As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego
6.ª hora
Quando o Bítaro pôs a carrinha em marcha, olhou apavorado para o indicador do gázoil. Aterrado, constatou que o ponteiro não se movia, o que queria dizer que estavam nas últimas. Para completar o azar, o pessoal estava quase sem cheta. Fez-se uma vaquinha pelos doze cavaleiros do apocalipse e conseguiu-se ajuntar cerca de quinhentos paus*. Enfim, não era muito, mas devia chegar para o resto da noite.
Descendo sempre com o motor desligado, alcançaram as bombas e reabasteceram-se. Já podiam ir descansados para a padaria “Pão-Pão”.
Como era hábito, dois ou três mafiosos aguardavam à porta do referido estabelecimento. Os donos não deviam estar com muita vontade para os servir. A seita do Tó trocou algumas palavras com eles e ficaram todos a saber que os gajos já lá se encontravam há mais de um quarto de hora. O passo seguinte era chamar a atenção dos padeiros de forma mais convincente. Ao sinal do seu lider, o maralhal desatou aos pontapés e aos murros à velha e maciça porta de madeira. Simultaneamente, insultavam e ameaçavam os desgraçados que, da parte de dentro, se borravam de medo.
Não foi, pois, de admirar que, alguns minutos depois, o sr. Morais lhes abrisse o estabelecimento, oferecendo-lhes uma enorme cesta de pãezinhos quentes e queijadinhas. De papo cheio, a malta recuperou as forças de uma longa noite de curte e, dando o mote, o nosso Tó começou a pontapear ferozmente as sacas de lixo depositadas à saída das habitações. Num ápice, os outros seguiram-lhe o exemplo e, eufóricos, toca a javardar! Ele era tocar às campainhas, ele era despejar os contentores e espalhar esteticamente o lixo pelas ruas, ele era dar cabo dos sinais de trânsito, eu sei lá…. Era, enfim, o clímax de uma noitada bem passada. O grito de quem está bem vivo e pronto a transbordar de energia.
O que interessava era abandalhar o esquema. Claro que os pacíficos cidadãos não gostavam muito da brincadeira. Os mais valentes acendiam as luzes e, por entre persianas, soltavam pragas e injúrias. Entretanto, havia sempre alguém que telefonava para a bófia. Mas não havia crise. Os gajos da esquadra ou faziam que de nada sabiam ou então chegavam ao local muito depois, dando imenso tempo para uma retirada estratégica.
Era nesse momento que o protagonista desta singela novela descarregava todo o ódio sobre as sacas do Modelo e do Continente recheadas de dejetos. Era bem mais satisfatório tocar-lhes com os pés do que com as mãos. Dessa forma, qual cão raivoso, pulverizava o lixo, pisava-o. Que raio de profissão o seu cota lhe havia arranjado. Tá bem que era funcionário público e tinha certas regalias… Mas, mesmo isso, agora, pouco importava. Ademais, tinha ouvido uns rumores pelos bastidores que falavam sobre num sei quantos trabalhadores camarários que iam para a rua por causa de uma tal de lei de disponibilização. Bem, mas disso ele estava livre, uma vez que o pai e o Chefe dos Serviços eram grandes amigalhaços do partido. Agora os outros, cuja cor não pintava… Que se nique! Não era ele, António Bernardes da Silva (Tó Morcego para os amigos), que iria mudar o mundo!
Eram seis menos cinco. Ao longe, um galo cantava anunciando a proximidade da manhã. O pessoal aproveitava as últimas trevas para fazer das suas. Quando, finalmente, se preparavam para regressar à Corujeira, onde tinham estacionado a fragonete, mesmo em cima do relvado, uma voz desafiadora, vinda de trás, rompeu a noite:
— As meninas já vão para casa?
Aquilo era para eles! Que infame se lhes ousaria dirigir naqueles termos? Tó não precisou de voltar-se para identificar o provocador. Só podia ser Miro Mirolha, o Terror do Lagarteiro: um gajo tão feio quão porco. O seu clã assustava as meninas e nem os moinas se metiam com ele. Ultimamente, aderindo à moda dos sequinedes*, tinham rapado todos o cabelo e tiraram um curso de “como manobrar corretamente uma corrente”. Imagine-se que até tinham contratado uns afroamericanos para poderem praticar e aplicar os conhecimentos adquiridos! O nosso herói não se esquecera de que os energúmenos tinham desancado cobardemente no Giló, comendo, à sua frente, a Amélia, sua irmã (segundo parece, ela até tinha gostado, mas isso não vinha ao caso).
Ora o pessoal admitia tudo, menos que lhes pusessem em causa a sua virilidade. Meninas, eles? Os gajos mais machos da zona Oriental do Porto? Aí estava uma ofensa que não podia passar impune. Os “clicks” das ponta-e-mola ressoaram nas mãos dos nossos amigos. Do outro lado, doze cadeados cortavam, silvando, o ar. Tó lançou o grito de guerra, que tinha aprendido com o Manoel de Oliveira, no “Non, ou a vã glória de mandar”*:
— A eles, por Santiago!
Notas para putos e malta de má memória
Quinhentos paus: O pau sempre foi a moeda oficial do século XX. Atenção que não corresponde ao euro, mas sim ao escudo. Na moeda antiga, 500 paus eram mais ou menos 2,50 euros e era considerado muita massa.
Sequinedes: Os skin heads ou cabeças rapadas eram, na sociedade dos anos 90, em Portugal, uma autêntica raridade. Nem aos carecas passava pela cabeça rapar a mona a pente zero. Aproveitavam, sim, as poucas farripas para colar ao caco o melhor que podiam e disfarçar a careca. Os sequinedes eram, na sua maioria, hooligans violentos, marginais, de extrema direita e nazis e viam-se sobretudo nos filmes dos camones.
Non, ou a vã Glória de mandar – Filme de Manoel de Oliveira de 1990.
… leia a continuação na próxima quarta-feira.
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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor