Para o bem e para o mal, houve personalidades que, pelo seu percurso, acabaram por entrar na boca de todos os portuenses e muitas vezes nem disso nos damos conta. Afonso Martins Alho, que deu origem à expressão “fino como um alho”, é o caso mais evidente. João da Costa Fajardo é outro exemplo de tripeiros que, apesar de terem deixado o mundo dos vivos há muito tempo, continuam bem vivos no falar portuense. E por razões bem distintas!
João da Costa Fajardo, Afonso Martins Alho, o britânico Thomas William Burgess ou o antigo jogador e treinador do FC Porto, Miguel Siska, são nomes que ficaram e que deram origem a palavras e expressões com um determinado sentido e que ainda hoje são usadas pelos portuenses. A saber: “esperto como o Alho”, “fajardo ou fajardice”, “burgesso” (ou brugesso, como é mais comum ouvir por estas bandas) e “bater no Siska”, esta última talvez a menos usada e só lembrada pelos mais antigos.
São histórias interessantes e mesmo divertidas, que nos permitem perceber que a língua não se impõe, ou seja, normalmente primeiro as palavras e expressões são usadas com um significado definido e comummente assumido pelas pessoas e só depois dicionarizadas e não o contrário (como é o caso da recente “inclusão” da palavra Pelé no dicionário da editora brasileira Michaelis). E só muito depois de serem utilizadas pelos falantes é que passam à “categoria” oficial de palavra portuguesa, como é o caso de salazarismo ou gonçalvismo.
Neste momento, quase toda a gente sabe o que é uma marselfie (tirar um autorretrato, uma selfie, com o presidente Marcelo), mas será que, daqui a 10 anos, a palavra continuará a ser utilizada? Não sabemos. Mas sabemos que palavras que utilizávamos diariamente já são arcaísmos: disquette (que, para muitos, ainda é alta tecnologia e para outros já é história…), troleicarro ou a fantástica expressão caída em desuso “deitar a ramada abaixo” (era quando as hastes do trólei saíam dos fios elétricos, os fios da catenária) são prova evidente desta mecânica linguística. Sobre o último caso, muitas vezes cheguei tarde a casa, porque a ramada tinha ido abaixo. Hoje, se dissesse isso, pensariam eventualmente que teria sido por causa de uma bebedeira, pois a palavra ramada, num segundo sentido, também para o estado de embriaguez remete…
Recordemos, então, as histórias associadas aos exemplos elencados no início e por que razão ficaram na boca do povo tripeiro até aos dias de hoje, originando novos vocábulos e expressões, cujos sentidos são dominados pela esmagadora maioria dos falantes do Grande Porto.
Afonso Martins Alho (século XIV) – Esperto como um alho
Fino, expedito. Fino como um alho. Um elogio à desenvoltura e esperteza de alguém. A expressão remete para o mercador portuense Afonso Martins Alho que, no século XIV, foi enviado pelo rei D. Afonso IV a Inglaterra negociar com Eduardo III um acordo comercial, o que haveria de ser a primeira aliança luso-britânica. As condições conseguidas por Afonso Alho foram tão vantajosas que, rapidamente, as pessoas passaram a utilizar a expressão “fino como o Alho” para designar alguém muito esperto. Com o uso, o povo transformou o artigo e o diplomata em vegetal, uma enorme injustiça em relação a este ilustre portuense (a quem foi dado nome de uma das ruas mais pequenas da cidade).
João da Costa Fajardo (1825-1908) – Fajardice | Fajardo
Vigarice. Truques e manobras muito hábeis e ardilosos que só os maiores vigaristas (os fajardos) conseguem executar. Com o passar do tempo, também passou a designar um reles trauliteiro, um troca-tintas, pessoa que não é confiável. O termo fajardice é neologismo da segunda metade do século XIX e surge por causa de João da Costa Fajardo, célebre aventureiro do Porto nascido em 1822, que deu muito que falar devido ao seu repreensível comportamento. A sua (má) fama foi tanta que, em 1888, em Chaves, deu título a um jornal semanário de crítica mordaz, o Fajardo, e o seu nome passou a integrar o léxico português.
Thomas William Burgess (1872-1950) – Burgesso
Atrasado, apalermado. Pessoa muito lenta, desajeitada e normalmente corpulenta. É costume pronunciar-se brugesso. Há quem afirme que o termo vem do nadador inglês Thomas William Burgess, o segundo homem a conseguir atravessar o Canal da Mancha a nado, à 16ª tentativa, em 1911, talvez porque, na altura, entre a primeira e a 15.ª tentativa, se afigurasse aos olhos do público uma estupidez tentar tal proeza e falhar sempre e, pior do que isso, insistir tanto. Só um grande palerma, terá pensado o povo, seria capaz disso. O facto de ser uma palavra que se enraizou no Porto tem a ver com a grande influência que os ingleses sempre tiveram, nomeadamente com os negócios do vinho do Porto. Outra possibilidade é burgesso vir de burguês, no sentido de vulgar, ordinário.
Miguel Siska (1906-1947) – Bater no Siska
Criticar veementemente. Em alusão ao jogador e, depois, treinador do FC Porto de finais da década de 30, início de 40, tripeiro de origem húngara, que se naturalizou português e sempre defendeu as cores do clube, Mihaly Siska. Foi uma expressão muito utilizada, mas que, com o passar do tempo, e com o esquecimento do craque, foi caindo em desuso.
João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor