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Sonetos e sonetistas

Sonetos e sonetistas
Oh!… Vós que tendes tempo, sem ter conta (…)

Frei António das Chagas

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Confesso nunca ter sido capaz de escrever sonetos. Nem sequer de tentar fazê-lo. De, ao menos, os esboçar. Nada. Afeiçoado à costela desconfiada dos portuenses de antanho, antevia na métrica a sujeição a um espartilho que atormentava as minhas simpatias heterodoxas e pouco reverentes dos sistemas literários. Desisti, portanto, já que, conforme a ortodoxia, o soneto obedece a um esquema rigoroso de 14 versos distribuídos por 2 quartetos e 2 tercetos. E, ainda por cima, segundo o cânone clássico, deverá rematar em espécie de apoteose, a que alguns chamam a «chave de ouro» do poema.
Nem pensar em meter-me por aí. Nem por aí nem por outra via dos caminhos eriçados de armadilhas da verdadeira poesia que, para corresponder, conforme a queria Novalis, ao autêntico real absoluto, tem de pairar nas alturas onde só os abençoados pelas Musas e os eleitos no manejo da perfeição falada conseguem pairar. Mas se, quase a partir do berço, me considerei incompetente para escrever sonetos, desde sempre – quase desde quando aprendi a ler – me afeiçoei a apreciá-los na voz dos poetas que nos povoam a alma e nos ajudam a enrijar o espírito. Afeição levada, em alguns casos, até a decorá-los e recitá-los nas aulas inesquecíveis do Dr. Praça, e a coleccioná-los em cadernos do género «Os Meus Sonetos Favoritos», onde guardava os que serviam para impressionar audiências nos tempos recuados e agora considerados obscurantistas em que ler poemas – e designadamente sonetos – era ocupação dos serões de muitas casas da burguesia tripeira (hoje, umas e outra, arruinadas).
Em primeiro lugar Camões, que atingia o máximo efeito cénico, dramático e sensual com o «Amor é fogo que arde sem se ver» e mais suavemente com «Aquela triste e leda madrugada». E Bocage, que não era apenas inventor de anedotas, mas também sonetista primoroso e exaltante como em «Liberdade querida e suspirada», ou Sá de Miranda que, com o Novíssimo Acordo Ortográfico morreu de vez e, falando da nossa precária condição, dizia «E tudo o mais renova, isto é sem cura». E também Antero: «Sonho que sou um cavaleiro andante», sem esquecer Florbela: «Eu quero amar, amar perdidamente» e, ainda antes, Gonçalves Crespo: «Quando se fez ao largo a nave escura.». Para não alongar muito esta introdução às minhas predilecções nunca antes reveladas e, inesperadamente, vindas à superfície, acrescentarei Régio, Camilo Pessanha e António Nobre.
Depois, numa guinada conservadora (aliás, sempre me pareceu que os admiradores e as multidões de praticantes da arte do soneto eram gente pouco dada a modernidades), até diria muito conservadora, talvez influenciado por um programa radiofónico (dos tempos reaccionários em que se divulgava poesia nas estações de rádio!) de Miguel Trigueiros intitulado “Poesia, Música e Sonho”, onde pontificavam as vozes magníficas de Raul Feyo e Manuel Lereno (e digo isto porque, para atingir a dimensão intemporal de música, a poesia só precisa de ser bem lida e não berrada ou declamada), numa deriva ultraconservadora, dizia, tornei-me frequentador assíduo dos sonetos – ao meu gosto, admiráveis de claridade – de Cândido Guerreiro e do Conde de Monsaraz («Na doce paz da tarde que declina»), gente do Sul que me impregnou de sol, de luz, de azul.
Mais tarde (como quase todos da minha geração) perdemo-nos de entusiasmo por Manuel Bandeira, em turbulência poética que veio arrasar as ideias adquiridas sobre a métrica daquilo que ele (e nós passámos a adoptar enquanto verdade incontroversa) designou na sua “Poética” como «Lirismo comedido». Adiantando que estava farto «Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. director».  E mais fulminava (e nós com ele): «Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar o dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo». Aplaudíamos, considerando no meu grupo do Palladium, onde coçava as esquinas da entrada, apreciava as raparigas, discutia política e romances, que conhecíamos poetastros operando, à custa de silabadas e consultas no dicionário, a construção de sonetos de rima encarniçada e matematicamente alinhada.
Mas, subitamente, a nossa euforia anticonformista sofreu abalo ponderoso: até Bandeira, encartado iconoclasta, se submeteria aos padrões exigentes do classicismo escrevendo, traduzindo, interpretando, copiando (jamais compreendi) a inspiradora e aclamada deusa da lírica anglo-saxónica, Elizabeth Barrett Browning, a quem dedicou “Quatro Sonetos”. Puros, íntegros, impolutos como em versos assim: «Amo-te até nas coisas mais pequenas», ou «Ama-me por amor do amor somente» e «De chorar, teu amor pode ter fim!». E por aí fora, até ao infinito das imagens que a literatura nos revela. No entanto, se com Bandeira o soneto adquiriu, aos meus olhos tomados de básico instinto de apreciação, a categoria de também moderno e contemporâneo, a suspeição sobre a qualidade poética de muitos dos seus cultivadores manteve-se. Mais ou menos: diz-me como, soneteando, convocas a doçura de viver em harmonia com as Graças que nos alimentam os sonhos e compreenderei se és poeta ou soneteiro de trazer por casa (e, neste caso, se é pior a emenda que o soneto).
Confesso ter-me assustado quando o José Efe telefonou dizendo que ia publicar um livro de sonetos e pedia um depoimento para ele. Mas, rapidamente a dúvida e a suspeição acumuladas em anos de vida e de observação (e padecimento) de composições canonicamente impecáveis, apresentadas como sonetos de onde a poesia fugira a sete pés, se desvaneceram. Desvaneceram-se porque, lendo os 13 sonetos deste livro, compreendi quanto Jorge Luís Borges tinha razão ao dizer que «nenhuma pessoa se senta a escrever um poema e o faz à força de raciocínios». É isso: para não cair nas «esplêndidas cintilações de vulgaridade» que Oscar Wilde citava a propósito de Kipling, alguém tem de se sentar a escrever um poema à força de afectos, dores, deslumbramentos, desilusões e um milhão ou mais daquelas razões imponderáveis que fazem (e desfazem) o quotidiano.
Tal sucede (ao menos no meu entendimento pouco académico e certamente superficial sobre análise literária ou teoria da literatura) nestes belos sonetos de José Efe. Neles perpassa o sopro, umas vezes subtil, outras vibrátil, das frases que emocionam e envolvem naquele «instante significativo» de que falava Cartier-Bresson a propósito da essência da fotografia, que nos transforma de espectadores (ou leitores) em cúmplices de uma realidade participada. E, ao ler estes sonetos inesperados, dei por mim, como antigamente, a procurar nos seus interstícios o fragmento desvendador, a frase coerente, a metáfora elegida, o «toque», a revelação implícita em cada um. Desta maneira, de “A Flor do Lápis” retive: «Miúda em dor a letra cinza inflama» ou «Redonda a forma, tamanho o sentido». E, sobretudo, o magnífico «É outono: matizam-se ilusões.» (o mistério desoculta-se, a seguir, no belo corpo difuso de mulher, segundo a pintura de Helena Leão). O “Mar” do poeta «É um sopro salgado e cristalino» (na visão do Molhe de Carreiros, de Abreu Pessegueiro). Em “Girassóis”, «As palavras pululam ansiosas» e «a vida pulsa ao ritmo do que escrevo.» (e, então, Isabel Saraiva interpreta os girassóis, numa explosão heliotrópica da cor, à sua maneira). Na beleza do título «A casa é um pássaro sem asas…» (que, e não perguntem porquê, me recorda Helberto Helder retratando a velha casa «vendo-a morrer com um pouco de ternura»), para José Efe ela «é sombra da sombra silenciosa.» (a que Beatriz Pacheco Pereira transmite uma rochosa – aos meus olhos – força emotiva).
Surge, a seguir, o país mesquinho que conhecemos no aviltamento do património ferroviário. A “Estação” é um grito de alma e uma denúncia, embora começando com o ameno «O sol acende o mar no seio da manhã» logo nos abala com «o relógio da abandonada estação (…)» e aponta que o «Espanto e dor inundam-nos de mágoa (…) nos ultrajados painéis da história». A desolação mais não é do que o «espelho de um país sem memória» (contrariando o sentido da destruição – a impressionista Estação da Trindade, admirável, de António Joaquim recorda-nos um local que o Metro do Porto retirou da decadência). Em “Paleta”, «Uma gota dulcíssima, temente, / emaranha-se no verde crescente» (embora a paleta de Maria André seja vermelhíssima…).
Num dos mais expressivos sonetos deste livro aparece o Porto. Dele separei o retrato concludente: «Percorro-te a pé com olhos lassos.» por ser, para nós, tripeiros, o «coração de eternas madrugadas» (etérea, em azul, Manuela Mendes da Silva interpreta o Burgo com os olhos apaixonados que lhe conhecemos). Impressa nos rostos de enigmática inquietude de Antónia de Sousa, a “Mudez do Mundo” aponta «O homem, desassossego do Mundo (…) que o cheiro do medo não aquieta» (e que mais dizer para além da insatisfação pressentida no poema?). Com José Rodrigues ilustrando um apontamento como se fossem “Les Baigneuses”, em Harobed encontra o «Teu rosto esfíngico, mais que perfeito (…) água cristalina, indelével fio» (fui navegar na internet procurando mais informação sobre Harobed – a minha ignorância, sendo especializada, não abarca tudo. Fechei rapidamente a página, pois apareceram-me, on-line, uma cartomante, o Professor Bamba, a clarividente Paula, o «veja o que o futuro lhe reserva» através da numerologia e do tarot. Além do convite à conferência do meu horóscopo. Desisti, pois, de encontrar Harobed e fiquei-me pela enunciação de José Efe).
Na realidade mais concreta as “Mãos” «Ágeis escrevem, o tempo partilham, / são tacto, acto de afecto (in)discreto». E, noutra dimensão «lêem os sentidos, afagam mundos» (as mãos significantes de Isaura Machado acrescentam o restante). E, neste universo de polissemias à procura de personagens e situações, “As Árvores” surgem como «Ilha de poentes: espasmo de luz (…) Enrugadas, serenas, sem idade», tal como as conhecemos em muitos jardins, por aí, onde sobrevivem à hecatombe dos temporais e das serras eléctricas (e, talvez, por isso, na visão de Liseta Amaral, inundam a página).
“Rosalin(d)a”, que logo nos sugere e evoca a possibilidade de um delicado retrato da mulher dos anos 70, permanece «ensimesmada na antemanhã (…) de repente a tempestade fenece». Mas esta Rosalinda – a quem retiro os parênteses – deslumbra-nos, emociona-nos na pastoral cromática, soberba, de Armando Alves que a vivifica. E sobre o mais terreno “Patego, o gato” «Sumia na sombra da tarde vazia» e «bebia o húmus dos campos lavrados» (rematando a fantasia onde pairam emoções que, tal como Borges insinuava, nunca poderiam vir a lume à custa de raciocínios, o «patego» envolve-se nas ondas vermelhas de Henrique do Vale).
Por tudo isto e muito mais que poderia ser dito – se a tal chegassem os meus atavios de comentador dos sonetos de José Efe -, penso poder afirmar que não vão juntar-se à categoria do já conhecido. E, por tal motivo, vêm acrescentar palavras ainda não ouvidas ao livro da poesia do nosso tempo. E se isto, nos dias que correm, não vale como um elogio, fico sem saber o que é um elogio.

Helder Pacheco
Investigador de assuntos portuenses

* este texto não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico{jcomments on}

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