As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego
5.ª hora
Não imagina, amigo leitor, a quantidade de e-mails que me têm chegado nestas últimas semanas. Se algum dia soubesse a polémica, a admiração e a indignação que iria provocar nos mais variados meandros, jamais teria iniciado esta novela que, afinal, não é mais do que a enumeração de algumas vivências, de sabedoria acumulada na escola da vida e que poderá, eventualmente, encarnar alguns ideais desta bela cidade, o nosso Porto. Todavia, esta minha viagem pela Imbíqueta está a fazer correr mais tinta do que o autor previra quando se propôs realizá-la. Isto porque magotes de pessoas sensíveis ficam chocadas com o vocabulário utilizado e com os atos praticados pelo nosso Tó Morcego. E repare, benévolo leitor, que o calão usado é transcrito de forma eufemística e suave. Se nos despirmos de preconceitos ultrapassados, facilmente constataremos que os diálogos existentes numa vasta faixa da população (na qual se insere o nosso protagonista) se situam uns bons furos acima do utilizado nestas crónicas. E se se depara ao longo destas linhas com alguns dos cancros sociais desta época de fim de milénio em que continuamos, volvidas três décadas, a viver, tenha em atenção que eles existem realmente e, porventura, bem mais perto de si do que possa julgar. A verdade é que todos nós conhecemos Tós Morcegos, Bítaros e Sãos. Só que alguns de nós continuam a teimar em renegá-los, simulando ingenuamente que as cores que emolduram o mundo continuam a ser em tons de azul celeste. Outros, pelo contrário, sentem-se ultrajados com a descrição desta saga porque, como é hábito dizer-se, enfiam a carapuça e tomam-na como um ataque pessoal. Ora não é, nunca foi nem nunca será intenção do autor narrar um facto verídico concreto, mas antes alertar de forma jocosa e satírica para algumas situações que subsistem num underground não muito distante. De toda a forma, o Estado de Direito Democrático em que coabitámos permite-me estes devaneios e é por essa razão que vamos, agora, encontrar o nosso Tó no Monte de Santa Justa, em Valongo, no preciso momento em que acaba orame rame com a São. Foi, de facto, difícil convencer a moça, mas devido à sua persistência e força de vontade, mais uma vez o nosso herói conseguiu molhar a sopa.
Pelas quatro e meia da madrugada, já com as roupas respetivas vestidas e visivelmente satisfeitos com a experiência partilhada, o jovem casal encetou o caminho de volta à discoteca.
Quando chegaram, o ambiente era já de rescaldo*. A música tinha-se silenciado, embora ecoasse ainda nas cabeças dos que, num frenesim doido, haviam abanado o esqueleto numa longa maratona de quase quatro horas. A malta aproveitava estas derradeiras oportunidades para, à porta da Romano´s, tentar os últimos controlos, conseguir uns encontros para o domingo à tarde ou para levar umas gajas a casa.
Assim que a fragonete parou a sua marcha, mesmo em frente à entrada principal (Tó fazia questão de que toda a malta testemunhasse esta sua façanha), São saiu e desapareceu na floresta humana que aí se adensava. De imediato, o gangue do Cerco se abeirou do galo da noite, metralhando-o com perguntas mais do que indiscretas, às quais Tó Morcego respondia prazerosamente, sem quaisquer escrúpulos. “Noblesse oblige”. Era obrigatório contar tudo, sem esconder nenhum pormenor e, se possível, inventar ainda mais, para apimentar a história e torná-la numa espécie de epopeia. Pois bem, o herói desta novela não se fez rogado e descreveu até ao ínfimo segundo a stickada que havia dado à Miss Turismo Cerco do Porto. Os outros aplaudiam cada passo da narração e viviam intensamente cada linguado, cada apalpanço do nosso Casanova.
Depois da história terminada, outros houve que tentaram impingir ao resto da maralha relatos mirabolantes de quecas secretas que haviam dado nessa mesma noite. O Nando, por exemplo, tinha-se refugiado durante meia hora nos quartos de banho, alegando ter feito, nesse espaço de tempo, uma gaja espetacular. Uma das regras de ouro que regiam a ética do grupo era que ninguém tinha o direito de desmascarar um seu compincha. Foi devido a esta cláusula que ouviram a sua história, enfadonhamente, até ao fim, embora não lhe ligando nenhuma, aproveitando, calados, para terem tempo de, também eles, inventarem a sua pequena aventura. De peito feito, todo emproado, Tó Morcego ouvia-os, pacientemente. Sentia-se venerado e idolatrado. Todos o procuravam copiar, mesmo nos mais insignificantes gestos. Era na maneira como andava, o tabaco que fumava, o seu visual, etc.
Mas a noite estava longe de acabar. Para os menes, a etapa seguinte, mandava a tradição, era a romagem ao pão quente*. Eram quase cinco horas. A padaria “Pão-Pão”, em S. Roque da Lameira, devia estar a acabar de confecionar as suas deliciosas queijadinhas. Era boa altura para passar por lá, tirar o rato do estômago e aproveitar para causar distúrbios. E, com sorte, encontravam a seita do Miro Mirolha, a quem deviam umas boas pauladas.
Notas para putos e malta de má memória:
Horário das discotecas – Pode parecer incrível à maltinha de hoje, mas a verdade é que, nos anos 90, as discotecas fechavam por volta das 4.30h, 5 da manhã, ou seja, mais ou menos à hora que atualmente abrem.
Os moletes da madrugada – era costume o pessoal da noite ser o primeiro a frequentar as padarias, ainda estas estavam a cozer os últimos moletes. Além do pão, tinham fama as queijadinhas e as tigelinhas. Nem todas as padarias abriam a porta, mas os menes sabiam bem a que porta deviam bater.
… leia a continuação na próxima quarta-feira.
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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor