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No Porto… em bom PORTOguês

No Porto… em bom PORTOguês

A língua reinventada pelos tripeiros

A língua é só uma, claro, mas o português para os lados do Porto tem que se lhe diga… E é bom, muitas vezes, andar acompanhado de um dicionário local para descodificar o que um tripeiro quer dizer. Se assim não for, o visitante pode bem ficar quilhado, que é como quem diz “a ver navios”. Andámos pela Baixa a tentar perceber as histórias que essa língua nativa, o “PORTOguês”, tem para contar e ficamos a saber, entre muitas coisas, a explicação para expressões como “falar para a central”, “ir para o maneta” ou “Bai no Batalha”. Não entendeu. Bute ler a reportagem.

Não é bem o curaçom da Imbíqueta, mas é um bom ponto de partida para começar o roteiro das histórias que os tripeiros encerram na sua língua muito própria. A Praça Parada Leitão é um caso emblemático. É que nenhum tripeiro que se preze conhece a dita praça. Agora, se falarmos na Praça dos Leões, o caso muda de figura. É lá que fica a reitoria. E um dos cafés mais conhecidos da cidade, o Âncora d’ouro. Que bom portuense conhece por “Piolho”.

O Ângelo Ribeiro tem 20 anos e estuda artes. Confirmámos a suspeita, quando, em plena Praça Parada Leitão, sentado no café Âncora d’ouro, perguntámos ao jovem pela dita cuja: “Não estou a ver onde é. É melhor perguntar no balcão”. Apesar de, mesmo por trás, em letras garrafais, estar a inscrição com o nome oficial do estabelecimento, a resposta foi similar: “também não sei. Tens a certeza que é por estes lados?”. Mudámos de estratégia, falámos em PORTOguês: “Ângelo, e sabes onde é a Praça dos Leões? E o café Piolho?”. Riu-se, mostrando a cremalheira. E atalhou: “tás na tanga, num tás? É aqui, claro!”.

Dando corda aos bitorinos

Seguimos viagem. A pé, claro, que para se conhecer bem a cidade tem de ser a butes, dando corda aos bitorinos, porque de cu tremido tudo nos passa ao lado. Um pouco depois, nem cinco minutos passados, ao dobrar da esquina da reitoria, aparece, orgulhosa e imponente, a Torre dos Clérigos. Não sendo muito alta (tem 75 metros de altura), parece bem maior, quando vista do fundo da inclinada rua com o mesmo nome. Daí que os portuenses, quando querem designar alguém muito alto ou qualquer coisa grande, a utilizem amiúde nas suas comparações. Mas, mesmo ao lado, na rua dos Caldeireiros, onde agora está uma pichelaria (sim, no Porto, não há canalizadores. Há picheleiros) que vende coisas tão diversas como aloquetes ou porcas, foi, em tempos, um dos estabelecimentos mais conhecidos e referenciados da naçom, a Central da Borracha. Quantos, ainda, quando a conversa não agrada, deixam escapar um “estás a falar para a central”! Os mais velhos recordam, com um sorriso de nostalgia e de malandrice, os calendários anuais da extinta empresa. Eram a versão portuguesa dos calendários da Michelin, que ainda ornamentam qualquer garagem que se preze.

O Alho de quem se fala

Descemos os Clérigos. De facto, à medida que se desce, a Torre vai ficando mais alta, mais imponente. Nos Lóios, virámos à direita, seguimos por Trindade Coelho e calcorreámos a mais bonita artéria da cidade, a rua das Flores. Algures, perpendicular às Flores, encontrámos a rua mais pequena do Porto, a Rua Afonso Martins Alho. São 20 metros, se tanto, de rua, dois metros de largura, mas o suficiente para ter duas adegas. O mais interessante é a história do homem que dá nome à rua. O tal que está na génese de uma das expressões mais usadas pelos tripeiros, “fino como um alho”! Os portuenses não têm qualquer dúvida da veracidade do aforismo. A História parece dar-lhes razão. João Carlos Brito, linguista, especializado nestas questões e com vários livros publicados, assume que “há, obviamente, uma grande dificuldade em afirmar perentoriamente que a palavra “x” ou a palavra “y” são propriedade dos falantes do Porto”. E até há, como refere, “a dificuldade de delimitar geograficamente (e não só) o que é um falante do Porto. É verdade que temos vocábulos que, pela sua formação, histórica e socialmente, nos indicam que, quase de certeza, nasceram na Invicta”. Esta expressão será, na sua opinião, bom exemplo disso.

Entre mouros e morcões

Na verdade, são muitas as palavras e expressões, localismos, aforismos, idiomatismos existentes no Porto que derivam de contextualizações históricas. E, claro, como quem conta um conto, acrescenta um ponto, a imaginação e a criatividade dos tripeiros foi fazendo o resto. Será, talvez, o caso da expressão “ir para o maneta”, que, tal como o fino (ou “esperto”) como um alho se vulgarizou por todos os falantes portugueses. Mas, “ai, que carago”, começa por dizer Daniel Ribeiro, estudante, 18 anos, que respira portismo por todos os poros. “Nós é que imbentámos a expressão! Os outros, mouros inclusive, é que nos imitaram, os morcões!”. Deve haver jogo no Dragão. O Daniel traz um cachecol do FêquêPê. Afinal, não. Ele gosta de andar assim vestido. Ele e centenas de outros transeuntes. No Porto, o futebol é uma paixão e o FC Porto mais do que uma religião. Deve ser por isso que chamam Papa ao presidente Pinto da Costa.

Língua define um povo

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João Carlos considera que “a língua é provavelmente o maior traço de identidade de um povo” e também que “o conjunto de vocábulos e expressões que é propriedade imaterial dos portuenses define, distingue e unifica a Invicta e, em particular, todos os seus falantes”. Para o linguista, “os falares marginais dos habitantes da região do Grande Porto são fortes marcas de identidade e conseguiram sobreviver à crescente tendência da globalização, em que cada vez mais se fala o mesmo em todos os cantos do país”. Mas esse património está em perigo: “algum deste riquíssimo acervo tradicional dos falantes do Porto, porém, já caiu em desuso e só resiste nas memórias mais longínquas, porque a memória oral vai-se perdendo e, à medida que as gerações vão desaparecendo, também esse património oral tende a perder-se”.

Mas vamos ao que interessa. Depois da curiosa referência ao mercador Alho, mais uma história em PORTOguês nos chega, a do altar do Santíssimo Sacramento, na Sé do Porto, que o Daniel, tótil baidoso, nos foi mostrar. Diz a lenda que terá escapado ao terrível general Loison, por alturas das invasões francesas e deixou para sempre um herói de rosto anónimo: o sacristão meio tolo que teve a ideia genial de o pintar de branco para escapar às pilhagens gaulesas.

No Porto, tudo rima com juom

Vale a pena parar para descansar os calcantes e as bistinhas, no exterior da catedral portuense. O Douro, o casario, a Ribeira, a ponte da Arrábida são de cortar a respiração e merecedores de, pelo menos, dez minutos de contemplação. O tempo foi passando e o briol foi chegando, porque no Porto nunca está frio. Está briol. Ou um griso do carago. Ou um barbeiro, também, do carago. Fiquemo-nos pelo carago, porque, já se sabe, no Porto, um palavrão é uma vírgula. O Daniel assumiu voluntariamente o papel de guia turístico, apesar de ninguém lho ter solicitado. É também marca Porto este voluntarismo, esta simpatia inata, esta vontade de querer ajudar. É bom. Chama atenção para as horas: “São cinco menos um quarto. Num tarda nada, está escuro”. No Porto, não há quartos para as cinco. Nem para as quatro. É um fuso horário linguístico delicioso, que contagia e que nos põe, rapidamente, a inventar ditongos e a terminar todas as palavras em “om” e em “e” (para que se perceba: come-se pom, festeja-se o sainjuom e pergunta-se se “ainda tás aíe”). No Porto, tudo rima com Juom.

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Passámos a estátua do Vímara Peres, no lugar de Pena Ventosa, onde nasceu o Porto. À direita, ainda se espreita a Ponte de Luís I que, para todos os portuenses, é D. Luís. Bem feita! Que o Rei não tivesse faltado à inauguração da ponte com o seu nome. Os portuenses não perdoaram, rebatizaram a ponte e ainda hoje não pronunciam corretamente o seu nome. Ai de quem se mete com os tripeiros! Está quilhado. Com F maiúsculo, acrescenta o Daniel. Ali, dantes, o FCP atravessava o rio já a perder. Agora não. Carago, atalha o nosso guia, que assegura que “até os comemos”.

Uma rua que bale mais caGaia toda!

Mais umas curvas e contracurvas. Nesta cidade, nunca se “corta à direita” nem à esquerda. Vira-se. Ou melhor: bira-se. Chegámos à Praça da Batalha, onde, outrora, milhares de portuenses viam as novidades da sétima arte. Hoje, o edifício apresenta-se desolado, com marcas visíveis de ruínas. Ficou para a história a herança de uma das mais utilizadas expressões da Invicta, o famoso “Bai no Batalha”, que serve para desarmar o mais capaz dos argumentadores. A páginas tantas, já não sabemos se ainda estamos na praça ou se entrámos na rua que é sala de visitas da cidade, Santa Catarina, a tal que os portuenses, quando querem enervar os seus vizinhos de Gaia, dizem ter mais valor do que todo o concelho da margem sul: “bale mais uma rua no Porto caGaia toda!”. Isso não sabemos. No monopólio, lá está a rua de Santa Catarina, pintada de bermeilho (malandrice que quem adaptou o jogo para o nosso país, mouro, de certeza. Se não, seria azul) e é bem cara.

Terminar à grande e à Francesinha

Já é de noite. A azáfama aumenta e são milhares de cabeças a circular por toda a baixa. Hora de jantar. Onde? Em Sampaio Bruno, no restaurante “A Regaleira”, onde, há cerca de meio século, o senhor Daniel David Silva inventou a Francesinha, prato que se tornou icónico da cidade. Não é para meninos nem para gente que está habituada a gourmês. É coisa forte, molho para homem de barba rija, mas que todos no Porto se habituaram a gostar.

Como qualquer pessoa, portuense ou não, se habitua a gostar da cidade. Dos seus saberes e dos seus sabores. E, como diria outro nativo, por trás das suas lunetas escuras, é “impossível resistir a tanto charme”. É Porto… em bom PORTOguês. Carago.

Ana Marta Brito

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