja e traz o troco!

Não contava o senhor presidente com este obstáculo impertinente. Argumentou da forma que sabia e que sempre, como soía, resultava, sacando de um maço de notas (verdadeiras, era o que faltava!), bem volumoso para untar as mãos do angelical barqueiro formoso que, entretanto, também se aproximara e para o mandar para canto se preparara.

-Já vos estou a manjar, ó jeitosos. Num há crise, manhosos. Tenho massa suficiente até para subornar dirigente. Vai chover para todos os peneirentos. Ninguém vai andar aos tiros, hoje, nem que sejam quinhentos!

O Anjo tripou e ripostou:

-Que julgas tu, político de belzebu? Que quem andou sempre torto compra bilhete para o Porto? Depois de uma vida a afanar, cuidas que aqui vais embarcar? Não entrarás neste batel! Vai para o Diabo, mais o teu pastel!

Que tinha frigoríficos para oferecer, telemóveis sem limite de utilização a ceder. Férias mil no Brasil para quem quisesse. Meninas bem jeitosas para o que desse e viesse. Ou meninos, se fosse o caso, que era tolerante e compreendia, a bem da democracia. Que todas as taxas e coimas que aplicara eram por causa da crise que estourara. Que todo o favor e suborno eram para ajudar quem não valia um corno. Que sempre arranjara trabalho a quem não valia um cara…go. Tudo o autarca invocou, porque Lisboua não era destino apetecido para quem sempre no Porto reinou. Falou, falou, falou. Mas sempre para a central, pois ninguém lhe ligou. E, numa imensa fila indiana, presidente e assessores tomaram o seu lugar na barca com destino à moirama.

Mas o dia estava concorrido e era de mânfio conhecido. Todo tremelinho, outro trengo se aproximava do cais, devagarinho, mas pelo lado do Douro altaneiro. Sim, vinha de iate, o azeiteiro. Um bruto iate, por sinal, música no máximo, um basqueiral, muita gaija boua em biquíni, a lembrar um filme de Pasolini. Tinha dado o badagaio a gringo da alta. Era um paio, sem dúvida. Havia que cobrar aquela falta. Sem problema, o diabo micou logo o esquema:

-Ao Rabelo, ao Rabelo, venham lá, que há espaço para todos, ó se há! Olha-me este, com quanto luxo veio. É banqueiro e vem de papo cheio. Viva, Doutor! Posso fazer-lhe algum favor?

Tinha-se passado na função e nem tempo tinha tido para a extrema-unção. Exagerara na branca e com isso quem perdera fora a banca. Mas que se lixe, pensou. Viveu como um lorde e assim quinou: com três polidoras de esquina no leito e um paiva feito de notas do seu proveito. Nos seus tacões se colocou e para o demo tagarelou:

-Ouve lá, sabes quem eu sou, ó javardo? Põe-te a milhas ou levas um bufardo! Desanda-me a via, que não quero nada com esta enxovia.

-Desculpe lá, engenheiro. Estou habituado a gajo foleiro. Não é todos os dias que quer ir para Lisboua presa tão boua… – retorquiu o Diabo, a gozar de fininho. O outro não desarmou e atalhou de mansinho:

-Até te aboua a placa se eu te amando um carquilho! Ai isto vai dar milho! Toda a minha vida da sociedade fui o garante. Fiz gente graúda de pessoa desinteressante. Suportei campanhas com mil artimanhas. Arranjei ofeshores a escumalha sem valores. Deixei famílias sem casa e sem guito. Enfim, a todos dei um chito. E queres tu, amostra de pessoua, despachar-me para Lisboua? Vai pastar! Vai-te quilhar!

Enquanto se falava em Lisboua, o anjo assomou à proa e logo duas valentes touras, daquelas que até ficamos com ouras, tentaram com ele a sua sorte, esquecendo-se que não podiam libertar-se da lei da morte. Quando o barqueiro do Porto se apercebeu de quem era o morto, nem se deu ao trabalho e, imperial, mandou-o para a capital:

-Ao Rabelo do Porto vens tu ao cheiro, reles banqueiro? Pois se cantaste toda a vida, com fruta fresca, cavalo e bebida. Se ameaçaste, mataste e roubaste e à falência levaste gente boua… agora vai lavar a chafra e vai de requitó para Lisboua!

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Um a um, todos os passageiros do iate passaram para o Rabelo do diabinho, que ia ficando apinhadinho. Entretanto, desta vez do lado correto, mais um embarcadiço se aproximou do gueto. Vinha de Ermesinde, terra das gaijas bouas, que do Juá saem como brinde. A pé caminhava, sozinho, e com sinal de ter entornado não pouco vinho. Mal ajambrado, fraldiqueiro, desconchavado, arrieiro e com a tripa de fora. À madrinha é que não ia, de certeza, naquela figura. Mas o mais curioso naquele burro sem sela era a fálica cenoura que despontava da carcela. Contanto, até ao diabo apanhou de espanto. E o maduro queria ir para Lisboua, isso era seguro!

-Isto é casa de tias ou restaurante de dobrados, seus empatas empiriquitados?

O Diabo olhou para o amigalhaço que também não controlava o espaço. Como não queria escrever um romance, resolveu mandar o lance:

-Quem és e o que desejas, anormal? Não estarás a bater mal?

-Quem sou eu?! Ó murconhe, eu sou o Juomnhe! E, se és gajo porreiro, hás-de me esgalhar o pessegueiro! Ou então o teu amigo paneleiro.

-Mau, não te estou a micar. De que mal vieste tu a quinar?

-Dos chatos de uma queca qualquer que apanhei da tua mulher. Até me dói a cenoura só de pensar naquela toura.

-Ó homem, estou a trabalhar! Toca a marchar! Tenho este Rabelo para encher e a cabeça me vens fazer? Mas, confessa: em vida, fizeste alguma coisa que nos interessa? É que para aqui embarcar, muito deves pecar.

Tim tim por tim tim, Juomnhe a sua vida contou e até o diabo corou. Ferrou o jeco ao padeiro, ao médico e ao padreco. Ficou a dever ao carpinteiro, à peixeira e ao picheleiro. Deixou filhas e viúvas desamparadas e um rancho de amantes desconsoladas. Trabalhar nunca trabalhou, mas muitos esquemas controlou, porque era preciso dar de comer a quem tem fome e para isso é que serve um home.
O Diabo, interessado e já na alma filado, ouviu e, no final, aplaudiu:

-Com vida tão danada, deves ter essa consciência bem pesada.
O fiteiro era intrujão, mas tinha bom coração. E também bastante potência. Só não sabia o que era isso da consciência. O Anjo, que aproveitou para ler o correio, fez logout e interveio:

-Ora parece que temos morto para o Porto!

-Ó anjola, e no teu Rabelo há boa cervejola? Olha que se não tens Super Bock, eu entro em choque. Com Sagres, fico descolhoado. Prefiro ir para o Porto a nado.

Já nas horas da morte, o Diabo tentou uma última vez a sua sorte:

-Vens para aqui e apanhas tamanha cardina, que até a Sagres te endromina!

-Vai apanhar nos entrefolhos, afunda-te em molhos. Vai-te dar à babujice, à cata de bedum e à sostrice. Ponho-te a boca à Neca Rafael e faço do teu nalgueiro um pastel. Deixa-te de disparates se não torço-te os tomates. Que eu vou para a grande naçom, que é berço dos que têm coraçom.

Mas não foi. Pelo menos, não foi logo. Ficou por ali. Como ficaria um determinado político. A meter nojo. E foi o primeiro a vislumbrar novo candidato a embarcar.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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