As gloriosas noites de tourada de Tó Morcego
1.ª hora
O relógio da torre acabava de soar as doze badaladas. No Bairro do Cerco, Tó Morcego, como em todas as noites de sábado, preparava-se para ir curtir. Durante cinco dias a fio, trabalhara arduamente. Eram quarenta horas a recolher o lixo dos outros. Dois mil e quatrocentos intermináveis minutos a correr atrás do camião do lixo. Cento e quarenta e quatro mil segundos a lançar violentamente as sacas do Continente para a máquina deglutinadora. As primeiras horas do fim de semana gastava-as no duche, a tentar livrar-se do perfume nauseabundo que a nobre profissão de técnico de limpeza lhe proporcionava. Engolido, à pressa, o jantar, precipitava-se para a casa de banho, de onde não saía antes das onze. Via um bocado a sessão da noite e voltava para o espelho. Um retoque aqui, uma penteadela ali e depois só tinha que fazer horas até que chegasse a meia-noite. Sim, porque antes não podia atacar a noite. É que os menes só saem de casa a essa hora.
Quando o Tó punha os pés fora do lar, o mundo tremia. Era vê-lo com o seu vistoso fato amarelo, gravata encarnada, tipo bacalhau, e os bitorinos bem bicudos. Cabelo empastado de gel e já de Português Suave no canto da boca, o nosso homem gritava, com toda a força dos seus pulmões:
— Ponham-se a pau, gajas! Tó Morcego está de volta!
E a sua gargalhada estridente ecoava surdamente por toda a quelha. Os vizinhos, mais por hábito do que por convicção, abriam as persianas e insultavam-no. Mas Tó não esmorecia, antes pelo contrário, sentia-se ainda mais vivo e pronto para fazer das suas.
À meia-noite e dez era a hora marcada com a malta da pesada no café “Toutaver”, onde ninguém ousava entrar àquela hora. Bem, ninguém excepto a saudável malta dos drunfos. Era ali que a rapaziada do bairro cambiava alegremente os escudos ganhos à custa de muito suor e esforço (e perícia, às vezes) pela moeda mais cotada na bolsa local: a ganza. Entre duas cervejas, fumava-se um charro e discutia-se vivamente os atributos psicológicos e físicos da Amélia (que era boa como o milho, mas que era irmã do Giló, que não gostava que faltassem ao respeito à irmã, que também estava na conversa). Ora palavra puxa palavra e, cerca da meia-noite e um quarto, há sempre um valente que saca da naifa e a espeta nas tripas de um seu homólogo. Quão alegres são essas noitadas!
O nosso Tó nunca se metia nessas confusões, mas, quando apareciam, era sempre o primeiro a puxar da navalha (fanada ao tio Joaquim, que era barbeiro) e a aconselhar calma à maralha. Perante tão válido argumento, o pessoal refletia, perspetivava as possíveis consequências e, após uma profunda introspeção, berrava-se ao Gustavo (era o empregado do “Toutaver”) para trazer mais uma rodada de cucas e um baralho de cartas.
A partir da meia hora ir-se-ia decidir, numa original e criativa roleta russa, quais os contemplados com o pastel necessário para a farra dessa noitada. Passo a explicar: era nesses trinta minutos de lerpa (trata-se de um complexo jogo de cartas, cujas regras, estratagemas e táticas me são impossíveis explicar neste reduzido espaço, dado o elevado grau de dificuldade que apresentam) que os mais aptos chulavam os mais pastores, obtendo, dessa brilhante maneira, a verba requerida para a entrada na “Romano’s”, meia dúzia de cervejas e para uma pedrada porreira. Para os vencedores, tudo estava reservado – música fixe, uísque de cinco anos, francas possibilidades de engatar uma gaja e comê-la na fragonete do Bítaro. Enfim, uma noite em cheio. Para os vencidos (e a história não se compadece dos fracos), mais um copo fiado no “Toutaver”, um bilhete de ida para casa ver o filme do Canal 26 (o bem-bom acaba cedo, mas não havia guita que chegasse para alugar um filme em vídeo) e o lenitivo da masturbação.
Um dos vencedores crónicos era o Tó Morcego. Rato como ele não havia mais nenhum. À uma hora, contabilizava o dinheiro ganho honestamente na atividade lúdica e sonhava com as façanhas que o aguardavam. E andava ele a perder o seu rico tempo a limpar o que os outros javardos sujavam. Punha-se a fazer contas de cabeça e chegava à conclusão de que auferia quase tanto naquela meia hora como numa semana de trabalho. Se não fossem os velhos a moer-lhe o juízo, bem que largaria a porcaria do emprego e dedicava-se por inteiro à lerpa. Sabia, porém, que se tratava de uma atividade socialmente reprovável. Mas que interessava isso? Andava toda a vida a dar no duro honestamente e ninguém lhe ligava puto.
O nosso protagonista estava na casa dos vinte anos. Sentia a juventude a fugir-lhe. Era, pois, natural que estas questões ideológicas o perturbassem sobremaneira. Não queria acabar como o pai, cuja única alegria residia no fundo de uma garrafa de tintol.
Notas para putos e malta de má memória:
Romano’s: Célebre discoteca, à entrada (do lado de quem vai do Porto, claro) de Valongo, que se encontra, hoje, em ruínas.
Canal 26: Um dos primeiros canais da TV Cabo que só emitia muito para lá da meia-noite de sexta-feira e sábado, filmes bastante, por assim dizer, instrutivos.
… leia a continuação na próxima quarta-feira.
João Carlos Brito
Professor, linguista, escritor