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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Mano Pinto de Sousa

Capítulo II

O T2 da Afurada era muito mais pequeno do que o palacete, mas não havia outra hipótese. Tiveram que se acomodar como puderam. Também o seu estado era deplorável. E era muito escuro. Aquela casa não via a luz do sol nem um minuto por causa das torres que tinham plantado defronte do Douro.

Estavam lá há uma semana. Madalena foi a reagiu pior à mudança. Passava o tempo na sorna, sobretudo a chonar, enfiada no minúsculo quarto das traseiras. Tentou ler As 50 Sombras Mais Negras de Grey, porque o título lhe parecia adequado ao ambiente, mas não passara da página 6. Maria surripiou-lho e lia-o com interesse. Também passou a alimentar-se melhor. Pedia frequentemente cenouras e pepinos, ela que, dantes, detestava vegetais.

Embrenhada que estava na leitura, nem deu pela chegada de Telmo.

– Ah, és tu, Telmo… Estou cá com uns palpites muita maus… até me está a dar ouras… Desde que a caricatura do papá foi com a nossa senhora que estou a tripar com esta cegada toda… O papy pirou-se… e a mamy sempre enfiada no quarto…

Telmo explicou que as coisas haveriam de mudar, que o pai depressa voltaria, porque tinha bons conhecimentos e que já muita malta tinha metido uma cunha para que os governadores lisboetas esquecessem o sucedido. Maria interrompeu:

– Foi uma cena do caraças! Os mouros nem se atreveram a entrar em casa com aquele pavio!

– Sim, miúda. O teu balhote é um grande tripeiro. Fiquei a curtir o gajo. Têbe tomates, ó se têbe!

Rapidamente calou a matraca. Arrependeu-se do que dissera. Para ele, Jonas seria eternamente o único senhor daquele minúsculo apartamento de três assoalhadas. Mas estava a fraquejar. Virou-se para o retrato de Jonas Galhudo, que ornamentava a parede da sala, e benzeu-se, pedindo clemência. Maria percebeu, claro:

– Quem é esse cavalheiro, Telmo?

Engoliu em seco, gaguejou o desgraçado e acabou por dizer que era um quadro que estava em promoção no Ikea e que nunca o tinha visto mais gordo. Ela percebeu a atrapalhação e descansou-o:

– Deixa lá. Sei bem quem é esse melro. É o…

A entrada de seu Jorge interrompeu-a. Vinha visivelmente satisfeito. Anunciava que os governadores de Lisboa já tinham esquecido o incidente e que o arranjinho estava feito para perdoar Manuel Pinto de Sousa, que se tinha pirado para parte incerta, mas que deveria estar a voltar a qualquer altura.

E pumba! Manuel entrou pela sala, tirou a carapuça de guna e revelou-se, para satisfação de todos os presentes. Maria foi a mais expansiva. Fez tal chiqueiro que todos assomaram à salinha.

Madalena não cabia em si de contente. Porém, o marido não tinha vindo de vez. Precisava de voltar ao Porto tratar de uns negócios. Queria comprar um casarão na Boavista, pois não fazia sentido andar tanta gente aos encontrões numa casa tão pequena. Maria quis ir para ajudar a escolher o futuro lar. A mãe acedeu na condição de que o fiel jardineiro Telmo fosse para lhe botar os olhos. E pronto, lá foram todos pr’á gandaia, deixando, mais uma vez, Madalena sozinha, apenas com Jorge, no escurinho do apartamento da Afurada.

Não sabia a pobre mulher que é bem verdadeiro o aforismo de que mais vale só do que mal acompanhada… É que, pouco depois do pessoal ter debandado, tocaram à campainha. Quem seria? Ninguém sabia da nova morada e não esperavam qualquer visita. Só podiam ser as testemunhas de Jeová. Mandou Jorge pô-los a andar. Mas o cunhado voltou, pouco depois. Que não tinha aspeto de testemunha de Jeová. Era um velho, de longas barbas brancas.

– O Pai Natal?, perguntou Madalena.

Que também não lhe parecia, pois não trazia presentes e que era muito cedo para o Natal. Informou também que o gajo não queria despegar e insistia que queria ver a dona da casa.

– Bom, que entre… Mas é entrar e andor biolêta!, sentenciou a mulher.

Jorge trouxe-o até Madalena. Era quota, muita quota. Com umas barbas longas, desgrenhadas. Feio como um bode, mas o seu rosto pareceu-lhe familiar. Devia ser impressão. Não esteve com abébias:

– Oube lá, o caqueres? Desembucha rapidinho, que tenho a loiça por labáre.

Lá lhe explicou que era adepto do Imortal de Albufeira e que tinha vindo ao Porto ver o jogo da Taça. Ia explicar-lhe o momento de crise que o clube atravessava, mas, perante a impaciência da mulher, arrepiou discurso.

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– Já há muitos anos que queria cá vir, mas, sabe… não tinha pastel, as viagens estão caras, pela hora da morte…

– Mas o que é que tu queres de mim, carago?

– Trago uma mensagem de alguém. De alguém que conheci em Marraquexe. E que a conhece. Que a conhece muito bem, por dentro e por fora.

As feições de Madalena mudaram. De impaciente passou, num ápice, ao estado de pânico e de aflição. O velho prosseguiu:

– Esta mensagem trago-a comigo há catorze anos e sete dias… era um amigo que conheci no mercado. Um tipo decente que, por causa do tabaco, perdeu tudo. Queria, à fina força, arranjar Definitivos em Marrocos, imagine, senhora! Definitivos em Marrocos! Como se fosse possível! O que ele correu! Foi a todas as tascas, a todos os mercados. Mas nada de Definitivos. Kentuky ainda se arranjava no mercado negro, mas Definitivos… Nem cheiro! Muito sofreu aquele desgraçado! E ainda levou montes de tanga daqueles mouros…

Jorge, ao ver a coisa dar para o torto, meteu o bedelho:

– Então e esse teu amigo… conheceste-o?

– Como a mim mesmo.

– E sabes se conseguiu arranjar o tabaco que queria?

– Não. Passou a fumar, digamos, ervas aromáticas.

– Uma terceira e última pergunta: se te mostrasse uma fotografia dele, eras capaz de o reconhecer?

– Claro, como a mim mesmo.

– Consegues vê-lo aqui, nesta sala, nalgum sítio?

E, solenemente, o velho levantou a bandeira do Imortal de Albufeira e apontou-a para a fotografia de Jonas Galhudo.

Madalena desmaiou de terror. Jorge, antes de lhe seguir as pisadas, ainda conseguiu fazer mais uma pergunta:

– Adepto do Imortal, adepto do Imortal, quem és tu?

E o gajo, de bandeira em riste apontada para a foto:

– Ninguém…

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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