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Recheio 2024 Institucional

Mário Dorminsky

Mário Dorminsky

“O cinema leva-nos para outro mundo”

O nome de Mário Dorminsky está intrínseco à cultura portuguesa. Com um percurso pautado pela cinefilia, do qual é um apaixonado assumido desde muito jovem, o portuense dedicou-se, ao longo do seu percurso profissional, a muitas outras áreas, desde a arquitetura e o jornalismo, passando ainda pelo ensino.

Numa altura em que ainda muito pouca gente escrevia sobre cinema, em Portugal, Mário Dorminsky, o fundador do emblemático “Fantasporto”, assinava, no alto dos seus 20 anos, a coluna “Primeiro Balcão”, no jornal “Primeiro de Janeiro”, onde viria a trabalhar como jornalista. Mas, antes, em 1978, já havia estado por detrás da fundação da publicação Cinema Novo, das revistas de cinema “que mais tempo durou em Portugal”, e que esteve no mercado durante 15 anos.

“Era um pouco a continuidade do projeto da ligação entre o público que queria ver cinema, sendo uma espécie de cineclube disfarçado de revista ou uma revista que tinha um cineclube”, descreveu, enaltecendo que foi também através da revista que se intensificou “o gosto pela escrita”.

Ainda na década de 90, fez história ao criar, ao lado da agora esposa, Beatriz Pacheco Pereira, aquele que viria a ser o maior festival de cinema português, o Fantasporto, que recebe essa designação pela junção das palavras “fantástico” e “Porto”, a cidade natal de ambos. Contudo, foi como “Mostra Internacional de Cinema Fantástico” que se apresentou, pela primeira vez, a público, em 1981.

Volvidas 42 edições de sucesso, com a última concretizada no último mês de abril, o Fantasporto “cresceu”, a nível nacional, mas, sobretudo, muito a nível internacional. “Nesse âmbito, estamos num patamar extremamente elevado, sobretudo a nível do fantástico, onde estamos entre os dois maiores festivais de cinema do mundo”, avançou, visivelmente orgulhoso.

A VIVA! esteve à conversa com Mário Dorminsky, o eterno cinéfilo, que projetou o Porto, nacional e internacionalmente, precisamente 17 anos depois da última grande entrevista que nos concedeu. Entre sorrisos e um sentido de humor característico, abriu-nos as portas da sua vida e do seu coração e partilhou connosco tudo sobre o seu percurso, desde o gosto pelo cinema e pelo desporto, o encontro com o grande amor da sua vida e, claro, o Fantas.

Quem é o Mário Dormnisky? Como se define enquanto pessoa, portuense e fundador do maior festival de cinema português?

É alguém que nasceu de uma família de classe média. Que cresceu na zona do Marquês de Pombal e, por isso, a Rua de Costa Cabral, a Rua Álvaro de Castelões, o liceu António Nobre, o Cinema Júlio Dinis, o Cinema Estúdio, a Biblioteca do Marquês, a Igreja do Marquês, os cafés Pereira e Embaixador e o Académico do Porto, um dos clubes do seu coração, o levaram a várias coisas. Uma delas foi praticar desporto.

No Académico, por exemplo, pratiquei hóquei em patins e joguei minibásquete, chegando, inclusive, a ser campeão ibérico. Mas, além deste clube, a minha parte desportiva deveu-se também ao FC Porto, onde pratiquei andebol de 11, no campo da Constituição, e ao mesmo tempo treinava peso, martelo e dardo. Todas estas atividades eram complementadas, a nível desportivo, pela prática de bilhar. Comecei por jogar snooker, mas depois dediquei-me ao bilhar livre.

O meu pai era sócio do Ateneu Comercial do Porto, que tinha na cave uma parte de bilhares fantástica, entre os quais os bilhares livres de dimensão ampla, onde eu passava muitas das minhas tardes a jogar. Cheguei, até, a ter algum impacto no seio do mundo do bilhar livre e joguei com o, na altura, campeão do mundo do bilhar livre. Mas, nesse famoso jogo eu não consegui pegar na bola, porque ele deu as 50 carambolas seguidas na sua primeira jogada e eu, pura e simplesmente, não pude jogar. Foi a final mais triste da minha vida!

E o gosto pelo cinema, como acontece?

A área do Marquês tinha já dois cinemas, o Júlio Dinis e o Estúdio de Costa Cabral, e existia ainda outro, que era o Cinema do Terço. Houve uma altura em que eu frequentava muito essa sala, tanto que até tinha um lugar reservado numa das filas que mais gostava, em que não tinha rigorosamente ninguém à frente, e havia um socalco que dava uma visão fantástica para o ecrã… Por ali passaram centenas de filmes de características mais diversas. Filmes de muita qualidade, desde o neorrealismo italiano aos filmes de cowboyadas. Eram exibidos filmes de todo o tipo, desde filmes históricos, como “A Queda do Império Romano” e “A Cleópatra”, em paralelo com filmes “mais pequeninos”, digamos.

E esse tipo de perspetiva ampla de ver cinema dos mais diversos géneros também me permitiu ter uma leitura mais abrangente do cinema, que, de alguma forma, não se prendia a géneros e características.

O Júlio Dinis, por exemplo, sobretudo no pós-25 de abril, mostrava muito cinema de leste, virado muito, se calhar, para filmes que eram muito abertos sexualmente, que tinham a ver com algum erotismo e vanguardismo. Era uma sala muito frequentada, primeiro por causa disso, mas, por outro lado, também porque apresentava filmes de muita qualidade. Esta sala tinha filmes vocacionados para um público mais adulto e foi, sobretudo, no pós-25 de abril que esse cinema passou a ter alguma dinâmica e procura, sobretudo para quem queria descobrir o cinema vindo de leste.

Ao mesmo tempo, o Estúdio de Costa Cabral também tinha uma programação muito boa, até porque era de uma empresa que tinha, na altura, a maior parte das salas de cinema da cidade, desde o Batalha, o Águia Douro, o São João, etc. E ao ficar com essa sala estúdio, em Costa Cabral, fez dela uma sala de cinema de culto, no sentido em que estava a exibir, basicamente, filmes de um cinema que era já considerado um cinema de autor. Isto muito antes do 25 de abril.

Que filmes foi vendo nessa sala?

Os filmes de Polanski, os filmes do Bergman. Ou seja, cinema sempre de qualidade. E foi aí que eu comecei a sentir uma certa diferença. No Estúdio de Costa Cabral, vi dois dos filmes que mudaram, no fundo, a história do cinema, “A Primeira Noite”, de Mike Nichols, e o “Easy Rider”, de Dennis Hopper.

Esses filmes marcaram, sobretudo, a grande diferença na produção do cinema norte-americano, em que emerge também, nessa altura, um outro produtor, o Roger Corman, que atirou cá para fora cineastas como o George Lucas, o Steven Spielberg, o Francis Ford Coppola, com uma série de pequenos filmes, a nível de orçamento. A produção de cinema norte-americano passou “A Cleópatra” e “A Queda do Império Romano”, os filmes de grande orçamento, para filmes de pequeno orçamento. Estes pequenos cineastas surgiram como os grandes motores do novo cinema americano, o que mudou, de forma radical, o cinema norte-americano.

Foi através desta visão, sempre ampla, que foi crescendo o gosto pelo cinema?

Sim. A informação a nível de cinema sempre passou pela minha mão, porque consumia tudo o que fossem revistas de cinema, tanto portuguesas como estrangeiras.

Aliado a tudo isto, ainda estava o Cineclube do Porto, do qual eu era sócio desde os 10 ou 12 anos. De 15 em 15 dias, havia sessões no cinema Batalha, onde eram apresentados filmes com uma seleção cuidada e virados pra o cinema romântico francês, para o cinema expressionista alemão. E, aos poucos e poucos, uma pessoa começa a conhecer a história do cinema, vai-se informando sobre os realizadores, vai tendo conhecimento sobre os atores e assim se vai formando, pouco a pouco, a criação do interesse e do gosto pelo cinema.

Essa formação, no meu caso, é um bocado diferente do habitual, porque parte do cruzamento de um cinema popular com um cinema de qualidade. Chegou a uma determinada altura que, obviamente, a minha atenção começou a ir para um cinema de mais qualidade, mas isso não me impedia, de maneira alguma, de ir ao Águia Douro ver cinema de terror, de ir ao Olímpia ver um filme de ação, de ver uma comédia ou um filme de algum impacto diferente no Trindade ou no Batalha ou, eventualmente, no São João.

Recorda-se de qual foi realmente a primeira sala de cinema onde entrou e que idade tinha?

Foi o Teatro Sá da Bandeira, na altura Cinema Sá da Bandeira. Pelo que os meus pais me dizem eu tinha quatro anos de idade.

Na altura, houve algo que tivesse espoletado, imediatamente, o interesse pela área? 

Não, não tenho memória sequer de ver o filme.

Além do cinema, ainda jovem, surgiu o gosto pela escrita…

Sim, escrevi a minha primeira crónica para o jornal Prelúdio, do liceu Alexandre Herculano, onde estudei. E ainda comecei por fazer textos para uns programas que se faziam no Cinema Passos Manuel.

Com 15/16 anos, já no pós-25 de abril, saí do Cineclube do Porto, por motivos de critérios de programação que passou a ter, numa altura em que foi tomado de assalto pelo partido comunista. E, nesse período, em 1975/1976, participei na fundação do Cineclube do Norte. Lembro-me de trabalhar várias coisas, entre as quais uma homenagem, na altura, ao nosso realizador e amigo Fernando Lopes. Nessa altura, já com os meus 17/18 anos estava a criar, com a Beatriz, a minha mulher, e com um grupo de pessoas que saiu do Cineclube do Norte a revista Cinema Novo, cujo primeiro número foi publicado em setembro de 1978.

A Cinema Novo surgiu com que intuito? Qual foi o objetivo principal da fundação da revista?

Foi um pouco a continuidade do projeto da ligação entre o público que queria ver cinema, sendo uma espécie de cineclube disfarçado de revista ou uma revista que tinha um cineclube. Era uma das duas coisas. A revista era mensal, saiu durante 15 anos e foi das revistas de cinema que mais tempo durou em Portugal. E, atenção, era uma revista que tinha uma distribuição comercial significativa.

A Cinema Novo, no fundo, tem a ver com a vontade de continuarmos a fazer ciclos de cinema. Nós propúnhamos às salas do Sr. Mário Pimentel, que era o gerente das salas Lumière, utilizá-las, na altura, só às 18h00. Pedíamos às embaixadas apoio, os filmes que queríamos e depois fazíamos ciclos, normalmente dedicados às cinematografias, brasileira, francesa… A nossa ideia sempre foi mostrar cinema que não se via nas salas comerciais. Contudo, claro que houve momentos em que o que queríamos fazer era outra coisa, era mostrar os cineastas que pouco se viam nas salas comerciais. E recordo-me que os ciclos que fazíamos tinham uma programação de alguma qualidade cinéfila.

A revista dava-nos uma facilidade, que era pudermos ir aos festivais ao estrangeiro e fazermos a cobertura dos mesmos. Foi aí também que, de uma forma continuada, surgiu o meu gosto pela escrita. E em 1978/79 fui convidado para escrever uma coluna, intitulada de “Primeiro Balcão”, no jornal O Primeiro de Janeiro. Era uma coluna de cinema quase única na altura, porque muito pouca gente escrevia sobre cinema.

Como e em que altura se deu o encontro com a Beatriz Pacheco Pereira?

Tinha 16 anos quando comecei a andar com a Beatriz, atualmente minha mulher. Era muito novo, mas lembro-me que queria uma pessoa mais velha na altura, com uma formação já bem construída. E conhecemo-nos no Círculo Portuense de Ópera, um importante coro sinfónico nacional, onde eu era tenor e a Beatriz soprano.

Mesmo à minha frente, estava uma menina com cabelo encaracolado, que fazia parte de um grupo de amigas com quem eu também me dava bem. Foi assim que nos conhecemos e, a partir daí, nunca mais nos largamos.

Na altura, sentíamos que não tínhamos muito a ver com o grupo que existia no Círculo Portuense de Ópera e então isolávamo-nos um pouco, mas, ao mesmo tempo, íamos criando uma relação mais próxima um com o outro. Foi aí que sentíamos que existiam coisas muito próximas, como o gosto comum pela música, pelos livros e pelas artes plásticas, que se sobrepunham às que nos afastavam. A frequência de eventos culturais também era algo que nós mantínhamos, porque havia sempre, por exemplo, teatro no Sá da Bandeira, grandes espetáculos de bailado no Rivoli, espetáculos com orquestra no Coliseu… era um período em que a cultura era muito diversificada.

Os nossos circuitos e gostos eram muito parecidos e existia uma particularidade, o facto de a Beatriz também ser, desde muito jovem, uma amante de cinema. Juntamo-nos e a verdade é que desde a criação da revista Cinema Novo que a nossa vida no cinema tem estado ligada de uma forma ativa em relação, digamos, àquilo que é o exterior, isto é, nós não vivemos o cinema só para nós, vivemos o cinema para, de alguma forma, também o atirarmos cá para fora, oferecê-lo às pessoas. Daí a realização de ciclos de cinema e de um ciclo, em particular, dedicado ao cinema fantástico, que é feito na revista de janeiro de 1981. Foi a Mostra Internacional de Cinema Fantástico, em que exibimos três filmes por dia, durante 15 dias, com salas completamente cheias.

Foi ao lado da Beatriz que se tornou verdadeiramente um cinéfilo?

Não, já o era antes. E ela também. O ser cinéfilo significa gostar de cinema, falar de cinema e, eventualmente, conhecer um bocado aquilo que se quer conhecer no âmbito do cinema. Quanto mais informação se vai tendo mais cinéfilo se vai ficando. No fundo, juntaram-se duas pessoas que gostavam de cinema desde miúdos.

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É fundador do maior festival de cinema português, o Fantasporto. Ainda se recorda como foi a estreia do evento? E o que sentiu naquela altura?

Na verdade, não senti nada. Era mais um ciclo de cinema. A única coisa que aconteceu é que, nessa altura, existia um senhor, a quem o Porto muito deve, o Henrique Alves Costa, e que é, talvez, o maior cinéfilo que conheci até hoje. No final da mostra, ele disse-nos “vocês têm que fazer é um festival disto”. E nós dissemos “ah, mas para isso é preciso dinheiro, temos que trazer filmes de fora, não são filmes como nós apresentamos agora…”. Mas avançamos!

No início, tivemos a sorte de, no segundo ano, pedirmos apoio à então Direção Geral de Ação Cultural, que, do nosso ponto de vista, nos deu um apoio gigante. Para nós era gigante porque tínhamos tido apenas 15 escudos para fazer o primeiro Fantasporto, dado pelo Instituto de Cinema, na altura pela compra de revistas da Cinema Novo. Por isso, o tal apoio gigante é comparativo com o primeiro valor que tínhamos recebido. Através deste novo apoio, conseguimos começar a pedir filmes para o estrangeiro, aproveitávamos os circuitos internacionais que tínhamos para convidar, diretamente, realizadores e filmes, e, simultaneamente, também tivemos sempre muita colaboração por parte das, na altura, várias distribuidoras portuguesas. Então, conseguimos sempre fazer uma programação que se tornava muito atrativa.

Como foi evoluindo o Fantasporto?

O Fantasporto evolui de uma forma muito natural. Nós temos gosto cinéfilo, sabíamos qual era a apetência e aquilo que era a evolução, onde iam as tendências da produção do cinema mundial. Uma das coisas onde vamos aprendendo é a ler revistas, sobretudo estrangeiras, e perceber as tendências. E os europeus, apesar de tudo, sempre seguiram as tendências dos norte-americanos. Por isso, não era muito difícil perceber que o Cinema Fantástico ia estar em crescente durante a década de 80. Então, pensamos e avançamos com o projeto.

O festival começou a ganhar nome. Naquela altura, havia uma procura enorme pelo produto cultural, fosse ele qual fosse. E o Fantas tornou-se engraçado para as pessoas, também por causa do nome, que surge, simplesmente, pela junção de “fantástico” e “Porto”.

O Porto tinha que ser obrigatoriamente o palco deste festival?

Sim, porque tanto eu como a Beatriz somos tripeiros. Mas isso nunca nos impediu de, numa primeira fase, tentar dar uma imagem muito forte a nível nacional e levar o nome do Fantas a Lisboa e a outros pontos do país. E tivemos sempre muito boa receção, sobretudo em Lisboa. Era uma coisa impressionante. Conseguíamos encher as salas, às vezes de madrugada. Há um potencial de publico em Lisboa muito maior, até, do que no Porto. E, apesar do êxito que o Fantasporto tinha no Porto, e tem, em Lisboa sentia-se que as salas esgotavam mais depressa.

O Fantas nunca teve problemas em sair do Porto, a não ser a partir do momento em que a comunicação social, em geral, começou a não conseguir distinguir aquilo que é a exibição de dois ou três filmes ou mesmo 10 de um festival de cinema, que exibe 100 ou 150 filmes e que, no caso da apresentação dos 10 filmes nenhum deles é inédito, e no caso de um festival de cinema é tudo inédito. A partir do momento que esse tal evento, com apenas 10 filmes, é chamado festival, começa-se a criar uma situação muito complicada em Portugal, que é ter 500 festivais.

Na passagem da década de 80 para 90, o fantástico perdeu muita força. Por isso, deixou de haver cinema tao interessante. E nós, como cinéfilos, optamos por criar, na altura, uma secção intitulada “Semana dos Realizadores”, que surge, precisamente, 10 anos depois do início do Fantas. Esta semana é, no fundo, um espaço vocacionado para jovens cineastas apresentarem os seus primeiros filmes, mais vocacionado para cinema de autor, e, ao mesmo tempo, cinema genérico, isto é, sem estar preso, digamos, à temática do fantástico.

No primeiro/segundo ano que implementamos esta semana, foi um bocado complicado na relação com o público. Não é que tivéssemos menos publico nas sessões de fantástico, mas tínhamos muito menos publico nas sessões da “Semana dos Realizadores”. Mas, depois, foi crescendo, foi equilibrando, e as pessoas foram-se habituando. E passamos a ter um festival geral, que tinha, no fundo, uma secção mais destacada de cinema fantástico.

O que é, em concreto, o fantástico?

Em primeiro lugar, importa perceber que o fantástico não é terror. O terror é algo que se pode passar no nosso quotidiano, que não tem nada de imaginário. Tem a ver com um acidente estranhíssimo, com uma guerra, com o que quer que seja, mas não com o imaginário. O imaginário é uma coisa diferente. O imaginário é que é o fantástico. E daí que dentro do fantástico possa existir terror, só que é um terror que passa pelo imaginário. Não é, propriamente, um terror que tenha algo a ver com o nosso quotidiano. E, nesse aspeto, continuamos a defender a lógica do fantástico imaginário e não do fantástico de terror. O Fantasporto é um festival de cinema geral, que tem uma tónica de fantástico significativa.

E importa realçar que o Fantasporto começou a crescer, a nível nacional, mas, sobretudo, muito a nível internacional. A esse nível, neste momento, somos um festival com uma imagem que já não é comparável com os festivais portugueses, mas sim com os estrangeiros. E aí estamos num patamar extremamente elevado, sobretudo a nível do fantástico, onde estamos entre os dois maiores festivais de cinema do mundo.

Que balanço faz desta 42.ª edição do Fantasporto?

Foi muito bom, sobretudo para o que nós pensávamos que podia ser. Porque era um ano pós-pandemia, mas ainda com a pandemia presente, com a obrigatoriedade do uso de máscara na sala de cinema… Pensávamos que ia haver menos gente, mas conseguimos ter mais público do que no ano 2020. Todos os filmes foram aplaudidos, o que quer dizer que a seleção continua a ser muito boa. Além disso, nunca tivemos uma cobertura tão forte a nível nacional.

A nível internacional, a Euronews também nos tem dado um apoio fantástico a nível da divulgação do festival, porque faz peças em várias línguas, sobretudo em inglês. E uma peça em inglês passa em todo o mundo. Entre 30 a 40 por cento do público que tivemos este ano era estrangeiro. E, atenção, não eram estrangeiros convidados nossos.

Neste momento, por exemplo, já estão a decorrer as inscrições para o festival de 2023 e posso adiantar que já temos cerca de 10 filmes inscritos, sem termos anunciado a abertura das inscrições. Isto só mostra que o Fantasporto existe e existe lá fora, de forma muito objetiva.

Que desafios é que a pandemia trouxe nos últimos dois anos ao cinema e, em concreto, à realização do Fantasporto?

Ao cinema trouxe uma certa prosperidade, porque houve tempo para os argumentistas escreverem. E os argumentistas são, digamos, a base da criação cinematográfica e televisiva. Sem eles nós não tínhamos o que estamos a ter neste momento, que são filmes mais interessantes do que eram antes da pandemia. Isso é algo interessante por um lado, embora não tivessem havido grandes filmes na pandemia, porque não puderam estrear.

O cinema mudou também muito porque com o aparecimento do digital, o cinema que era analógico, agora recebemos um link no computador e com um bom computador fazemos o download e a partir daí podemos emitir do computador para o grande ecrã. A partir daí, estamos num mundo completamente diferente, em que não há despesas com a viagem de filmes, transporte de filmes, etc. há mudanças radicais que trouxeram ao cinema um problema também, que se os filmes nos chegam em links chegam a todos os computadores existentes e toda a gente tem acesso, neste momento, ao mundo audiovisual. Nunca se viu tanto audiovisual. Agora o que acontece é que não há ninguém para ir às salas de cinema, porque no mesmo dia em que o filme sai na televisão está a sair na sala dos cinemas ou vice versa. Com isto, o cinema morreu, quase. A frase é catastrófica, mas os últimos números do instituto de cinema dão 91% de quebra em relação ao ano 2000.

Passam 640 filmes por semana nas televisões, só por cabo.

O único sitio onde, atualmente, se pode ver cinema diferente é nos festivais, porque nem nos cineclubes se pode ver, porque eles estão dependentes dos filmes que têm as distribuidoras.

Com quanto tempo de antecedência se prepara cada edição do Fantas?

A edição de 2023 já está a ser feita. Aliás, todas as edições são feitas de uma forma sequencial. Em relação aos filmes já sabemos, mais ou menos, o que está em produção e que nos pode interessar. Faz parte, digamos, de um acompanhamento continuado. Depois, há filmes que vamos ver no mercado A, B ou C, para ver se é realmente aquilo que queremos. E temos também que esperar também pelas surpresas que possam surgir nos filmes que nos serão enviados. O Fantasporto está lançado, é um festival mais do que adulto. A única grande diferença deste festival para os outros que existem no mundo é que, se calhar, tem os diretores mais velhos que existem, no sentido em que os manteve desde início.

Que balanço global faz destas 42 edições?

Um balanço extremamente positivo, claro. É uma iniciativa que conseguiu todos os objetivos possíveis e imaginários que foram criados ao longo dos anos. Eu não tinha objetivos relacionados com o turismo no início do Fantasporto, por exemplo, tive-os apenas nos últimos 20 anos, quando senti que o Fantasporto podia catapultar muito turismo para o Porto. E catapultou. Se o Porto é considerado, por dois anos consecutivos, uma cidade mais “xpto”, o Fantasporto é um dos elementos fundamentais para promover a cidade.

Qual é a importância do Fantasporto para a cultura portuguesa?

O Fantasporto é um evento que marca Portugal no mapa, a nível internacional, no que respeita ao cinema. Para a cultura portuguesa, o Fantasporto tem tido um papel de homenagear pessoas que são marcantes no cinema português, por exemplo. Todos os anos homenageamos pelo menos uma pessoa, embora este ano não o tivéssemos feito porque tivemos receio da pandemia.

O impacto na cultura portuguesa prende-se também com a relação que o Fantas tem com as escolas de cinema, porque catapulta as pessoas, digamos, para outros voos, como aconteceu, por exemplo, com os filmes que ganharam a edição deste ano e que tiveram menções, como o “Dilúvio”, “Misericórdia”, entre outros. São filmes feitos por malta nova, mas com muita qualidade, o que mostra que se está a trabalhar bem em cinema em Portugal. E, nesse aspeto, penso que temos tido um papel importante, que é abrir a porta a quem faz cinema português.

Além de trabalharmos numa área cultural, o que é, de facto, importante no Fantasporto é a imagem que ele deixa não só em Portugal, mas, sobretudo, no estrangeiro, o que faz com que olhem para o nosso país de uma forma completamente diferente, vendo o Fantasporto como um produto cultural.

Tem ideia de quantos filmes já viu ao longo da sua vida?

Não, é completamente impossível. Nem sei fazer essa conta, para ser sincero.

Qual foi o filme, ou os filmes, que mais o marcaram até então? E porquê?

Um dos filmes que mais me marcou, logo em miúdo, foi o “Almoço na Relva”, de Marcel Carné, pela beleza, pela simplicidade, pela magia pelo quotidiano que as pessoas nos faziam sentir. Outro que me marcou fortemente foi o “O Mundo a seus pés”, do Orson Welles, porque tinha a ver com as minhas áreas todas, com a comunicação social, com a justiça, tudo.

O “E.T” também me marcou bastante, embora raramente o diga. E marcou-me porque me fez sentir criança outra vez, que é uma coisa que não é fácil de se fazer. E, nesse aspeto, o Spielberg conseguiu fazer um filme absolutamente notável, que continua a estar perfeitamente atual. Não tem nada que se possa estar ali a mexer. Está bom.

Também o “Blade Runner” é, a meu ver, um dos filmes que é marcante na mudança daquilo que é o cinema tradicional para o cinema que funde a música com a imagem, com os atores, com os videojogos que, entretanto, induziram daquilo. É um filme que conseguiu mudar a indústria mundial em termos daquilo que é o audiovisual. E creio que, nesse aspeto, é talvez o filme mais marcante dos últimos anos. Mas há muitos outros filmes que gosto muito, claro…

Com que regularidade costuma ir a uma sala de cinema?

Costumava ir uma vez por dia, praticamente. Com a pandemia, enquanto as salas estiveram abertas, confesso que não fui nenhuma vez. Depois, passei a ir uma vez por semana, porque também não estreava mais do que um filme por semana com interesse para ser visto. A ida à sala de cinema é importante, não tem rigorosamente nada a ver com ver cinema em casa, por muitas condições que se tenha. É um momento mágico, algo completamente diferente. A sala de cinema até pode não ser muito grande, mas se o ecrã e o som forem bons é sempre uma experiência única. E os filmes de grande impacto visual têm que ser vistos numa sala de cinema.

Para si, qual é a verdadeira magia da sétima arte?

É afastar-nos do nosso quotidiano e levar-nos para sítios e espaços remotos, da nossa imaginação, ou que ajudem a nossa imaginação a criar, de facto, esses próprios espaços que nós não sabemos existir. A magia da sétima arte é isso, é levar-nos para outro mundo.

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