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Cristina Rodrigues

Cristina Rodrigues

“É importante representar o tempo e a sociedade em que vivemos com uma visão crítica”

Cresceu rodeada de arte, a principal protagonista das suas primeiras memórias, “populadas de momentos felizes”. Entre o interesse pela música, bailado, teatro, cinema e literatura, as artes, em geral, e as plásticas, em particular, foram assumindo especial relevância na sua vida, o que leva mesmo Cristina Rodrigues a admitir que “sempre quis ser artista plástica”. Um desejo que pode ter sido reforçado pela sua “formação em arquitetura”, onde conseguiu captar “mais ferramentas” para a sua produção artística.

A artista portuense iniciou a sua carreira artística em Manchester, no Reino Unido, cidade que a acolheu durante vários anos e onde se tornou na primeira estrangeira a conseguir uma bolsa da Manchester Metropolitan University. Regressada ao seu país natal, Cristina Rodrigues continuou a dar cartas no setor da cultura, com exposições de Norte a Sul do país. Agora, prepara-se para inaugurar “um registo único sobre as danças tradicionais na Península Ibérica”, intitulado “Mordomas”, que recria os mordomos e mordomas, emblemáticos de várias regiões portuguesas e espanholas atravessadas pelo Caminho de Santiago.

A instalação artística é “composta por 16 esculturas de figuras humanas em ferro, com 2,10 metros de altura, com uma saia têxtil, com 1,20 metros de diâmetro”, e será apresentada no Museu Municipal de Caminha já no próximo dia 11 de junho.

Em todas as suas obras, que se estendem do desenho à pintura, passando pela escultura e a instalação, a artista trabalha diretamente em todas as fases. “O meu processo criativo começa com a investigação e recolha etnográfica”, partilhou, em declarações à VIVA!, destacando a importância de investigar, antecipadamente, a história do lugar e as pessoas que vão compor a narrativa.

Conheça todo o percurso e obra da portuense Cristina Rodrigues nesta entrevista.

Como e em que altura da sua vida descobriu o seu interesse pelas artes? E pelas artes plásticas, em particular?

Home is the Cathedral, exhibition by Cristina Rodrigues

O meu interesse pelas artes, em geral, e as artes plásticas, em particular, é algo que está presente nas minhas memórias desde os primeiros anos da minha infância. As minhas primeiras memórias estão populadas de momentos felizes em que as artes eram protagonistas. Assistia com entusiamo aos bailados de Tchaikovsky e às óperas de Verdi, Puccini e Bizet, que eram transmitidas na RTP2, durante as tardes de sábado e domingo, nos anos 80. Lembro-me de contar os dias até ao fim de semana, quando podia visitar com os meus pais as exposições e jardins da Casa de Serralves, numa altura em que o museu ainda não existia e a casa recebia exposições únicas na cidade do Porto.

Um pouco mais tarde, durante a minha adolescência, tinha aulas de dança contemporânea no Balleteatro e numa escola de dança na Rua de Cedofeita. Fazia esse percurso pela Rua Miguel Bombarda onde, muitas vezes, visitava a Galeria Fernando Santos. Foi aqui que vi, pela primeira, vez obras dos artistas plásticos Antoni Tàpies e Bosco Sodi. Esta galeria tinha já uma estética minimalista e foi uma das primeiras, no país, a expor alguns dos mais importantes artistas contemporâneos. E além das artes plásticas cultivava, simultaneamente, uma grande paixão pelo cinema. Visitava todas as semanas a Casa das Artes, que, na altura, dispunha de uma sala multimédia com uma riquíssima filmoteca e foi lá que vi, pela primeira vez, obras de Vittorio De Sica, de Jean-Luc Godard, de John Cassavetes, de Wim Wenders, de Bigas Luna e de Pedro Almodóvar – o meu preferido de sempre.

A música, o bailado, o teatro, o cinema e a literatura sempre me interessaram. No entanto, foi no desenho e na pintura que encontrei a minha forma de expressão de eleição. Sempre quis ser artista plástica e a minha formação em arquitetura reforçou esse desejo e trouxe mais ferramentas à minha produção artística.

Como define a sua obra?

A minha obra parte sempre de um processo de investigação sobre uma determinada temática, seja esta a dança, as migrações, o mar, a paisagem, entre outros. Faz parte do meu processo criativo a pesquisa sobre a memória do lugar e as narrativas das pessoas que o habitam. Utilizo vários métodos de investigação e recolha etnográfica neste processo e depois passo à conceção da obra propriamente dita.

Um exemplo deste método de trabalho é a instalação de arte e documentário com o mesmo nome – “Travessia” – sobre as migrações na cidade de Madrid. Durante dois anos (2018 – 2019) fui artista residente na MATADERO, em Madrid, e entrevistei 28 migrantes originários das Honduras, El Salvador, Républica Dominicana, Venezuela, Perú, Argentina, Marrocos, Angola e Senegal, que se tinham mudado para a cidade de Madrid e me contaram as suas histórias de vida. A instalação “Travessia”, com 12 metros de comprimento por 6 metros de largura e 7 metros de altura, é composta por um mar têxtil suspenso, que representa a viagem marítima dos migrantes, e por 28 figuras humanas têxteis, com as suas vidas suspensas sobre o mar.

Outro exemplo é a instalação de arte e documentário “Mordomas / Mayordomos”, sobre as danças rituais em territórios ao longo do Caminho de Santiago. O processo investigativo informou a conceção da obra de arte.

Memories of the Sea, Cristina Rodrigues

Entre o desenho, a pintura, a escultura e a instalação, o que mais a apaixona e porquê?

Não tenho uma preferida, mas ser artista plástica é a minha atividade profissional. Muitas das minhas obras têm que responder aos desafios e especificidades do local de exposição, seja ela permanente ou temporária e, nesse sentido, diferentes espaços apresentam diferentes exigências e requerem diferentes respostas. O incentivo para encontrar o melhor meio de desenvolver um tema e apresentá-lo da forma mais estimulante para o visitante é, provavelmente, o que mais me fascina na minha profissão.

As suas obras têm presentes temáticas preponderantes da sociedade, como o papel da mulher, os movimentos migratórios, as tradições e costumes dos locais. Na sua opinião, qual é a importância de dar visibilidade a estes temas através da arte? De que forma é que a arte pode “mudar” mentalidades?

As histórias do homem e da mulher comuns – nós, as pessoas com quem nos cruzamos no quotidiano – são temas poderosos. Ao longo de mais de uma década a registar as memórias de pessoas de diferentes grupos sociais e nacionalidades, tenho aprendido imenso e a minha própria experiência cruza-se com as experiências daqueles que entrevisto.

O contacto com a obra de autores como Marc Augé ou Georges Duby e Jacques Le Goff, fundadores da Escola dos Annales, em França, revolucionaram a forma de escrever e olhar para a sociedade não representada ao longo da História. Antes deles, a História representava maioritariamente a elite social, era uma espécie de Instagram onde todos eram ricos, viajavam, usavam as roupas da moda e comiam bem.

Mordomas, Cristina Rodrigues

É importante representar o tempo e a sociedade em que vivemos com uma visão crítica e com verdade. No presente, quando é criada, uma obra de arte é essencial para a construção de uma visão crítica sobre sociedade atual. No entanto, o tempo passa, as conceções sociais mudam e essa obra passa a ser mais um testemunho do momento em que a mesma foi criada, um registo da nossa passagem e da nossa forma de pensar sobre um determinado tema naquela altura.

Quais são as etapas subjacentes ao processo de construção de uma obra? Todas as fases são executadas por si?

O meu processo criativo começa com a investigação e recolha etnográfica. Depois desenho detalhadamente as esculturas ou instalações num projeto técnico de arquitetura. Elaboro desenhos à mão em várias escalas com vistas gerais das obras de arte e o seu enquadramento no contexto arquitetónico – plantas, cortes e alçados – e, posteriormente, desenho os detalhes à escala 1/5 e 1/1. Quase todas as minhas instalações de maior dimensão foram detalhadas até à escala real (escala 1/1).

Depois de finalizado todo o projeto da obra de arte faço testes com os materiais de execução para estudar a resistência, texturas e estereotomia. É também nesse momento que desenho o projeto de iluminação, se houver.

Simultaneamente, trabalho no estúdio com a equipa têxtil e executamos pontos de crochet, escolhidos ou criados por mim, para obter a textura e estereotomia que pretendo.

Trabalho em todas as fases do processo de produção, desde as fases de investigação e projeto, até à produção das obras de maior escala que, após todas estas fases, são produzidas por equipas especializadas que trabalham regularmente para o estúdio.

Em junho vai apresentar a instalação “Mordomas”. Como surgiu a ideia de conceber uma obra de arte que recria os mordomos e mordomas, emblemáticos de várias regiões portuguesas e espanholas atravessadas pelo Caminho de Santiago?

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No ano passado, fui convidada pela Acción Cultural Española a participar no projeto “Una ruta por los territorios de nuestro imaginario”, produzido por esta instituição, em colaboração com o Instituto de Patrimonio de España, a Dirección General de Industrias Culturales y Cooperación e oito Comunidades Autónomas de Espanha. O conselheiro cultural e diretor artístico espanhol, Mateo Feijóo, desafiou-me a produzir uma obra de arte contemporânea sobre as danças tradicionais e rituais de algumas localidades emblemáticas da Andaluzia e Extremadura ao longo do Caminho de Santiago – Cumbres Mayores, Encinasola, Hinojales e Fregenal de la Sierra.

Como resposta a este repto, desenhei uma instalação de arte contemporânea e dois documentários sobre as danças rituais e os cantares em territórios ao longo do Caminho de Santiago, um gravado em Espanha e o outro em Portugal, em concreto em Caminha, um ponto nevrálgico do Caminho Português da Costa. As danças e cantares tradicionais de Caminha integram a Romaria de S. João D’Arga, um contexto muito similar às romarias espanholas retratadas neste projeto artístico. A obra será uma reflexão de dois costumes semelhantes de localidades de dois países, separadas por mais de 1000 km, mas unidas pelo Caminho de Santiago.

As danças populares e rituais associados são, muitas vezes, entendidos como baixa cultura e, deste modo, tornou-se um grande desafio retratar este legado, em Espanha e Portugal, fazendo justiça a todos os que dedicaram as suas vidas a estas práticas. Este é um importante registo da sociedade contemporânea e das suas formas de expressão artística. A instalação de arte é composta por mais de uma dezena de esculturas de figuras humanas em ferro com uma saia têxtil, eternizando, assim, o movimento das saias utilizadas pelos bailarinos espanhóis – os Mayordomos – e as bailarinas portuguesas – as Mordomas.

A instalação e documentário serão apresentados, pela primeira vez, ao público a 11 de junho no Museu Municipal de Caminha, onde ficará em exposição até 30 de setembro de 2022. Este projeto fará posteriormente uma itinerância expositiva em Espanha.

Que significado tem esta obra para si?

Memories of the Sea, Cristina Rodrigues

Quando comecei este projeto artístico queria, acima de tudo, representar os dançarinos portugueses e espanhóis com dignidade. É um enorme privilégio ter permissão para entrar momentaneamente nas suas vidas e observar os costumes, ouvir as suas histórias no seio das suas comunidades e registar a sua vulnerabilidade quando se expõem frente a uma câmara. Este projeto permitiu-me conhecer um pouco melhor outros legados do meu país e do país vizinho.

Em Caminha registei algumas das danças e cantares mais marcantes para a cultura popular portuguesa, e para a cultura minhota em particular, como o vira minhoto e a rosinha. Um dos entrevistados, Octávio d’Olaia, contou-me que quando o regime salazarista proibiu as danças, na Serra D’Arga, longe do olhar da PIDE, os bailarinos continuaram a encontrar-se regularmente e a dançar. A dança foi naquele tempo de opressão, e continua a ser hoje, uma forma de liberdade.

Na Andaluzia e na Extremadura registei a dança do tambor de Encinasola, o fandango, e as danças associadas a romarias em Cumbres Mayores, Hinojales e Fregenal de la Sierra. Fui acolhida nestas comunidades com grande entusiamo e quase 50 entrevistados partilharam comigo, sem pudores, algumas histórias de vida.

Acredito que este é um registo único sobre as danças tradicionais na Península Ibérica, um retrato contemporâneo sobre os folclores português e espanhol.

Quando começou a ser pensada e quanto tempo demorou a ser produzida?

O tipo de obra começou a ser pensado em julho de 2021, logo no convite que me foi endereçado e ficou concluída em maio de 2022. As filmagens em Portugal decorreram durante março de 2022 e as filmagens em Espanha durante abril e maio.

Ao longo do seu percurso profissional já passou por várias cidades. Em Portugal, já viveu no Porto, em Lisboa e no Algarve e no estrangeiro em Manchester, Reino Unido. O que é que estes locais lhe acrescentaram enquanto artista?

A nossa cultura é uma construção que está sempre em aberto até ao final das nossas vidas. Os lugares por onde passamos e onde vivemos têm um impacto na construção do nosso ideário cultural.

Como arquiteta, trabalhou no apoio aos projetos de execução e especialidades das estações da Trindade, Lapa, Carolina Michaelis e Casa da Música e em dois dos primeiros Projeto de Interesse Nacional (PIN), o projeto do Eco resort Zmar e o projeto do Autódromo Internacional do Algarve. Como foi esse período?

Foi um período de grande aprendizagem. A Escola de Arquitetura do Porto é profundamente influenciada pelo arquiteto Siza Vieira, que instituiu na sua prática profissional a importância da memória do lugar. Isto traduz-se da seguinte forma: quando iniciamos um projeto de arquitetura estudamos exaustivamente o lugar, o contexto a que este se destina. Depois começamos a conceber o projeto e, por último, fazemos o projeto de execução com detalhes construtivos em escalas muito próximas da real. Ainda hoje aplico esta metodologia, também no meu trabalho artístico.

A metodologia do arquiteto combinada com a etnografia são fundações basilares da minha prática artística.

Em 2010, recebeu uma bolsa de Doutoramento da Manchester School of Art. Uma bolsa que nunca fora alcançada por nenhum estrangeiro. O que sentiu ao alcançar esse feito?

Pouco depois de chegar a Manchester comecei a dar aulas como Professora Assistente no M.Phil. em Arquitetura Paisagista da Manchester School of Art, a escola de artes e arquitetura da Manchester Metropolitan University. Nessa altura candidatei-me à bolsa de doutoramento na Manchester School of Art em Art and Design. Durante seis meses estudei exaustivamente, elaborei a minha candidatura, tornei-me a primeira estrangeira a conseguir aquela bolsa da universidade inglesa e passei, também, a ser investigadora da Manchester School of Art. Um ano mais tarde, em 2011, o meu projeto de investigação, “DfD – Design for Desertification”, valeu à universidade um prémio financeiro do Arts and Humanities Research Council.

Entre 2010 e 2014 lecionei, como Professora Convidada, na Escola de Belas Artes da Zhengzhou University of Technology, na China. Foi um período muito importante na minha vida para sedimentar as minhas metodologias de investigação e processos de trabalho.

De todas as obras que já concebeu, qual foi a que mais a tocou até então e porquê?

Na realidade não consigo eleger uma, seria quase como pedir-me que selecionasse um filho preferido. Consigo, no entanto, destacar algumas obras que representam momentos de evolução e transformação no meu processo criativo: o conjunto de três instalações de grandes dimensões “Memórias do Mar”, em exposição permanente no Vila do Conde Porto Fashion Outlet; e as instalações de exterior “Clamor da Maré Cheia” originalmente concebidas para Lisboa, Vila do Conde, Valongo e Baião.

As duas obras, pela natureza das suas dimensões e por ocuparem espaços públicos, representaram um grande desafio.

Onde é que os leitores poderão ver as suas obras ao longo deste ano?

Podem ser visitadas no Museu Municipal de Caminha, de 11 de junho a 30 de setembro, no exterior do Fórum Cultural de Ermesinde, no exterior do Mosteiro de Santo André de Ancede, em Baião, e no Vila do Conde Porto Fashion Outlet.

Qual é o seu maior sonho enquanto artista?

O meu maior sonho é viver uma vida longa, com saúde, rodeada das pessoas de quem mais gosto e continuar a minha produção artística até que a minha vida cesse.

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