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Os clássicos contados à Moda do Porto

Os clássicos contados à Moda do Porto

Mano Pinto de Sousa

Capítulo I

No único canto da iluminada sala onde a luz não incidia, Madalena lia as 50 Sombras de Grey. Mas faltava-lhe a concentração. Parou numa passagem em que a ação não era grande coisa e a personagem principal se queixava de ser vítima do infortúnio. Ficou a queimar os neurónios, a recordar o seu Manel e a conversa que com ele tivera, na manhã, antes dele ir trabalhar.

-Môr, quando é que nos mudamos pr’ó Porto?

-Deixa-te de tretas, Madalena. Anda aqui pr’à beira da janela e mica-me estas bistas! Olha a Ribeira, Miragaia. Num é lindo? Até se bê a cabecinha da Torre dos Clérigos.

-Eu sei, môr, mas estamos em Gaia. Quando casámos, já lá bão 14 anos, prometestes que íamos morar no Porto… e tu bem sabes que bale mais uma rua no Porto ca’Gaia toda…

-Eu sei, eu sei. Mas põe-me essa carola a funcionar, mulher. Se vivêssemos no Porto, onde é que tínhamos um panorama como este? Só Bila Noba de Gaia tem essa bênção! E o Porto, nesta altura, não é seguro…

Madalena pousou no regaço o livro e suspirou. O Manel, como sempre, tinha razão. Lançou os faróis para as amplas portadas abertas. Não havia no mundo coisa igual. Tinha tudo para ser feliz: um gajo altamente, portuense dos verdadeiros, uma filha fantástica, uma casa do caraças. Viviam sem problemas de pastel, viajavam. Enfim, uma vida que fazia todas as suas amigas roerem-se de inveja. Mas… Todavia…

A alhada é que, antes de dar o nó com Manuel, tinha casado com outro. E não lhe adiantava um grosso convencer-se que o tinha procurado durante sete dias inteirinhos, estavam ainda na lua de mel. Durante sete dias a fio, Madalena tentou saber o paradeiro de Jonas, que saiu, numa manhã de nevoeiro, para comprar tabaco e nunca mais voltou. É verdade que os cigarros fazem mal, mas como poderiam fazer desaparecer um gajo? Assim do nada, Jonas escafedeu-se, tornou-se em pó e nunca mais se soube dele.
Tinham-se casado na Sé, uma semana antes. Bonita cerimónia. Achantraram-se dos presentes e do guito e partiram em lua de mel para Marraquexe. Até que, estavam para ir morfar o pequeno-almoço, Jonas lembrou-se que precisava de cigarros. Madalena nunca mais lhe pôs a vista em cima.

Ao sétimo dia, de consciência tranquila por tudo ter feito para o encontrar, ligou a um velho amigo, o Manel. Precisava de um ombro amigo. Verdade seja dita que os dois já sentiam uma atração. Lena era um pancadão. Manel um gringo. Rapidamente se grisou com ele e ainda o oitavo dia não tinha começado, já Jonas tinha ido de escantilhão.

O pior de tudo era levar com as bocas de Telmo a toda a hora. Telmo era o jardineiro da família. Tratava das plantas da casa há várias gerações e fazia umas tainadas com Jonas. Madalena não tinha tido tomates para o despedir e Manel nem nisso pensava, tão seguro que estava do amor de Leninha. Nos entretantos, Telmo fazia a cabeça à patroa, azucrinando-lhe a paciência com presságios de mau agouro:

-Num debias de ter casado c’o Manel, rica. Cá p’ra mim, o Jonas não bateu a caçoleta… está bibinho da silva e, um dia destes, já estou a bêr o filme, aparece por aí…

-Telmo, não sejas jagunço! Bai bêr se estou lá fora…
Mas o gajo não era de desistir:

-Ó patroa, num sei… Eu acho que num debia de ter parado de o encontrar. Berdade que andou atrás dele durante sete dias, mas, c’os diabos, mais um dia ou dois, num fazia mal nenhum, carago.

-Olha, bai jogar bilhar de bolso!

-Dona Madalena, eu tenho cá um sentimento bem sentido qu’ele vai dar c’os cornos nestas paredes. E num falta muito. Bai ser uma casa a arder! E bai dar um arraial de porrada a esse intrujom do Manel Coutinho, que eu sempre manjei que era dele que bocê gostava… eu bem via os faróis que a patroa lhe botaba…

-Telmo, já chega! O Jonas lerpou, quer tu queiras, quer não. Cá pra mim, raptaram-no para fazer tráfico de órgãos. Para mim, ele morreu naquele dia, em Marrocos, em que foi comprar definitivos. Para com essas cenas, meu, e bai regar as pelantinhas. Estou é a ficar em pulgas com a demora do Manel. Nunca mais bem. Nem mandou sms. Num é nada costume daquele filho da polícia… e os mouros andam por lá, essa peste! Olha lá, bai mandar o lance ao Jorge, a bêr se ele sabe de alguma coisa.

Telmo regressou à sua atividade. Madalena era um osso duro de roer. Completamente diferente da filha, Maria, um amor duma rapariga. Pena ser doentita, sempre a fungar, com a ranheta a escorrer pelos beiços. Não tinha culpa de ser quem era nem de ter aquela badalhoca como mãe. Devia era ser filha do Jonas, isso sim. E devia sair mais. Conhecer rapazes, conviver com amigas. Sempre metida no quarto, no facebook. Não era vida para uma jovem quase a acabar o nono ano.

Ligou o chat do telemóvel e viu que Maria estava on.line. Meteu-se à conversa:
‘hello, boneca!’
‘ola telmo. Apetecia-me algo’
‘em que posso servir-vos senhora?’
‘queria fumar um paiva. Sabes se o meu pai está em casa?’
‘o seu pai ainda está para o Porto. Só está a sua mãe em casa’
‘oh, por ela, posso queimar a casa, que nem dá por isso, sempre enfiada naquelas leituras…’
‘bom proveito, senhora’
‘obg telmo. Vocês estavam a discutir’
‘não, lol, a conversa do costume’
‘sobre o meu quota?’
‘sim, sobre o Manel…’
‘também estás sempre a dar-lhe na cabeça. Para com isso. Esquece o Jonas’
‘não consigo, senhora. Eu… eu amo-o’
‘sei, mas não vale a pena chagares a mamy. Eu sei que o Jonas está vivo’
‘como, senhora? Tendes, porventura, poderes sobrenaturais devido à vossa doença?’
‘não sejas otário, Telmo. Fiz umas pesquisas na net. Doença? Que doença? Referes-te à herpes? Como soubeste, meu estapor?’

Explicou-lhe que tinha digitado o seu nome e que lhe tinham aparecido vários perfis nas redes sociais. Houve um em especial que lhe chamou a atenção: Jonas Galhudo, 45 anos, profissional de hotelaria em Albufeira, cuja citação favorita era “Leninha forever”. De Porto e, quanto ao estado civil, “é complicado”. Telmo quis saber mais, se tinha falado com ele. Que não, que lhe tinha enviado um pedido de amizade, mas ainda não tivera resposta. Mas que Galhudo tanto podia ser apelido como nome de alentejano ou algarvio. Maria pôs-se off.line sem dar cavaco. Era hábito dela. Foi para o jardim dar mimo às suas papoulas e cogumelos.

Telmo lembrou-se da recomendação da senhora e foi falar com Jorge, irmão de Manuel Coutinho, que tinha a mania que era padreco:

-Oube lá, ó murcom: o teu mano disse-te alguma coisa?

-A mim não! Devia?

-Claro que debia, estúpido! Então num sabes que toda a cidade está em estado de sítio? Com a inbasom de Lisboua, as coisas ficaram pretas.

-Mas a guerra civil Norte-Sul já não terminou na semana passada?

-Sim, mas tu bem sabes que o teu irmão pode ter muitos defeitos, mas é um tripeiro dos berdadeiros. Num me acredito que abaixado as calças aos mouros.

-Ok, vou-lhe ligar.

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Jorge falou em silêncio com o irmão. Depois, sem dizer água vai, voltou as costas a Telmo e correu em direção à sala para falar com Madalena. Telmo seguiu-o.

-Senhora, minha sister, tenho péssimas novidades…

-Num me digas que o FC Porto perdeu…

-Não é isso, Madalena. Mas é quase tão mau.

-Já me estás a assustar, murcom. Desembucha de uma bêz!

-Os governadores de Lisboa decidiram mudar o nome à nossa cidade… que vai chamar-se Doravante…
Jorge calou-se. Madalena insistiu:

-Que vai chamar-se, doravante, como? Diz, murcom!

-Já disse, senhora. Vai chamar-se Doravante. O Porto vai chamar-se Doravante, a partir de hoje…

-Quer-se dizer, podia ser pior. Dorabante é um lindo nome – E, voltando-se para Telmo e Maria, que, entretanto, tinham entrado, alertados pelo cagaçal que Madalena fazia: – Que achaindes?

-Eu gosto, disse logo Maria.

-Eu tamém num aicho mal. Até me soua bem ser dorabantino!, completou Telmo.
Mas Jorge tinha mais para dizer:

-Mas há pior… Os governadores de Lisboa decidiram juntar as duas cidades, Porto e Gaia. E vão fazer o seu quartel-general aqui, na margem sul. Aqui, na nossa casa!

-Ai, que me dá o chiliiiiiiiiiique!, grunhiu Madalena, atirando-se para o maple. – Eles bêm morar para a nossa beira?

-Acho que não nos querem por cá. Eles vão correr-nos daqui para fora. Vamos ter que bazar!, terminou Jorge, esquecendo-se um pouco do nível de língua, devido aos nerbinhos em franja.

A Madalena deu-lhe mesmo o chilique. Maria, que tinha ouvidos de tísica, apercebeu-se da chegada do pai e correu para a porta principal, nem o deixando, sequer, tocar à campainha. A miúda curtia mesmo tótil o velhote.

Manuel entrou. Estava afogueado, mas procurava não dar raia.

-Rápido. Os mouros bêm para aqui, mas bamos-lhes fazer uma surpresa, carago. Aqueles energúmenos lisboetas bão aprender que num se brinca com um berdadeiro tripeiro!
Dito isto, deu ordens à criadagem que recolhesse apenas o indispensável, que iam sair dali para outra residência. Madalena quis saber para onde.

-Ora, para adonde haberia de ser? Bamos para o apart da Afurada. Temos a chabe, num temos?

-Manel, nãããããããõ!!!!! Num quero ir para lá! Tu bem sabes que eu bibi lá dois dias com o Jonas! Num quero boltar a pôr lá os cascos!

Que tinha de ser, que fosse razoável, que o Jonas, a esta hora, já tinha alimentado a bicharada toda do jardim das tabuletas. Mas a mulher não se calava. Teve que lhe enfiar uma lamparina, ele que era contra a violência. Mas teve de ser. Rapidamente, voltou-se para a criadagem e ordenou:

-Lebem só o que precisamos mesmo. Bamos para o flat da Afurada. Pomo-nos lá em cinco minutos. …E encham esta casa toda de peidinhos engarrafados!!!! Aqueles mouros bão saber que ainda existe no Porto um tripeiro dos verdadeiros!

O maralhal trabalhava depressa, despejando bidões e bidões de litradas do terrível líquido. Miranda, o criado maneta, desastrado como sempre, entornou uns bons 50 litros na caricatura de Manuel, que estava exposta na parede principal da sala. Soltou palavrão dos fortes o infortunado Manuel de Sousa e ainda tentou salvá-lo. Dasse, que gostava tanto daquela caricatura feita com tanto carinho pelo Barela. Maria interveio:

-Vamos, vamos, que vêm aí os mouros… já estão a atravessar a ponte…

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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