As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego
2.ª hora
À uma hora em ponto, todos se precipitavam para a fragonete do Bítaro, que servia de meio de locomoção a mais de uma dúzia de mafiosos. Todos comprimidos, insultavam-se mutuamente para que a travessia do Alto da Serra* não fosse tão penosa. Nos lugares da frente, sentavam-se Tó Morcego e o motorista (o Bítaro), longe da azáfama do rebanho que atrás seguia. À saída de S. Pedro, mandavam-se umas bocas inofensivas às prostitutas que por lá proliferavam, provando aí, a maioria, a sua virilidade. Elas retorquiam simpaticamente aos elogios e propostas decorosas dos meninos, prometendo excelentes prestações profissionais. Mas a hora ia adiantada e a abertura da pista deveria estar a ter o seu início. E ainda tinham que dar a volta ao porteiro para os deixar entrar…
Na porta da “Romano’s”, uma imensa mole humana atropelava-se na ânsia de penetrar no paraíso.
Alcançado o objetivo, a prioridade é arranjar estacionamento. Mas, para a malta, nunca havia problemas. Colocava-se a fragonete atravessada à frente de um desgraçado qualquer e o gajo depois que se desenrascasse.
Também a entrada na discoteca era problemática. Não era fácil dar a volta ao porteiro para deixar passar uma dúzia de marmanjos sem par. A solução era aguardar que chegassem umas miúdas sozinhas e pedir-lhes, polidamente, para entrarem com elas. A outra hipótese, bem mais drástica, era subornar o porteiro. De toda a forma, acabavam sempre por transpor essa barreira.
Uma vez lá dentro, tudo era possível. A música altíssima e as luzes ofuscantes dificultavam um pouco o diálogo. Mas quem é que queria conversar? Para fazer um engate, bastavam uns olhares intensos e, depois da fase do galanço, procedia-se à conversa boca-no-ouvido-da-vítima, extremamente sensual e provocatória.
Nessa noite, ia já para a uma e meia e Tó ainda não tinha nenhuma gaja controlada. Começava a sentir a moral a baixar. Não era seu costume falhar tantos tiros. Tinha sido a boazona de calças amarelas justinhas e a louraça de body branco coladinho ao corpo. Nada quiseram com ele e estavam agora a curtir a um canto com uns otários todos pintados da Universidade.
Esses menes, só porque andam a estudar, já pensam que têm o rei na barriga. Quanto mais estudam, mais burros ficam! E, ainda por cima, andam agora armados em parvos porque não querem pagar as propinas… E ele que, do mísero ordenado que auferia, descontava para que suas excelências conseguissem o canudo? Decididamente, não era justo! Para cúmulo, sempre que apareciam por lá, comiam-lhe as melhores gajas que, na ânsia competitiva com as amigas, colecionavam universitários. A Teresa, por exemplo, que estava sempre à sua disposição, tentava, nesse momento, atirar-se para cima de um caloiro de medicina (um autêntico aborto) e, quando por si passou, nem o cumprimentou. Mulheres: são todas umas…
Bem, mas como não há duas sem três, o nosso Tó virava-se agora para uma tipa de aspeto meloso, que estava sozinha ao balcão, a sorver sofregamente pela palhinha o seu aquoso sumo de laranja. Tó Morcego, conhecedor de todas as técnicas de engate (fruto, sobretudo, de muitas horas a ler a “Maria” e bestesellers do género), procedeu à investida:
— Olá, boneca! Eu sou o Tó. Estás só?
Ainda a rapariga não tinha respondido à pertinente questão do protagonista, quando este sentiu que alguém lhe tocava, por trás, nas costas. Estava lixado! A gaja era, nem mais, nem menos do que a noiva de um dos manda-chuvas dos serviços de limpeza. Azar do caraças! Estava de mãos atadas e não podia, sequer, mandar-lhe um murro, sob pena de ser despedido. Foi forçado a agir contra os seus princípios e lá teve que pedir desculpa. De seguida, bebeu mais um trago de gelo com uísque que, entretanto, houvera pedido para dar estilo. E o relógio, esse, não parava. Cada minuto que passava, sentia-se mais desamparado. A solução era ir para a pista abanar um bocado o capacete. Quem sabe se lá não teria sucesso? Mas Tó Morcego não estava mesmo nos seus dias. Mal pôs os pés na pista, a música fixe parou e começaram a tocar os selous*. De repente, Tó viu-se completamente só no meio da multidão que se abraçava e apalpava à luz da penumbra.
Foi sentar-se a um canto e refugiou-se no seu copo e no sempre aceso cigarro. Estava metido nos seus escatológicos pensamentos, quando uma maviosa voz lhe perguntou as horas. “São duas” – respondeu, cabisbaixo. Porém, quando levantou os olhos, teve uma visão avassaladora: à sua frente, estava a gaja mais boa que já tinha visto na vida.
Notas para putos e malta de má memória:
Alto da Serra: Subida da Serra de Santa Justa, entre São Pedro da Cova e Valongo, onde era frequente encontrar trabalhadoras da mais velha profissão do mundo. Estamos a falar, claro, das polidoras.
Selous: Baladas que, a determinada altura, era costume pôr a tocar nas discotecas para o pessoal ter oportunidade de se enrolar e andar no roço.
… leia a continuação na próxima quarta-feira.
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João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor