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Os clássicos contados à Moda do Porto

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Os Tripíadas

Parte 2

Guna, na verdade, não era nome de família, mas alcunha que ganhou, primeiro em puto, juntamente com a outra canalha da rua Escura, e depois, já moçoilo espigadote, devido ao facto de ser um ás no desporto urbano oficial do Porto, andar à guna. Não havia elétrico ou troleicarro que lhe escapasse. Aliás, até depois de crescido, já homem feito e com andante, de vez em quando, ia para a obra à guna, para desespero do pica. Quando casou, ainda lhe procuraram alterar o apelido para Vasco da Gina. Não era, como alguns mafiosos diziam, por se dar a muita literatura de revista com aquele nome. Até podia ser, é verdade, mas não era por isso. Era da Gina, porque tinha dado o nó com a Regina. E era costume em terras tripeiras dar nome da mulher ao marido. Se o Zé casa com a Maria passa a ser o Zé da Maria, por exemplo. Aliás, o batismo até se dá normalmente com o diminutivo. Tipo Zé da Miquinhas, Vasco da Gininha. Muito lutou Vasco contra isto. Vasco da Gininha não caía bem. Definitivamente. E, por isso, com muito esforço, conseguiu continuar Vasco da Guna.

De repente, porém, levantou-se um barbeiro daqueles. As águas encapelaram-se e, não se sabe de onde, surgiram ondas gigantes. Numa delas vinha o Macnamara. E o horizonte escureceu. Dispararam rabanadas de vento. O céu ficou negro como o preto da Casa Africana.

Foi chato p’a caraças, porque Vasco tinha acabado de passar bronzeador. Como se sabe, o Rabelo é mais barco de rio do que de mar, até porque, sendo quilhado, não possui quilha. A barca instantaneamente se transformou na Montanha Russa das Fontainhas. Levantou-se bruscamente, tirou as lunetas de sol e apercebeu-se de que ia dar molho e, sabiamente, pronunciou para a sua tripulação:

– Aqui há cáspio… Quer-me parecer que vai chubêr.

Dito e feito. Caiu da graúda. Ondas maiores que as do canhão da Nazaré. Aquilo não era natural. Naquelas paragens, não havia mar assim. Ali havia marosca.

E havia mesmo! Naquele preciso momento, no Buçaco (há quem escreva com dois ‘esses’), os deuses reuniam para determinar o futuro dos portuenses. Alapados à mesa, enquanto iam dando ao dente marisco do Eusébio e emborcando uns finos, davam duas de letra, num basqueiro insuportável. Júpiter, que era o bigue bosse, mandou o maralhal todo sossegar a periquita. Como ninguém lhe ligou nenhuma, sacou do fogante e amandou dois tiros para o ar. A chotegane funcionou e todos meteram a viola ao saco.

– Temos de tomar uma decisão. Para mim é igual ao litro. Estou-me nas tintas se os gajos chegam ou não à Ericeira. Mas temos que decidir, com o caraças. Por isso, saquem dos vossos telemóveis e vamos votar. Entrem no kahoot, que é uma aplicação muita fixe, e deitem na opção que quiserem.

Moeram para dentro alguns dos deuses, porque iam gastar os dados, mas não tinham alternativa. Havia três opções. A primeira era “não me importo que os Tripeiros cheguem à Ericeira”. A segunda, “Nem que se mordam todos, não vão chegar à Ericeira” e a terceira era “Tou-me a cagar pró assunto”.

Votaram e, no final, Júpiter verificou que, tal como ele, quase todos tinham escolhido a hipótese c). Com exceção de dois. Vénus votou na primeira opção e Baco na segunda.

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– Chiça, que isto hoje está engalinhado, desabafou o dono daquilo tudo. – Assim, a gente não ata nem desata.

Ia fazer nova votação, desta feita reprogramando a aplicação sem a terceira hipótese (para grandes males, grandes medidas) quando se apercebeu de que faltava um dos deuses votar:

– A sério?! Marte, tu ainda não deitaste em ninguém. És sempre o mesmo.

Faltava, na verdade, o voto do Deus da Guerra, que tinha uma razão secreta para ainda não ter votado. Pelo canto do olho, viu o ecrã do celular de Vénus e, sem demoras, carregou na mesma opção. Vénus sorriu e Baco fez beicinho. Marte queria era engatar a miúda e dar umas voltas com ela. Daí que tenha feito questão que ela soubesse claramente que ele tinha o mesmo sentido de voto. De resto, ele até era Deus da Guerra e tinha alguma admiração pelos portuenses, povo que, ao longo da sua história, tinha bastas provas que à batatada ninguém lhes levava a melhor. Não eram bem os motivos da miúda (Deusa do Amor), que se dava bem mais ao romantismo e à beleza e curtia, obviamente, os tripeiros, porque, já se sabe, não existe à face da terra povo mais bonito.

Baco, Deus com o pelouro do Vinho e dos Vícios, estava de birra com os portuenses porque tinha uma barraca de comes e bebes na Praia Ribeira d’Ilhas e uma casita de tias à beira da Praia Norte e ficava borrado só de pensar que com a chegada da armada tripeira, com os seus doutos conhecimentos e higiénicos costumes, os ericeirenses lhe desamparassem a loja. Além disso, dizia-se à boca cheia, era ele que controlava o negócio da reparação das pranchas de surf e estava cheio de cagaço que a Pichelaria Santos lhe estragasse o esquema.

– Olha, ganhou o sim!, congratulou-se Júpiter. – Vamos deixar os gajos continuar. E agora toca a marchar, aldra, que está na hora da novela.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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