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A nossa já centenária lei do divórcio

A nossa já centenária lei do divórcio

Longe vão os tempos em que o casamento consistia num contrato perpétuo celebrado entre duas pessoas normais, de sexo diferente, tendo por objetivo constituir família. A perpetuidade do contrato de casamento justificava-se pelos altos valores que deviam ser cultivados nos lares domésticos, com o fim de se diferenciarem das casas de tolerância, nas quais, como é natural, imperavam os maus costumes.

Assente num conjunto de normas rígidas acerca das funções e dos papéis que cabiam a cada cônjuge, o casamento pela Igreja nos reinos dos países católicos, que ostentavam o título de Fidelíssimos pelo reconhecimento dado  pelo Vaticano, não podia ser dissolvido, a menos que, para tanto, fosse oficialmente avalizado pela Cidade Eterna. No caso concreto de Portugal, o divórcio para todos, católicos e não católicos, só passou a ser legalmente permitido depois de 1910 com a implantação da República, os tempos – sempre ditados pelas circunstâncias em que se desenrolam – eram outros.

Até então, ao marido, a lei atribuía as obrigações de proteger e de defender a mulher e os bens. Esta prestava obediência ao marido, não podia publicar escritos sem autorização deste ou, com suprimento judicial, não podia adquirir ou alienar bens ou contrair obrigações, nem ir a qualquer ato judicial sem a devida autorização do cônjuge.

O divórcio foi efetivamente legalizado em 1910, pelo Decreto de 3 de novembro, isto é, menos de um mês após a proclamação da República. E logo no ano seguinte, com a ânsia de romper matrimónios anteriormente realizados, atingiu-se a cifra de 2 685 divorciados, cifra essa deveras elevada para a época.

As mudanças eram evidentes, as mulheres acabavam com o dever de obediência aos maridos, e adquiriam o direito não só de romper os casamentos como ficar com os filhos embora divorciadas. Os direitos de família passavam desse modo a pertencer a ambos e não apenas ao elemento masculino.

Mais tarde, trinta anos depois, o Estado Novo de Oliveira Salazar assinou a 7 de maio de 1940 o Tratado da Concordata com o Vaticano do Papa Pio XII, retirando aos católicos o direito ao divórcio. O Presidente do Conselho quis normalizar as relações entre o Estado e a Igreja Romana, e assim contrariar as conquistas liberais da I República. Isso fez com que o direito ao divórcio para os católicos só voltasse em 1975, mediante uma alteração ao texto da mencionada Concordata, de molde a acabar de vez com a indissolubilidade dos seus casamentos.

O divórcio concebido por Afonso Costa, ministro da Justiça e dos Cultos saído do 5 de outubro, é, na essência, o mesmo (retirando o princípio da culpa) que ainda vigora, ou seja, o divórcio por mútuo consentimento (ambos os cônjuges apresentam o pedido para a dissolução do matrimónio) e o divórcio litigioso (ação de um conjugue contra o outro assente em comportamentos culposos como o adultério ou abandono).

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A evolução da lei do divórcio acompanha o modelo de casamento da sociedade portuguesa atual, baseado na afetividade, na emancipação das pessoas, independentemente das suas opções sexuais, e assente na liberdade individual de cada um lhe pôr termo quando entender que a sua relação a dois deixou de ser compensadora e de fazer sentido.

De acordo com dados publicados pela Pordata, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, por cada 100 casamentos registados em Portugal durante o ano de 2020, ocorrerem 91 pedidos de divórcio. Face a 2019 esse número representa um aumento de cerca de 30 por cento. Estamos no topo da média europeia. Das leituras possíveis que se possa fazer, esta afigura-se-me porventura a mais coerente: é que os casais há muito em crise, para os quais o casamento já não reunia um módico de condições de efetividade, muitos deles já cansados de conviver 24 horas por dia, para mais fechados em casa devido à pandemia actual, não aguentaram a pressão da vida familiar permanente, a que foi ainda adicionada atividade profissional em teletrabalho.

O divórcio acarreta sempre múltiplas e variadas mudanças, principalmente quando envolve filhos. Estes acabam quase sempre por serem expostos aos dramáticos (quando não mesmo violentos) conflitos entre os pais, que, virados para os seus próprios problemas, não conseguem responder às suas (dos filhos) necessidades. O trabalho, os familiares próximos, eventuais filhos do ex-cônjuge, tudo, em suma, se torna difícil de gerir.

Dos vários tipos de adaptação pós-divórcio, designadamente o modelo acordado de relações parentais, seja o clássico, em que o pai vê os filhos um fim-de-semana de quinze em quinze dias e metade das férias, seja o modelo italiano 50/50, em que as crianças alternam as semanas entre as casas do pai e da mãe, seja o modelo diurno, no qual as crianças nunca dormem em casa do pai, seja, enfim, o modelo das férias, que acontece quando o pai vive geograficamente noutro país, muito afastado dos filhos, nenhum desses vários tipos de adaptação pós-divórcio (repito) é fácil e, sobretudo, a contento dos envolvidos.

Independentemente das complexidades inerentes, o divórcio constitui, antes do mais, a possibilidade de tentar ser bem-sucedido num segundo casamento, a possibilidade de acreditar na felicidade trazida por um novo amor que substitua o que existia e que, as mais das vezes, por razões que só a própria razão desconhece, virara indiferença. Por este e por outros motivos , olhe-se então para a nossa já centenária Lei do Divórcio – cujos 111 anos ora passam – pensando que, graças a ela, os casais portugueses puderam pôr fim a matrimónios infelizes e reconstruir novas famílias e novas relações de parentesco.

Dantas Rodrigues 

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