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“24 HORAS”, de João Carlos Brito

“24 HORAS”, de João Carlos Brito

As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego

3.ª hora

Extasiado, estarrecido, ofuscado pelo portento de carnes que à sua frente se encontrava, Tó Morcego procurava ardentemente dizer algo que impressionasse a divina moçoila. Ademais, sabia perfeitamente quem ela era. Tratava-se da Miss Turismo Cerco do Porto do ano transato, eleita por unanimidade no certame que decorrera no campo de jogos do Desportivo de Portugal. Todos os anos, ele lá estava no Rui Navega*. Era um pecado mortal faltar a semelhante evento. A bomba chamava-se São e tinha ganho, dizia-se, por ter sido a que tinha ido para a cama com mais elementos do júri, entre eles o pastor alemão do presidente da Direção.

A imagem de São e, em particular, dos seus pululantes seios, pavoneando-se para os eufóricos espectadores, dentro de um minúsculo fato de banho, não saía da sua cabeça. E agora aquele monumento à depravação e ao prazer estava ali edificado diante de si. Não podia perder o discernimento. Havia que agir com toda a calma e concentração. Fazer uso de toda a sabedoria acumulada nas páginas do “Correio Sentimental” e nos programas da Elsa Raposo*. Estes breves momentos de ponderação, que lhe pareceram uma eternidade, foram cortados pela sensual voz da donzela que, no mais fino registo de língua, proferiu:

— Eh pá, isto hoje tá uma seca, num achas?

O nosso Tó continuava como num sonho. A toura estava a meter conversa consigo! Afinal de contas, a noite estava salva. E de que maneira! Como manda o protocolo, convidou-a sentar e ofereceu-lhe um copo. A guita estava a acabar, mas que se lixasse. Não era todos os dias que acertava no totobola*.

Pelas duas e meia, já conheciam profundamente os pormenores mais importantes da vida um do outro como, por exemplo, a bebida preferida, os sítios onde paravam, amigos comuns, resultados do teste da SIDA e até mesmo o primeiro nome. Resumindo, estavam reunidos todos os ingredientes necessários para irem para a cama, que é como quem diz, para a fragonete do Bítaro.

Ilustração: Marisa Pina

Quando o nosso Tó se preparava para dar a estocada final, o chungoso do discujoca lembrou-se de passar mais selous. Como se sabe, as gajas, por mais libertinas que sejam, têm sempre um fundo de romantismo chato como o caraças. Nunca tinha percebido por que motivo as garinas nunca conseguiam chegar a vias de facto sem que antes houvesse um bocado de ambiente. Que cena! Se elas estavam mortas por isso e ele também, por que cargas de água era preciso desperdiçar alguns preciosos minutos? Até mesmo porque para o nosso Tó não era só chegar lá e PUMBA! Não, ele gostava de tudo nos trinques. O seu elevado sentido de altruísmo levava-o a dar tudo por tudo na relação. Só dando prazer, o sentia também. Mas tudo isso requeria o seu tempo. E agora a São queria dançar o “dets uore frendes arefore”. Enfim, a música era fixe, mas a chave do ninho do amor já tilintava de impaciência no seu bolso… Por outro lado, não era má ideia passear um pouco a sua classe no meio da pista, fazendo uns linguados com a gaja mais boa da discoteca. Imagine-se a inveja que iria causar à esfaimada malta da pesada. A sua fama iria ainda aumentar e, como é sabido, a psicologia da mulher é muito simples: quanto mais veem um tipo a comer uma gaja, com mais vontade ficam de serem também papadas…

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À medida que caminhavam para o meio da pista, os outros casais, em sinal de veneração, afastavam-se e cediam o lugar central para o mene de fato amarelo e para a Miss Turismo. Tó Morcego sentia estar a ser alvo de todas as atenções e, uma vez mais, pensou na vida que levava. Como era possível que as mãos que, durante a semana, nadavam na imundice do lixo, segurassem, nesse momento, o fruto mais apetecido da “Romano’s”? O mundo gira, a bola também e algo não batia certo. O nosso homem, lá no fundo do seu âmago, acreditava ser um predestinado. Uma espécie de Messias do século vinte e um. Estava convicto de que tinha uma missão a desempenhar no curto espaço de tempo a que convencionaram chamar vida. Qual? Ainda não tinha descoberto, mas o dia da revelação estava próximo. Pressentia-o.

O engate estava feito e São estava nas suas garras. Decidido, pegou-lhe na mão e levou-a, em silêncio, para fora da discoteca. Eram três horas. Os momentos que iriam seguir-se seriam destinados unicamente a maiores de 18 anos…

Notas para putos e malta de má memória:
Campo Rui Navega – antigo campo de jogos do Desportivo de Portugal, demolido para dar lugar ao novo Terminal Intermodal de Campanhã.
Elsa Raposo – era o sex symbol dos anos 90 em Portugal e chegou a apresentar um programa na televisão, o Sexappeal.
Totobola – antes destes jogos todos de raspar e de ganhar fortuna, o jogo de Estado era o totobola. Praticamente toda a gente jogava e tinha uma particularidade: ninguém punha a sua equipa a perder, nem que fosse o Cabeça Gorda X Porto.

… leia a continuação na próxima quarta-feira.

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“24 HORAS” – 2.ª hora

João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor

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