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CIN - Branco Perfeito

Isabel Santos

Isabel Santos

“É preciso dar voz a quem não a tem”

É com alma e garra nortenha que Isabel Santos, membro do Parlamento Europeu, luta, diariamente, pela defesa dos direitos humanos e pelas questões humanitárias, em diversos países. Esta é, aliás, uma batalha que a acompanha desde tenra idade, uma vez que, desde cedo, gostou de abraçar grandes desafios e ter sempre uma causa por que lutar.

No Parlamento Europeu, a eurodeputada, natural de Valbom, em Gondomar, desempenha funções de presidente da Delegação para as Relações com os Países do Maxereque, é membro da Comissão dos Assuntos Externos, da Subcomissão dos Direitos Humanos, da Delegação à Assembleia Parlamentar Eurolat e é ainda relatora do Parlamento Europeu para a Albânia.

O gosto pela política nasceu de uma forma muito natural, porque cresceu num “ambiente altamente politizado”, explicou em entrevista à VIVA!, aquando da sua visita ao Porto, no final do ano passado,. “Na minha família sempre ouvi falar e debater política. Para mim, a participação política foi sempre algo absolutamente natural”, detalhou.

E foi, precisamente, com a mesma naturalidade e “sem grande planeamento” que começou a dar os primeiros passos neste meio, agarrando inúmeras oportunidades e “deixando de lado” outras tantas, por, como admitiu, não a cativarem. Mulher, ativista, política e defensora incontornável daquele que deveria ser um direito de todos os cidadãos, a voz e a igualdade, Isabel Santos assinala, em 2022, o terceiro ano da sua entrada no Parlamento Europeu.

Nesta viagem, tem trabalhado, essencialmente, em “matérias ligadas à política externa da UE, direitos humanos, os direitos dos migrantes e refugiados”. Um caminho repleto de desafios, sobressaltos, mas com muitas conquistas, que a colocam como uma das mulheres mais importantes e influentes em Portugal.

Nesta entrevista, a eurodeputada Isabel Santos partilhou, de forma bastante intimista, como é o seu dia a dia no Parlamento Europeu e como é “ser mulher” dentro desta instituição. Abordou também o papel da mulher, na política nacional e internacional, e falou sobre as suas principais missões: qual foi a mais impactante e porquê? Como se ultrapassa a falta de segurança de um país em guerra? De que forma se gere a pressão dos interesses internacionais e protege a liberdade das populações? E quais são, atualmente, as suas maiores preocupações?

As respostas a todas estas e outras perguntas em exclusivo nesta entrevista.

Quem é a eurodeputada Isabel Santos e como se define enquanto pessoa?

Gosto pouco de falar sobre mim própria. Gosto mais de falar do mundo, das múltiplas causas que tenho abraçado, das grandes lutas políticas do presente e do futuro. Gosto de grandes desafios, vivo tudo com grande paixão, por vezes até de forma obsessiva. Não gosto de dias banais. Quando não tenho uma grande causa ou uma qualquer batalha a travar, algo que me anime e faça sentido, aborreço-me, sinto-me sem ar, fico insuportável. Deem-me um motivo para lutar e serei feliz, mesmo que só. A solidão na política nunca me perturbou muito, desde que me sinta do lado da razão.

Como foi chegar a deputada do Parlamento Europeu?

Foi mais um andamento de um percurso político multifacetado, que, desde 2011, teve uma forte dimensão internacional. Durante duas legislaturas integrei a delegação da Assembleia da República à Assembleia Parlamentar da OSCE, fui vice-presidente e depois presidente da Comissão de Democracia, Direitos Humanos e Questões Humanitárias. Apaixonei-me pelos temas relacionados com os direitos humanos, de tal forma que a barreira entre a política e a ativista foi ultrapassada. Ao fim de três mandatos consecutivos decidi não me recandidatar. A posição era incontestada, mas eu não queria cristalizar no cargo. Fui depois eleita vice-presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE e da sua Comissão para as migrações. Foram anos intensos, de grande dedicação, com muitas missões de observação e missões humanitárias. A minha vida política já estava muito centrada numa vertente internacional, por isso a candidatura e a entrada no Parlamento Europeu ocorreram com grande naturalidade. Aliás, boa parte dos temas, atores políticos, representantes de diversas organizações e ativistas com quem lido são velhos companheiros que transitam desses tempos.

Assinala-se em 2022 três anos desde a sua entrada no Parlamento Europeu. Como olha para esta viagem?

Este mandato colocou-nos diante de desafios que não podíamos sequer prever. A pandemia da covid-19 e as suas sucessivas vagas levaram-me a refazer muitas vezes os meus planos. Houve momentos bons e alguns particularmente difíceis. Ainda assim, entre vagas pandémicas, consegui deslocar-me a zonas mergulhadas em crises profundas, da mais diversa natureza, como Cabo Delgado, em Moçambique, o Líbano, a Venezuela. Produzi relatórios particularmente difíceis nessas circunstâncias. Olho para este período como uma fase desafiante, que me levou a refazer muitos planos, mas, acima de tudo e também, como um período bastante gratificante do meu percurso político.

Este foi o caminho que sempre sonhou traçar?

Eu nunca desenhei um percurso político. Tudo foi acontecendo de uma forma muito natural e sem grande planeamento. Os convites foram surgindo e eu fui agarrando algumas oportunidades e deixando de lado outras, que não me motivavam tanto.

Quando surgiu este interesse por esta atividade, dominada, inicialmente, por figuras masculinas?

O meu bisavô materno era um republicano convicto e ativista da I República. Na minha família sempre ouvi falar e debater política. Cresci num ambiente altamente politizado. Para mim, a participação política foi sempre algo absolutamente natural.

Como é ser mulher num “parlamento”?

Nunca vi a minha condição de mulher como algo diferenciador no que diz respeito ao exercício da cidadania e da atividade política. Devo dizer que, dos espaços parlamentares que já experimentei, curiosamente, o Parlamento Europeu foi aquele em que senti a misoginia de uma forma mais dura. O que não deixa de ser surpreendente.

Qual considera que seja, atualmente, o papel da mulher, na política nacional e internacional?

Não gosto de falar do papel das mulheres porque não o entendo como diferenciado relativamente ao dos homens. O que não quer dizer que as mulheres não tenham ainda que remover muitas barreiras para uma mais completa representação em todos os planos da vida política. Pelo contrário, há ainda um longo caminho a percorrer para que se criem as plenas condições que favoreçam uma maior participação. Essencialmente, tudo o que tenha a ver com uma melhor conciliação da vida política, pessoal e profissional. É preciso remover as barreiras criadas por séculos de domínio masculino do espaço político (e não só). Esta última dimensão, sendo intangível será de mais difícil remoção e exige uma luta sem fim.

Quais são as principais causas que defende e porquê?

Trabalho essencialmente em matérias ligadas à política externa da UE, direitos humanos, os direitos dos migrantes e refugiados. Porque é preciso dar voz a quem não a tem, é preciso lutar pelos que mais sofrem, porque acredito na solidariedade e na igualdade de oportunidades como valores civilizacionais indeclináveis.

Fale-nos um pouco do funcionamento do Parlamento Europeu. Há diferenças significativas entre o Parlamento Europeu e a Assembleia da República?

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O funcionamento do Parlamento Europeu torna-se mais massivo e até caótico, devido à sobreposição de agendas entre as diferentes comissões e as múltiplas reuniões que decorrem em simultâneo. Acresce que todos os dias há múltiplas organizações e ativistas das mais diversas causas a solicitar reuniões com os deputados, que se têm de dividir entre o acompanhamento e produção de relatórios, reuniões de comissões e subcomissões, reuniões das delegações, grupos de trabalho, palestras e conferências. Há também essa componente de atendimento a organizações e grupos de pessoas, das mais diversas partes do mundo, que nos procuram para pedir apoio às mais diversas causas ou, simplesmente, para nos fornecerem informações sobre as mais diversas situações. O Parlamento Europeu, ao contrário dos parlamentos nacionais, não tem o poder de iniciativa legislativa, que emana da Comissão Europeia, embora muitas vezes por recomendação do Parlamento, ao qual as diversas diretivas são submetidas, acabando por ter um papel determinante para a versão final dessas diretivas.

Como é o seu dia a dia, enquanto eurodeputada?

Os meus dias são muito diferentes, consoante estou a trabalhar no Parlamento ou em missões externas. Independentemente disso, são sempre dias com pouco tempo disponível. A agenda é geralmente apertada. Começo cedo, por volta das oito da manhã, tenho normalmente cerca de 30 minutos para almoçar e é raro conseguir sair antes das oito da noite. Mesmo assim, quando vou para casa levo sempre uma pilha de informação que não consegui ler durante o dia. A quantidade de informação produzida pelo Parlamento Europeu, pelas instituições europeias e pelas diferentes organizações governamentais e não governamentais é colossal, o que é simultaneamente uma das grandes vantagens e desvantagens de um deputado europeu. Temos sempre muita informação disponível, mas temos mesmo que fazer uma triagem para não enlouquecer.  Ao fim de um tempo, se não soubermos introduzir alguns escapes, pode ser pouco saudável. Apesar disto, ainda procuro guardar algum tempo para ler ou ver um filme ou um episódio de uma série antes de dormir, tarefa em que nem sempre sou bem-sucedida. Mas tento sempre.

Considera que a diplomacia internacional com gestão feminina tem resultados diferentes?

Admito que sim, que pode ter resultados diferentes. Há diferentes estudos que têm vindo a comprovar que processos de paz nos quais as mulheres são envolvidas têm resultados mais duradouros e sustentados. Em geral, a experiência tem-me mostrado que temos uma abordagem mais pragmática e focada dos problemas e isso pode levar a resultados diferentes.

Desde o início da sua carreira que sempre se mostrou uma defensora nata dos direitos humanos. Quais são as situações que considera mais preocupantes, a nível nacional e internacional?

A um nível e a outro as preocupações não são muito diferentes, na sua essência. Preocupa-me a lentidão da Justiça, a falta de garantia de acesso adequado à Justiça pelos setores mais vulneráveis da população, as condições de funcionamento dos estabelecimentos prisionais, a falta de perspetiva de reabilitação e reinserção social de quem passa pela prisão, o uso excessivo, e tantas vezes abusivo, do meu ponto de vista, da prisão preventiva, a Justiça convertida num espetáculo, uma certa politização da Justiça. Preocupa-me a descriminação e o racismo, a violência de género. A falta de proteção dos idosos e uma proteção deficiente das crianças, com um uso excessivo da institucionalização. Tudo isto pode ser transposto para o nível internacional, com diferentes cambiantes, consoante o país ou a região de que falemos. Mas, olhando mais especificamente para a dimensão internacional, posso dizer que me perturba muito que, em pleno século XXI, ainda persista pena de morte em tantos países. Preocupa-me a negação da proteção internacional a milhares de refugiados, decorridos todos estes anos sobre a convenção de Genebra de 1951. Revoltam-me os retrocessos que se verificam ao nível dos direitos das mulheres e da saúde sexual e reprodutiva. Preocupa-me que a impunidade reine sempre que se verificam violações de direitos humanos. Desespera-me a negação de direitos fundamentais por tantos Estados. Havia tanto para dizer…

O que é que considera que cada um de nós, enquanto cidadão comum, pode fazer para lutar por esta causa tão nobre?

Não compactuar nem transigir, denunciar, erguer a nossa voz, alertar os nossos concidadãos, proteger as vítimas, nunca desistir e, sobretudo, pensar que não é um problema dos outros. Violar o direito de uns é violar os direitos de todos.

Como se vive o processo de decisões, ou seja, como se gere a pressão dos interesses internacionais e protege a liberdade das populações?

Não pode haver interesses internacionais acima dos interesses e dos direitos das populações. Não podemos continuar a pensar que é possível viver bem, seja onde for, à custa de bens cuja produção resultou em violações de direitos humanos noutra parte do mundo. Com a globalização, as nossas economias e até a segurança, a estabilidade e o bem-estar dos diferentes países estão cada vez mais conectados. Tudo o que fizermos com efeitos nocivos para outros povos terá cada vez mais impacto nas nossas vidas… é o chamado efeito de retorno, que é cada vez mais visível.

Qual é o perfil de um eurodeputado em missão?

Não se pode falar de um perfil de um deputado em missão. Na generalidade dos casos, há, da parte dos deputados, a noção de representação de um bloco de países e da responsabilidade diplomática que isso acarreta. O discurso individual tem muitas vezes que ser calibrado em função daquelas que são as posições do todo que representamos. Mas, depende muito da missão e da condição em que o deputado a íntegra.

E como entende o verdadeiro espírito de uma missão? Como se ultrapassa a falta de segurança de um país em guerra, por exemplo?

Depende do tipo de missão de que se esteja a falar. Podem ser missões de cariz mais político, diplomático ou humanitário ou uma junção das três vertentes. As questões de segurança são sempre as mais impactantes para quem lê as notícias e acompanha o desenrolar de algumas dessas missões. Mas há sempre uma avaliação das condições de segurança e cada país procura proteger devidamente quem acolhe. Mas, como em tudo na vida, o mais importante é ter bom-senso na gestão das situações e adotar os comportamentos adequados. Costumo dizer que tudo na vida comporta riscos, até respirar. Por isso, nunca tenho preocupações de maior. O importante é confiar. Sobretudo quando se leva a cabo missões sem a cobertura das instituições e tituladas por nós próprios, como a que fiz em 2021 ao norte de Moçambique, sozinha, por sentir que era importante ir ao terreno e falar com as pessoas, num tempo que não se compadecia com a espera imposta pelas lógicas e os mecanismos de decisão institucionais.

Há casos de processos que se arrastam durante anos. Neste sentido, quais são, ou devem ser, as principais características de alguém que lidera uma missão internacional?

Conhecimento, empatia, persistência e resistência. 

Quais considera que sejam as principais ameaças no contexto internacional?

O avanço dos poderes autocráticos, iliberais e uma crescente e preocupante perda de capacidade de resposta das democracias.

Até ao momento, qual foi a missão que mais a impactou? E porquê?

É difícil apontar uma, tenho várias. Guantánamo, por exemplo, ainda me persegue. Como foi possível aos EUA, exemplo para tantos de Democracia e de defesa dos direitos humanos, estabelecerem um combate ao terrorismo que ofende os mais elementares princípios do Estado de Direito e dos direitos humanos? Como é possível que se tenha detido e torturado tanta gente, destruído tantas vidas, isolado tantos homens do contacto com os seus amigos e familiares, sem culpa formada. Sim, não podemos esquecer que a esmagadora maioria das centenas de homens que por lá passou acabou por sair da prisão sem culpa formada. Entrar em Guantánamo e ver aqueles homens detidos, como farrapos de vidas desfeitas, ainda me persegue. Também recordo amiúde Lampedusa, porque eu nunca choro nos encontros com as vítimas, fico até estranhamente fria. Muitas vezes, abraço as pessoas, dou-lhes literalmente a minha mão, procuro confortá-los, mas nunca choro. Nessa missão, depois dos encontros com refugiados, fui ao Centro Médico de Lampedusa para conversar com o médico da ilha, Pietra Bartolo, a quem os refugiados deram o nome de Dr. Hope (Esperança) e que, agora, é meu colega no Parlamento Europeu. Chorei pela primeira vez ao ouvir as suas histórias durante as diferentes vagas migratórias e ao ver as suas fotografias. Durante vários dias não consegui comer devidamente… Moçambique, onde fui em junho do ano passado, é uma missão que continua no meu horizonte, quero voltar este ano. A minha última missão foi de observação eleitoral das eleições regionais e locais da Venezuela e posso dizer que, quando escrever as histórias da minha vida, haverá um capítulo chamado Venezuela. Ainda é muito cedo para falar sobre isso, mas foi deveras impactante.

O que espera do futuro e como gostaria de ver o seu país e o mundo daqui a alguns anos?

Tendo em conta o período que o país e o mundo atravessam, espero que os próximos anos nos permitam ultrapassar esta pandemia e os seus efeitos e que o mundo encontre vias sustentáveis para a paz e para o desenvolvimento.

De que forma será possível alcançar esse feito? 

Precisamos de domesticar o egoísmo e o apetite excessivo pelo lucro e fazer com que todos tenham acesso à vacinação contra a covid-19, independentemente do sítio em que nasceram ou vivem. E temos de aprender que só estaremos todos salvos quando todos se tiverem salvo. Isto é muito mais do que uma frase bonita e tem impacto em todas as esferas da nossa existência, enquanto humanidade. Necessitamos de investir muito na diplomacia para a paz, percebendo que sem paz não há verdadeiro desenvolvimento.

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