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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Auto do Rabelo de Bila Noba de Gaia

Parte 2

-Olha, temos visita e bem foleira. Traz consigo a cagadeira!

Quem se aproximava do barqueiro era Lacerda, o picheleiro. Pelos modos como se apresentava e pela falta de etiqueta, devia ter batido a caçoleta enquanto estava a trabalhar, pois vinha de fato-macaco sem se ralar, desentupidor na mão direita e, na outra, um quitos de uma sanita. O Diabo, como é normal, recebeu-o com a cantilena habitual.

-Ao Rabelo, ao Rabelo, venham lá, que há espaço para todos, ó se há! Vens bem guarnecido. Vê-se que és homem prevenido. Queres no meu Rabelo entrar ou, porventura, só vieste aqui obrar?

-Andor violeta, mafarrico, que neste Rabelo não fico. Já basta tótil azar por o meu trabalho não poder terminar. Estava eu a comer um molete e, zás, levo com a retrete!

Tinha sido infortúnio, realmente. Não podia estar contente. A reparação da empreitada estava há muito terminada, mas como o serviço à hora era a pagar, achou que o orçamento podia aumentar. Deixou-se, então, por lá ficar para mais poder cobrar e aproveitou para o frigorífico da dona assaltar. Fez uma sandes de estalo com um presunto que era um regalo. Juntou-lhe um pouco de anho e foi para o quarto de banho. Tudo teria acabado sem maus odores se a retrete não lhe tivesse desabado nos abanadores. Juomnhe, o bacôco, quase que partia o coco a rir de tanta bacorada ouvir:

-Ó Lacerda, vens coberto de merda!

O Barqueiro do Rabelo de Lisboua decidiu acabar com paleio à toa:

-Viste que rico trabalhador me saíste? No meu remar, para finórios como tu há sempre lugar. Foste pilha-galinhas a vida inteira e ainda vens cheio de chieira? Arranjaste mal de propósito tudo o que era retrete, cano ou depósito, estragaste paredes e canos para depois voltares a consertar os danos, orçamentaste serviços que não fizeste e fingiste estar a leste! Quando o freguês encarava mal, porque o roubo era de catedral, tu só pensavas “que boa malha!”, pois, para ti, tudo ia no Batalha. Que lata, que a desonestidade não mata, mas traz consigo um aloquete onde para Lisboua tens guardado um bilhete.

Sem resposta para tão válida argumentação, o Picheleiro não se atreveu a bater o tacão. Não sem antes ouvir umas gáspeas do Juomnhe:

-Que carola tão lerda, ó Lacerda… Com essas fuças de intrujão, vais ficar bem de lampião!

Que dia movimentado! Mal o picheleiro embarcou, imenso maralhal no cais se juntou. Era fauna bem diferente aquela gente. Espanhóis, mouros e ingleses, maricanos, alemães e chineses. Tudo o que era camóne seguia o Padre Tone. Porém, como alho eram finos, pois quando se aperceberam que a morte era o seu destino, deram corda aos bitorinos. E assim ficou só o santo Tó, a rezar ave-marias e pai-nossos, enquanto da carne separava os ossos. Uma sandes de pernil, da Casa Guedes, que era baril, costeletas e coxinha de galinha, que iam ficando pelo chão, prova de que o embarcadiço era lambão. Vinha a fumar charuto, cubano, bom produto, mas que, devido ao griso ou ao vento que vinha do paraíso, quinou e se apagou. Logo o Diabo, todo lampeiro, se chegou com um isqueiro.

-Ao Rabelo, ao Rabelo, venham lá, que há espaço para todos, ó se há! Santidade, seja bem-vindo à minha zona. Permita-me que lhe acenda a barona. O raio da beata não parece ser coisa barata. Senhor padre, que rica vidinha! Vê-se que essa pança anda bem tratadinha.

Vai o Juomnhe e mete o bedelho com um bitaite que não vale um pintelho:

-Onde estão as gémeas do teu coração? Deixaste-as na Pensão? Meteste-as no hostel onde costumavas molhar o pincel? Ou agora pegas de empurrão? Eu disse-te que ia dar para o torto tanto sermão…

Andavam bem informados, os renegados. Sentiu-se de pés atados. Pôs-se a matutar para, de alguma forma, os pecados negar. Depois de muito puxar pela cachimónia, disse, sem cerimónia:

-Tinham o diabo no corpo as irmãzinhas, fui forçado a esconjurá-lo das bordinhas. À falta de melhor cutelo, tive de usar o martelo. Repito, sou inocente. Só quis salvar essa gente. O charuto seguia-se ao conduto, como convinha, quando o manjar era francesinha. Quanto a essa coisa de pegar aos empurrões, o culpado é o Godofredo Biscas com os cinco tostões.

Juomnhe caminhou para a sua beira, deu-lhe uma palmada na ceira e logo o imitou, com iguais tiques quando falou:

-E os sermões que preguei? As almas que salvei? As criancinhas que afaguei? Os finos que emborquei? Os maridos que encornei?

De preconceitos despido, Padre Tone deu-se por vencido:

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-Olha, chifrudo, deixa-me entrar, que em Lisboua hei de continuar a rezar. Por lá haverá muita quenga com desejo de deixar de ser trenga.

-Quenga? Chifrudo? Trenga? Credo, que vocabulário tão ordinário! Senhores, alguma contenção verbal não faz nenhum mal. Que ninguém se estique, pois chegou passageira chique. Acalmai a vossa voz, que incomodais senhora fina da Foz.

Quem assim falava era nova personagem que embarcava. De seu nome Brízida Teles da Cunha, mulher fina e nada grunha. Carregava dispositivos eletrónicos, sete! Dois portáteis, quatro telemóveis e um tablet. Não parava de teclar no seu novo celular, sempre preocupada com a imagem que transmitia por mensagem. Nos lábios baton encarnado, daqueles estoura-ordenado, nas orelhas duas enormes argolas, era mulher que ainda rompia meias-solas e, apesar de já entrada nos “entas”, quem com ela se metesse levava nas ventas.

O Diabo, aperaltado, deu conversa de fiado:

-Dona Brízida, mas que surpresa tamanha fineza! Para vós novo pregão reservei que, desde já, direi: “Ao Rabelo, ao Rabelo, vinde, ricos, que há desportos náuticos e o comandante é o mafarrico!”

-Ai, que a rir me desmancho. Foi rima tirada do cu c’um gancho – interferiu o Juomnhe. Mas o Diabo, sem se desmanchar, haveria de continuar:

-Dizei-me, senhora, como chegou a vossa hora?

Imediatamente, mudou de expressão a tabuleta e explicou como bateu a caçoleta. Que estava a aprender um novo truque para aplicar no facebook. Uma espantosa aplicação que transformava em estrela qualquer coirão. Imagine-se que com a app Hollywood ficava gira e boa toda a gaja rude. Não que para si fosse preciso, porque homem com siso nunca ficaria indeciso. Era para as amigas, coitadas, que da beleza andavam arredadas. O que se segue, abreviou – e fez uma pausa quando isto contou -, o tablet estourou e foi isso que a matou.

-Que informação dramática! Coisa terrível para acontecer a dama tão simpática! – Parecia inconsolável o Demo que, perante desgosto tamanho, aproveitou para assoar o ranho. – Mas vinde para este Rabelo, que eu vos deito a mão ao pelo.

Era o que faltava! Naquele barco não entrava! Uma vida inteira a fazer o bem sem olhar a quem, tantos anos a virar frangos a coxos e mancos. Namoros que arranjara e outros tantos que desarranjara, lograra casar batoques e pipas.

-Ir para Lisboua? Até me dá um nó nas tripas!, disse Brízida, de alcunha Bibi Cunha, finérrimo niquenème, com foto de perfil num bêéme.

O Barqueiro da capital achou que era hora de pôr o ponto final:

-Ó jeitosa, e os vestidos que encomendaste e não pagaste a dolorosa? Criaste falsos perfis para encetares esses ardis. E as mentiras que postavas para ver se as tuas amigas enganavas? Fazias-te de princesa, mas andavas sempre tesa. E, quando tocava a pagar, apre, que ninguém te conseguia apanhar! Já para não falar dos perfis que andavas sempre a cuscar. Perdias horas e dias a tentar realizar as tuas folias. Só por gozo pessoal estragaste muito casal. Foste alcoviteira, fizeste muita asneira, sempre a cozinhar alguma sem nobreza nenhuma. E os murais que roubaste, as palavras-passe que forjaste? Os vírus que criaste? Quando se falava em malware, eras pau para toda a colher! Não havia chuço nem proteção que desfizesse a tua intenção. Se não te dás ao respeito, caga nisso e põe ao peito.

Juomnhe deu pela diferença e apressou-se a ditar a sentença:

-P’ra Lisboua, bota e vira, vai mais uma boua e gira!

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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