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Daniel Serrão

Daniel Serrão

Apesar de não conseguir explicar exatamente o que leva as pessoas a criarem um vínculo com determinada terra, Daniel Serrão, que nasceu em Vila Real, na freguesia de S. Dinis, sente-se, de raiz “verdadeiramente transmontana”. “O Homem é um animal de território. Não sabemos que temos esse vínculo à terra, mas nota-se quando lá chegamos. Sinto esse vínculo mesmo só tendo lá vivido durante dois anos”, referiu. Para trás, nas memórias de família, ficam histórias de uma época em que a sociedade se encontrava profundamente organizada em classes, característica que motivou inúmeras desavenças por motivos do coração. Aliás, o amor dos avós transmontanos do professor catedrático só foi possível devido a um “rapto consentido”. “A minha avó era Valadares, descendente do Barão de Ribeira de Pena e o meu avô era um comerciante. Tinha uma situação razoável, não era rico, mas tinha um grande armazém, onde vendiam de tudo (…) E pronto, apaixonou-se pela menina e queria casar com ela, mas os pais opuseram-se terminantemente porque não eram do mesmo ‘nível'”, contou, acrescentando que a única solução encontrada pelo casal foi a de casarem à revelia dos de Ribeira de Pena, que acabaram por nunca aceitar o seu avô como membro da família.
Durante a adolescência, Daniel Serrão deambulou por cidades como Viana do Castelo, Coimbra e Aveiro devido à profissão do pai, que era engenheiro da Junta Autónoma das Estradas. “Motivos políticos” levaram-no a ser transferido entre cidades, passando de diretor a subdiretor e acabando o seu percurso na cidade do Porto. Dos tempos de Aveiro, Daniel Serrão guarda o sabor especial da juventude, o momento da “construção da identidade”. “Lá fiz a minha grande biografia e comecei a abrir os olhos para muita coisa. Essa abertura ficou marcada para sempre”, confessou.

Medicina: um segredo para acalmar a paixão pelas pessoas

O entusiasmo pela história “das gentes” – demonstrado ao longo de três horas de conversa – denuncia aquele que será, talvez, o maior vício de Daniel Serrão: as pessoas. “Sempre tive, continuo a ter e vou morrer com esta paixão”, assegurou, com a certeza dos seus 84 anos expressa no semblante. A medicina surgiu, por isso, como uma forma de dar resposta à ânsia de perceber as motivações da sociedade. “Eu queria ser psiquiatra porque é, de facto, a área da medicina que nos permite conhecer as pessoas. Contudo, acabei por ir para Anatomia Patológica, que é a ciência do corpo”, referiu, salientando que já fez “alguns milhares de autópsias”. “Mas sabem o que é mais engraçado? Quando começava uma autópsia, a primeira coisa que eu fazia era olhar para aquele cadáver como pessoa e pensar como teria sido a sua vida”, sustentou, garantindo que, posteriormente, o corpo lhe contava exatamente a biografia de alguém.
Depois de ingressar no curso de Medicina, em 1946, durante o qual viveu em quartos alugados nas ruas do Rosário, Torrinha e Bragas, seguiram-se difíceis períodos de adaptação à cidade do Porto. “O espaço só se transforma em lugar quando eu estabeleço com ele uma relação pessoal e demorou muito tempo para que o Porto se transformasse em lugar”, contou, revelando que esse fenómeno só aconteceu no momento em que decidiu “descer a rua, até à margem do Rio Douro, e ir à Foz a pé”. “Hoje, todo o Porto é o meu lugar, é onde me sinto perfeitamente bem”, garantiu o professor catedrático.
A escrita foi outra das paixões que cedo começou a cultivar. Aliás, durante o tempo de universitário, Daniel Serrão escreveu para vários jornais e foi, inclusivamente, diretor do bissemanário “Praça Nova”, experiência que descreve como “muito interessante”. “Havia pouca abertura para a criatividade em geral. E eu achava que, apesar de tudo, era possível, dentro do próprio regime, ter algum espaço para criatividade”, explicou, admitindo ter escrito com “alguma intenção política”, na perseguição da ideia de que “a geração de 30”, a sua, “era aquela que devia substituir a de 60”, de Salazar. Dos artigos que escreveu, apenas um, intitulado “O dever de quem governa”, elaborado para o JN, acabou por ser censurado.
Pouco tempo depois de terminar o curso de Medicina, com uma média final de 17 valores, Daniel Serrão rumou ao convento de Mafra para cumprir serviço militar, período que afirma categoricamente ter odiado. “Durante o tempo militar, eu vivia olhando para um outro Daniel que andava ali a fazer umas continências. Era outra pessoa. Foi um verdadeiro tempo de dissociação de personalidade, não chegou à esquizofrenia mas andou perto disso”, descreveu. De regresso ao Porto, já em 1958, o médico casou com Maria do Rosário de Castro Valladares Souto, por coincidência uma prima afastada que morava na Rua do Rosário. “Morávamos perto: eu na Rua do Pombal, ela na Rua do Rosário e conhecemo-nos”. De resto, “aconteceu uma coisa misteriosa: o amor”, salientou. Dois anos depois do casamento, o casal conseguiu comprar um carro, “o mais barato que havia na altura”. “E só aí é que tiraste a carta, eu já a tinha e tu não!”, brincou a esposa, que foi das primeiras professoras licenciadas em educação física do país.
Apesar de se ter doutorado em Anátomopatologia e de, logo de seguida, ter sido contratado como 1.º assistente na faculdade, Daniel Serrão nunca deixou de observar pacientes. “Dava-me mais prazer ver doentes, mas tive de me adaptar. Se fui infeliz? Não, não fui. Consegui ser um bom anátomopatologista, reconhecido no país e no estrangeiro. Nunca fui dado a frustrações”, garantiu.

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Encarar a morte como um acontecimento natural

Trabalhar como anátomopatologista – fazer o diagnóstico de doenças através do exame microscópico de células e tecidos ou macroscópico das peças cirúrgicas – implica, segundo Daniel Serrão, que o profissional “tenha resolvido o seu problema pessoal com a morte”. “Enquanto não fizer esse esforço é melhor não se aproximar de cadáver nenhum nem tentar fazer uma autópsia porque vai correr muito mal”, assegurou, defendendo que a morte é apenas o reconhecimento de que a nossa forma de estar no mundo, ou seja, viver, tem um limite temporal.
Entre as milhares de autópsias realizadas pelo professor esteve o primeiro caso de sida em Portugal, apesar de, na altura, a doença ainda não ser conhecida. “Identifiquei as lesões e disse que aquilo não cabia em nenhum quadro clínico conhecido”, contou, explicando que, pouco tempo depois, na América, se falou pela primeira vez no vírus. “Revi o caso e as lesões eram as típicas, nos gânglios e no fígado, mas já não adiantava nada. A esperteza é descobrir. Tenho pena de não ter publicado o caso mesmo sem diagnóstico, mas não tinha muito tempo”, notou. De resto, as autópsias dos casos mais “estranhos” foram feitas em Angola, entre 1967 e 1969, quando foi mobilizado para prestar serviço como anátomopatologista. Ainda antes de partir para Luanda, e já com seis filhos, quatro raparigas e dois rapazes, Daniel e Maria construíram uma casa na rua de S. Tomé – na qual ainda vivem – através de um empréstimo concedido pela Caixa de Previdência do Ministério da Educação com juros a 4%. Com a revolução de Abril, os juros dispararam, preocupando o casal, uma vez que ainda faltavam dez anos para o fim do pagamento da casa. “Pagar, naquela altura, juros de 20 ou 25% era completamente incomportável porque os salários não aumentaram nessa proporção. Mas mandaram-me um ofício a dizer que o contrato iria ser honrado até ao final do prazo e, por isso, nunca paguei mais do que os 4%”, referiu.

O “saneamento selvagem” e a construção do laboratório

Apesar de, após a revolução, ter sido eleito pelos alunos para o Conselho Pedagógico, entidade responsável pela transformação da faculdade numa estrutura democrática, Daniel Serrão acabou por ser demitido, por interferência “de quem queria controlar o poder”. “Como eu conseguia, com argumentos, fazer com que votassem nas minhas propostas, acharam que o melhor seria mandarem-me embora”, contou, admitindo ter ficado “profundamente sentido com a instituição”,mesmo tendo regressado um ano depois e tendo ganho o salário dos 12 meses em que esteve ausente. Na altura em que foi impedido de exercer as suas funções de docência – e não sendo uma pessoa “dada a sofrimentos” – montou uma laboratório privado de Anatomia Patológica. “Ganhei mais dinheiro depois de ter sido demitido do que em toda a minha vida anterior. Fiz um milhão e seiscentas mil análises. Se fossem todas pagas tinha ficado multimilionário”, afirmou, acrescentando que manteve a atividade mesmo depois de ter sido reintegrado na faculdade.
A ligação à Bioética expressou-se de forma mais tardia. A professora de Deontologia Profissional da instituição adoeceu e Daniel Serrão foi convidado a lecionar a disciplina. “Assumi a regência gratuitamente, mas com a liberdade de ser eu a definir o programa”, revelou.
As mil e uma peripécias da vida do médico transformaram-no num homem de sorriso fácil. “Hoje rio-me mais do que antigamente mas isso é característico dos velhos. Fui ‘cara fechada’ durante muito tempo porque era necessário, como dizia o outro, impor respeito”.
Grande parte da afetuosidade do professor foi conquistada pelos seus dez netos, com os quais mantém uma relação descontraída. “Quando somos pais olhamos para os filhos como um produto de risco.Com os netos, o risco é transferido para os pais. Para nós, avós, só fica o bom. Só queremos que se sintam bem e que estejam felicíssimos”, afirmou.
Para o professor, a honestidade e o diálogo são fatores fundamentais para a construção de uma geração capaz de refletir verdadeiramente sobre temas como o aborto. Daniel Serrão acredita que, em primeiro lugar, “era preciso fazer um referendo com tempo, de modo a que houvesse um ou dois anos de informação para que as pessoas soubessem o que está em causa”. “A única aposta possível tem de ser na juventude, criar uma geração que seja educada para não ter gravidez na adolescência. A sexualidade é o que há de mais banal, o difícil é o amor, agora o sexo? Fazem-no os cães com a maior facilidade”, referiu, defendendo que aquilo que se pede é apenas uma atitude de responsabilidade. De resto, entre dias passados em conferências, estudos e pensamentos, Serrão sabe o que é que ainda lhe falta fazer. “A minha curiosidade por tudo é permanente. Enquanto tiver essa curiosidade tenho muito para fazer, por isso, falta-me realizar tudo aquilo que a minha curiosidade me exigir”, apontou, bem disposto. “O que é… não sei”, concluiu.

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