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Os clássicos contados à Moda do Porto

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Os Tripíadas

Parte 1

Poucos povos do mundo serão merecedores de tanto elogio como os tripeiros. Aqui, não há lugar para sostras. Quem anda à babugem tem os dias contados, pois um portuense não se permite muito tempo a coçá-los. Essa coisa de andar à gosma é defeito de outros meridianos. Por estes lados, dá-se ao zingarelho, embora o bom portuense encontre sempre tempo para dar ao sarrote. É uma homeostasia que apenas quem nasce na Ímbiqueta sabe controlar. É gente que dobra o garfo, que tira a camisa para salvar um amigo.

O tripeiro é impoluto, ser quase demiurgo, que converge em si predicados como a nobreza de caráter, a generosidade e a frontalidade. Ninguém manda dizer o que tem a dizer por outrem, ao contrário de outros sornas. Não se perde em manobras de cu pró ar nem em fosquinhas ou rodriguinhos. Vai direto ao assunto e não se impede de dar a piçada a quem fizer o oposto.

É gente que, em qualquer parte do mundo, impressiona pela sua capacidade de trabalho, pela sua genialidade. É incapaz de cortar na casaca ao seu chão à frente de outros seres, embora, entre iguais, não se coíba a ser crítico com a sua terra e a tentar sempre melhorá-la.

O que mais enternece é o seu bairrismo, o sentimento de pertença com a região que o viu nascer. Fora de portas, se um português o é duas vezes, um tripeiro é-o cem vezes. E fica babado só de pensar nos ícones tripeiros: o sotaque, as palavras e expressões, a sua história, os seus monumentos. Avia tripalhada, se preciso for, dia sim, dia não, alternando com francesinha, bem regada de molho. Com orgulho e satisfação.

É deste povo heroico de que vos vou falar. Tarefa que não é fácil, já que tantos e tantos são os seus feitos e proezas. Tantos são os homens e mulheres ilustres aqui nascidos. Tantas qualidades têm os tripeiros. Facilmente, um estranho fica como um boi a olhar para o palácio, escutando tamanhos atos. Fica-se barado, de boca aberta, a tentar meter na cornadura como pode um simples burgo à beira-Douro plantado ter sido tão abençoado pelos deuses.

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Por isso, por temer não conseguir molhar a sopa, suplico às ninfas do Douro, as Dágides, que me auxiliem nesta tão espinhosa missão: contar com a objetividade necessária a valia dos portuenses. Com realismo, para não confundir cagalhões com nêsperas (e, muito menos, com magnórios), e não apagar, nem de leve, a grandiosidade histórica tripeira. Rogo à musa da fonte de Mouzinho da Silveira que me dê alguma inspiração ao beber das suas helénicas águas e à Menina Nua da Praça da Liberdade e ao Deus Henrique Moreira que me ajudem na escolha dos bitaites certos para dar conta da elevação do que vou narrar-vos.

Sim, porque não se trata apenas da gloriosa viagem de Vasco da Guna à Ericeira, na sua invencível armada de Rabelos, feito que, por si só, já seria merecedor dos maiores encómios. Mas apenas isso saberia a pouco e a celeste expressão que o portuense usa quando pretende demonstrar a sua maior admiração, “Anda-me! Bib’ó luxo!”, seria manifestamente parca para definir tão imortal destino. Também por isso se impõe uma palavra de apreço, sem laivos de graxice, para a Pichelaria Santos, que patrocinou, com gosto e arame, a expedição de Vasco da Guna a terras para lá de Vila Nova de Gaia, que deu novos portos ao Porto

No alvo oceano navegavam os três Rabelos da invencível armada tripeira. Tinham passado há pouco a praia dos Supertubos, ali pertinho de Porto de Lobos e tudo levava a crer que a viagem ia ser na boa, sem espinhas. O mar parecia não quebrar um prato, céu lindo, azulzinho, sem nuvens e uma brisa fresca. Enfim, um dia tótil. Vasco da Guna aproveitava a brasa para tostar um pouco. Estava muito copinho de leite. A proposta do Santos tinha-o apanhado desprevenido, mas, como não quis ficar descalço, deu à perna para aproveitar o brinde. Não iria ficar na prancha. Fazer uma viagem marítima em Rabelo pela inóspita costa moirama até chegar à Ericeira era grande desafio. Muito para lá da força humana, por mares nunca dantes navegados, terras de selvagens. Mas, se havia alguém capaz disso, era ele, Vasco da Guna. A ideia era trazer de lá pranchas de surf para as estudar e, depois, montar, na moirama, uma delegação da Pichelaria Santos, que põe a surfar até os mancos.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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