As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego
7.ª hora
O cenário era apocalíptico. Os dois gangues avançavam lentamente para o confronto. A cada passo que davam, a tensão aumentava. Os corpos hirtos preparavam-se para, a qualquer momento, iniciar a mais sanguinária batalha que o solo tripeiro já vira travar. Para acrescer ainda mais a emoção, quando a distância que os separava rondava os dez metros, pararam e fitaram-se. Sabiam que muitos não sobreviveriam para contar o sucedido, mas um soldado não pode pensar, nem hesitar. Questões como essas não se colocam aos guerreiros. A única voz a que obedeciam era à do seu chefe. Ao primeiro sinal de Tó Morcego, o pessoal estava pronto para dar a vida. O mesmo se passava com a maralha de Miro Mirolha.
Os olhares vazios, imbuídos de fúria, desejavam, ardentemente, a guerra. Entretanto, o povo, dando conta do que estava a acontecer, vinha para as janelas, para assistir de camarote a tão prometedor espetáculo. Para apimentar a coisa, faziam-se apostas. A maioria, profundamente conhecedora dos créditos da seita do estrábico, jogava todo o seu pé-de-meia naquela equipa. Outros, apostando na surpresa, punham o graveto no nosso herói.
Rapidamente se constituíram duas claques, que berravam incentivos pela sua dama. Também não faltavam cartazes e estandartes. Até o sol emitia os seus primeiros raios para que a batalha pudesse ser convenientemente gravada nas câmaras de vídeo. Quem sabe não estaria ali a chave do sucesso e da fortuna ou até mesmo, quiçá, o primeiro prémio no “Isto só vídeo”*?
A algazarra era cada vez maior. Os gritos do público faziam lembrar o ambiente sórdido dos gloriosos circos romanos. Restava agora saber qual dos dois grupos iria cumprir o papel dos leões…
Mas eis que se ouvem as sirenes da polícia! Algum javardola os chamara. Há sempre um pastor que gosta de cortar a ganza do pessoal. Foi por entre muitas vaias e assobios que as autoridades fizeram a sua aparição. Das varandas, os frustrados espetadores reclamavam o seu dinheiro de volta. Os improvisados corretores de apostas já se haviam pirado. Como forma de redenção, arremessavam os mais estranhos e contundentes objetos para a rua, atingindo, alguns, os desgraçados dos moinas, que não conseguiam atingir o que estava a passar-se.
Bem, mas o narrador desta novela, omnisciente, omnipresente e omnipotente, tudo sabe. Através da cerrada chuva de ovos, tomates e bibelôs, somos capazes de discernir uns vultos a escapulirem-se por entre as sombras. Era o nosso Tó que, vendo a situação malparada, tratou de encetar uma retirada estratégica. Os seus oponentes não tiveram a mesma sorte, já que foram apanhados por trás, completamente desprevenidos. Assim sendo, foram detidos pelos chuis, que lhes garantiram algum tempo de estadia gratuita num dos seus afamados hotéis.
Às seis e quarenta e cinco, já Tó e o maralhal se encontravam dentro da fragonete, rindo do sucedido e fumando um relaxante cigarro. A noite não tinha sido má de todo. Era, agora, necessário decidir o que fazer. Uns, abalados pelo ritmo alucinante dos acontecimentos, queriam ir para casa, descansar nos braços de Morfeu. Outros havia que desejavam ir até ao adro da igreja do Bonfim mandar umas bocas ao gajedo que ia à missa das sete e aí beber mais umas cucas. Está mais do que visto que esta última moção foi a mais votada. Porém, existia um problema: estavam sem pasta! A voz da razão do nosso protagonista fez-se ouvir:
– Vamos passar pela Tono Merceeiro. Lá encontraremos cerveja e tremoços fiados!
E realmente assim foi. O Tono, que àquela hora ainda estava na cama a chonar, foi forçado a levantar-se e a atender a malta. Só para não os ouvir, “vendeu-lhes” uma gradezeca de água da CUFP* e ainda lhes “emprestou”, sabendo que ia ficar a arder para sempre, mais mil paus para a gasosa. Se havia um dia de sorte, era aquele!
Quando pararam a carrinha defronte da igreja, repararam que o dia já começara para muitos. De facto, os fiéis encaminhavam-se pra dentro do sacro edifício, alegres e felizes. Mas, à medida que notavam a fragonete cheia de mafiosos, a alegria desfazia-se e assumiam uma posição rígida e austera.
O pior estava para vir. No preciso momento em que os sinos cantavam as sete horas, o senhor padre Jeremias, certamente avisado da presença de tão indesejáveis crentes, avançava com o crucifixo na mão em direção a eles!
Já deveras alcoolizados, não puderam deixar de achar piada à cena e desataram a rir. Mas Tó acenou com a mão e todos se calaram.
– Com os padrecos não se brinca – disse. E saiu da fragonete para falar com o senhor abade.
Notas para putos e malta de má memória
Isto só Vídeo: programa de grande sucesso dos anos 90 (iniciou-se em 1992 e terminou em 1998), que passava filmes amadores (home videos) supostamente engraçados filmados com câmaras caseiras. Virgílio Castelo e Rute Marques foram os apresentadores.
Água da CUFP: Cerveja Super Bock. CUFP é Companhia União Fabril Portuense das Fábricas de Cerveja e Bebidas Refrigerantes.
… leia a continuação na próxima quarta-feira.
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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor