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Meninas e meninos

Meninas e meninos
Um dia o Mateus chegou a casa a dizer que na escola não o deixavam brincar com bonecas. Perguntei-lhe quem é que não deixava, e disse-me que era a educadora. Achei aquilo estranho, expliquei-lhe, como explico sempre, que toda a gente pode brincar com tudo, e dei o devido desconto, que já se sabe que nestas idades os putos contam um conto e acrescentam uns cinquenta mil pontos. Dias depois, a queixa repetiu-se: “a A. não me deixa brincar com bonecas!”. Do que conheço da professora e do que conheço da escola, não estava propriamente a ver uma coisa dessas a acontecer, mas como a queixa era repetida lá me resolvi a ir ter com a educadora e perguntar o que é que se passava. Tal como eu pensava, explicou-me que os brinquedos estão à disposição de todos. Carros convivem alegremente com bonecas, bolas convivem alegremente com brinquedos que imitam utensílios domésticos, está tudo ali à mão de semear e cada um brinca com o que bem lhe apetecer. O que acontecia, explicou-me, é que as meninas, numa atitude mais territorial, não achavam muita graça a que os meninos brincassem com as bonecas, porque são meio abrutalhados e nem sempre as tratam com a delicadeza e o cuidado que elas acham que as bonecas merecem, por isso tentavam protegê-las como podiam. E, conhecendo o Mateus como conheço, estou mesmo a vê-lo a agarrar-se aos cabelos de uma boneca só para a tirar das mãos de outra pessoa que estivesse a brincar com ela. Do mesmo modo que se a dita boneca estivesse lá para um canto, ao abandono, muito provavelmente ele não a quereria. Basicamente é aquela coisa irritante que os putos têm de só quererem brincar com aquilo com que os outros estão a brincar.
O assunto ficou arrumado, mas achei importante que fosse esclarecido. Até porque se a resposta da professora fosse qualquer coisa como “ah, pois, é que nesta escola as meninas brincam com bonecas e os meninos com bolas, não há cá misturadas”, tirava-o dali em três tempos. Em casa o Mateus nunca ouviu expressões como “isso é para meninas” ou “isso é para meninos”. Nessa altura em que andava mais queixoso por não o deixarem brincar com bonecas, levei-o a uma loja para trocar um presente de Natal, disse-lhe para escolher o que quisesse e até sugeri que levasse uma boneca, já que andava a falar tanto no assunto. Respondeu-me “mas as bonecas são para meninas” e eu lá lhe disse, pela enésima vez, que isso não existe, que os brinquedos existem para quem quiser brincar com eles, seja menino ou menina. Acabou por escolher mais uma coisa qualquer da Patrulha Pata e, como é óbvio, não o obriguei a levar uma boneca só para lhe provar que não vinha nenhum mal ao mundo. Mais do que lhe pregar lições de moral aos quatro anos, quero é que ele seja feliz.
Este blá-blá-blá todo para chegar à questão da Porto Editora e dos cadernos de actividades. Azul para menino e rosa para menina. Com bolas e carros para o menino, com estrelas e bailarinas para a menina. Os cadernos acabaram por ser retirados do mercado por recomendação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e, opinião minha, acho que se abriu aqui uma premissa perigosa. Já se disse mil e uma coisas sobre o assunto, já se escreveu tudo e mais um par de botas, não houve cão e gato que não tivesse alguma coisa a dizer sobre o tema. E eu li tanta atrocidade que tive vontade de não frequentar redes sociais nos próximos 50 anos. Gente a apelidar a Porto Editora de “nojenta”, gente a sugerir boicotes, gente que se empregasse um terço da capacidade de indignação que empregou neste caso para discutir assuntos realmente importantes faria com que o país andasse para a frente em três tempos. Mas espera lá, perguntam vocês, este assunto não é importante? É, claro que sim. Mas não justificou este circo todo que se montou.
Tal como 98,7% das pessoas que deram o seu inestimável contributo para este tema, também eu não tive a oportunidade de ver os cadernos. Não os tive nas mãos, não pude fazer uma análise comparativa, não sei se as diferenças cognitivas eram assim tão evidenciadas. Toda a gente teceu comentários com base numa imagem que foi divulgada na internet (a do labirinto), mas isso, por si só, não é suficiente para perceber se todas as actividades das meninas eram mais fáceis do que as dos meninos. Duvido muito que fossem. Mas depois, claro, há também o problema das ilustrações. As dos cadernos dos meninos remetem para actividades ao ar livre, para desportos, para aventuras. As das meninas remetem para um universo de fantasia, de princesas, de coisas mais delicadas. E isso é que não pode ser, valha-nos Deus, que é certo e sabido que miúdos que preenchem livros de actividades com barcos e escorregas serão uns machistas de primeira, e miúdas que preenchem livros com galochas e cupcakes serão umas tontas, oprimidas que acreditam que o seu lugar não é outro que não a cozinha.
Na minha singelíssima e nada relevante opinião, o único problema dos livros é terem a indicação “menino” e “menina” na capa. Percebe-se a estratégia comercial da Porto Editora. Tendencialmente, é verdade que isso faz/pode fazer com que os meninos queiram (ou sintam que devem querer) o que diz menino e que as meninas queiram (ou sintam que devem querer) o que diz menina. E que os próprios pais se sintam inclinados a fazer uma escolha. Se não dissessem nada, seriam só um livro azul e um livro cor-de-rosa. O primeiro mais aventureiro, o segundo mais fantasioso, mas que cada criança escolhesse o que mais lhe agradasse, sem esse suposto estigma de ser para menino ou para menina. É mais ou menos como os brinquedos do McDonalds. Deixaram de estar segmentados por géneros, para não ferir susceptibilidades, e passaram a ser só brinquedos. Há dois à disposição, toda a gente sabe que um é mais orientado para o sexo feminino e outro para o sexo masculino, mas não têm o rótulo e isso já deixa muita gente mais descansada. É o que se quer.
Se alguma vez me tivesse cruzado com os livros de actividades da Porto Editora, provavelmente teria comprado o azul, “para rapazes”. Pela simples razão de achar que o Mateus se identificaria mais com a bonecada. Mas, e isto é, para mim, o verdadeiramente importante, não teria qualquer problema em comprar-lhe o cor-de-rosa, mesmo que tivesse a indicação “para meninas”. Se o Mateus gostasse do livro, se o quisesse, qual era exactamente o problema? Tanto quanto sei, não havia nenhuma obrigação ou proibição implícita a cada um dos livros, cada um compra (comprava) o que quer, para quem quiser. O problema está  só na cabecinha complexada das pessoas.
Com quatro anos o Mateus já manifesta gostos e preferências. Já vai ao Netflix e escolhe as séries que quer ver, já vai a uma loja e opina sobre os brinquedos que lhe compramos. Regra geral, vai para as coisas ditas  de rapaz (e sublinho muito o “ditas”, para que ninguém me venha cá bater). Gosta de desenhos animados de acção, gosta de lutas, de carros, de bolas. Não liga a bonecas, a roupinhas, a filmes de princesas, a brincar aos pais e mães ou às tarefas domésticas. Nunca me pediu nada dessas coisas e, como tal, acompanho-lhe as vontades e deixo-o fazer aquilo que, aparentemente, o faz mais feliz. Claro que lhe podia sugerir roupa cor-de-rosa, Barbies, Nenucos, ou a Cinderela a rodar na televisão três vezes por dia. Mas, sinceramente, sinto que seria muito mais uma imposição do que uma sugestão. Às vezes lá o convenço a ver uma Pequena Sereia ou coisa que o valha (mais para me contentar a mim do que a ele) mas, invariavelmente, ao fim de uns minutos lá me está a perguntar se já pode pôr no Cars, ou no Star Wars ou numa das milhentas coisas desinteressantes que ele adora.
A sociedade formata os miúdos, desde sempre, para que gostem mais disto ou daquilo? Sim, claro. O melhor exemplo é que assim que engravidamos toda a gente fica morta de curiosidade para saber o sexo do bebé, para poder decorar o quarto ou comprar as primeiras roupinhas. A segmentação começa logo aí. Mesmo que não seja intencionalmente, encaminhamos logo os miúdos para determinadas escolhas. Mas essa orientação para certas cores ou brincadeiras tem uma implicação nociva na forma como os miúdos encararão as questões de género? Serão mais preconceituosos ou discriminatórios por causa disso? Tenho sérias dúvidas. Se o trabalho em casa/escola for bem feito, se as bases forem boas, não é por os miúdos adorarem futebol e as miúdas bonecas que isso se reflectirá, de forma prejudicial, na forma como vêem as questões de género. O Mateus adora carros, eu compro-lhe carros mas, ao mesmo tempo, também lhe explico que não há problema nenhum em brincar com bonecas. Deixo-o completamente à vontade para me pedir uma, não permito que ele diga “isso é coisa de meninas”, explico-lhe as vezes que forem precisas porque é que não deve dizer isso. A verdade é que alguém lhe incutiu essa ideia. Provavelmente saída da boca de algum coleguinha, provavelmente saída da boca de um adulto que até lho pode ter dito na brincadeira, sem pensar na dimensão da questão, mas em casa essa ideia será sempre contrariada.
Acho que nos encaminhamos, perigosamente, para um mundo cada vez mais asséptico, onde as diferenças se esbatem e se combatem como se fossem uma coisa má e potencialmente perigosa. E não são, não acho que sejam. Meninos e meninas são diferentes, mas de repente montou-se todo um drama em torno disto. Uma amiga de Facebook apelava para que as mães deixassem de comprar roupa cor-de-rosa às filhas. Mas… e se as filhas quiserem? Se as filhas gostarem? Se as filhas preferirem? Será que retirar-lhes o cor-de-rosa é a melhor forma de combater as questões de igualdade de género e de provar que as mulheres são tão ou mais capazes do que os homens? “Minha rica filha, a partir de hoje só vestes castanho. Vais sentir-te miserável e infeliz? Paciência, mas ao menos o mundo sabe que não embarcas cá nestas merdas de meninas”.
Pela parte que nos toca, o Mateus saberá sempre que tem o mundo à disposição. Será sempre educado para perceber que gostar de azul não o impede de gostar de rosa, ou de amarelo, ou de vermelho. E que há meninos que só gostam de rosa, que há meninas que só gostam de azul, e que isso não interessa rigorosamente nada. Será educado para perceber que mulheres e homens devem ter acesso às mesmíssimas oportunidades, que ser homem não é um estatuto que faz dele mais importante, respeitado ou especial. E este é a verdadeira influência que todos nós devemos ter o cuidado de exercer na vida dos nossos filhos. Quanto a cadernos azuis ou cor-de-rosa… Por Deus, não me macem.

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(Ana Garcia Martins | Blog A pipoca mais doce)
(Foto: Henri Cartier-Bresson){jcomments on}

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