A VIVA! esteve à conversa com Rafi die Erste. Nasceu no Porto e foi condecorada, em 2023, com uma medalha de mérito do município. Pelo caminho, fez inúmeras obras de arte em graffiti, dentro e fora da cidade, tendo chegado a pintar, por exemplo, em Cabo Verde, a convite da União Europeia.
Em baixo, será possível conhecer um pouco mais sobre o trajeto artístico e pessoal da artista portuense.
Começando pela base, o que te motivou, numa fase inicial, a querer fazer graffiti?
A arte sempre esteve muito presente na minha vida. Desde muito nova, a minha forma de expressão sempre foi artística. Depois, fui fazendo amizade com malta ligada à vanguarda do hip-hop e do graffiti em Portugal. Comecei a passar verões em Carcavelos e a conviver com os pioneiros do hip-hop. Obviamente, ia com eles para o estúdio e fiquei super inspirada e fascinada, porque no início dos anos 90 e 2000, não passava muita música portuguesa na rádio. Tinhas sempre referências, mas era em inglês. Eu fiquei muito impressionada de como eles escreviam em português e soava tão poético e bonito. Daí, a pegar nas latas deles para tentar pintar foi algo normal. Lembro-me que, da primeira vez que peguei numa lata de spray, pensei que ia fazer coisas espetaculares com isto. A maneira como aquilo funcionou na minha mão, eu quase que antevi as possibilidades de pintar com aquilo. Senti, “uau, vou fazer coisas altamente com isto”.
Já fizeste várias obras de arte na cidade do Porto. Desde o Palácio de Cristal, à Rua de Vilar, entre outros sítios da cidade. Qual é aquela que mais te marcou na Invicta?
Dizem que não há amor como o primeiro e a Rua de Vilar foi o primeiro convite que eu tive para pintar na minha cidade. Até pelo aspeto da pintura, as memórias que eu tinha quando estava a pintar, no tempo em que foi, é uma memória particularmente especial. Foi como uma carta de amor a uma cidade que é minha. Sou eu com as minhas cadelas. Foi aquele auge de sentir que estou a pintar na minha cidade, sou filha do Porto e foi mesmo especial.
Palácio de Cristal
Rua de Vilar
Fazer arte na nossa cidade tem um gosto especial?
Claro! Todos os sítios onde eu pinto, para mim, são muito especiais. É sempre uma mistura do que eu sou, com o que eu faço e o graffiti é uma ferramenta incrível para comunicar e criar laços com as pessoas e as comunidades. Acaba sempre por ser uma experiência única e especial. No entanto, há sempre lugares que marcam mais o coração. O Porto tem um sabor diferente: é a minha cidade. O mundo inteiro pode-te reconhecer, mas se não tiveres a aprovação do teu pai e da tua mãe… (risos)! É um bocado assim, é ter o reconhecimento dos nossos.
Foste distinguida com a medalha de mérito da cidade do Porto. Lembras-te de como isso te fez sentir? É uma validação?
Foi em 2023, não estava nada à espera, para ser sincera, mas foi efetivamente o fechar de um capítulo meu, que fez todo o sentido, quando tive o projeto “Dedicated” no Porto, uma loja 100% dedicada ao graffiti, em 2011, numa altura em que era tudo muito underground. Fizemos os primeiros eventos, tive uma atitude muito proativa para promover a cultura da cidade e fechei-a no ano passado. Eu sou artista e precisava de me dedicar mais ao trabalho artístico e então foi uma forma muito bonita de fechar um capítulo. Enquanto mulher, é uma distinção que sinto que não é só minha. Sou guardiã dela, mas é mais representativa de que os sonhos podem tornar-se realidade com persistência. O facto de ser um universo muito masculino, sinto que fui lá em representação de todas as meninas que têm sonhos e querem cumpri-los.
Dirias que há preconceito nesta área?
Sim. É importante lutar pela igualdade de direitos. Eu sei que não sou igual a um homem. Há quem goste de brincar e dizer “ah, se queres igualdade, então carrega os sacos”. Refiro-me à igualdade de direitos, de todos podermos contribuir igualmente para a sociedade. Isso só a torna mais rica. Há meios mais masculinizados do que outros, o graffiti é um deles. No início, não senti, até porque tive a sorte de contactar com pessoas da vanguarda desta arte e sempre foram extremamente generosos comigo e nunca senti isso. Quando começas a evoluir e a profissionalizar e depois és distinguida com isto e com aquilo, acabo por sentir essa pressão que me entristece no momento, mas não me impede de continuar o meu caminho. Está tudo muito bem, enquanto não tens opiniões que saiam do que todos acham. Isso e “não te atrevas a passar à frente”.
Quais são as reações das pessoas à tua arte nas ruas?
Tenho muitas histórias super caricatas, de amizades até, mas de um modo geral, há quem estranhe um bocadinho numa fase inicial. Até por ser uma atividade muito associada a homens, já que tenho de montar andaimes, escadas, carregar tintas ou latas. Nota-se um pouco a confusão na cara das pessoas. Ficam a pensar, “então ela é uma rapariga e está a fazer isto”. Acho isso muito interessante, porque eu adoro desconstruir preconceitos e paradoxos. Gosto de mostrar que as coisas não têm de estar todas num saco. Uma pessoa pode fazer imensas coisas, porque o mundo é um lugar com possibilidades infinitas. Há sempre um pouco de desconfiança, mas, lentamente, as pessoas começam primeiro a assimilar, a criar laços, e a entender que, como é um processo demorado, estás a fazer uma coisa para elas. Não é só pôr um outdoor e ir embora. É uma coisa construída lentamente, com carinho, porque isso transparece, e que é feito para elas. Por exemplo, pintar nos bairros é incrível. Nos homens, é engraçado, porque mostra-se que há mais tipos de mulheres do que aqueles que eles se calhar acham que há. Nas mulheres, acontece uma coisa muito bonita. Basta olharmos umas para as outras, que há um sentimento de empoderamento. Do género, “a gente faz o que quer”. É muito bonito. Tenho o coração cheio de histórias.
Há alguma dessas histórias que consigas partilhar?
A primeira que me vem à cabeça e, se calhar, foi por estar a falar da Rua de Vilar, foi na altura do COVID, em que eu estou nas escadas a pintar e um senhor passou. Ele diz-me: “desculpe interrompê-la, mas era para dizer que está a fazer uma coisa muito bonita”. Apontou para o fundo da rua e disse que tinha ali um grupo de fãs, umas senhoras. Eu disse que era naquele sítio onde eu costumava almoçar e ele disse: “então, hoje, o almoço está por minha conta” e começou a atravessar a rua. Eu desço as escadas aos berros e digo “oh homem, não vai nada pagar o almoço”. Entretanto, eu vou almoçar, e a senhora do café vem ter comigo e diz: “o almoço está pago”. Eu pergunto se não tinha sido aquele senhor. E ela diz: “é o Januário Torgal, bispo do Porto”. No dia seguinte, eu vi-o, fui a correr e foi muito engraçado. Criamos uma bela amizade, depois eu ofereci-lhe um desenho, tivemos umas conversas muito boas e é uma pessoa pela qual eu tenho muita estima e por quem posso chamar “oh homem” (risos)!
Também tenho outra história muito linda, que foi um projeto que criei, a convite da União Europeia, em Cabo Verde. Estive a pintar durante 1 mês num bairro, que é completamente desligado da Cidade da Praia. Fica a 4 quilómetros, mas demoras praticamente 1 hora para lá chegar. A comunidade é muito pobre, ostracizada, socialmente as mulheres estão numa situação vulnerável. Há muito abandono escolar, crime, gravidez juvenil, etc. Fui para lá, estive lá por 1 mês, o meu ajudante só falava crioulo e pensei “tenho de aprender, senão estou lixada”. Eu apanho bem línguas de ouvido e até aprendi a falar. Um motorista ligado à União Europeia ia, muitas vezes, lá levar e buscar coisas, era alguém que eu via, me cruzava, mas nunca falei. No dia para ir embora, levou-me ao aeroporto e houve a oportunidade de falar um bocadinho. Era um homem culto, politizado, e ele disse-me no carro: “você sabe que teve uma experiência de Cabo Verde, que nem eu tenho, que sou cabo-verdiano, porque eu não posso entrar no bairro”. Ele perguntou-me “percebeu que o bairro inteiro a protege e a acolheu”? Ele disse-me que deixei lá uma parede muito bonita, mas que o mais importante que deixei foi na memória das pessoas de lá. Ele não teve lá, mas captou tudo. Esta é a essência do que eu faço. Mais do que pintar paredes, é deixar memórias felizes no meu coração e no coração daqueles com quem me cruzo. É o que me move. Aplica-se em Cabo Verde, mas vivo e experiencio Cabo Verde em qualquer lugar que vou pintar.
Safende (Cabo Verde)
A adaptação inicial em Cabo Verde foi fácil?
Sim. Eu acho que estou a fazer o que é suposto fazer aqui no mundo. O meu percurso não foi assim tão linear. Houve uma confusão total, eu sou artista, não é? Questionei tudo, perguntei o que ando aqui a fazer, andei perdida. No entanto, quando comecei a pintar as bonequinhas na rua, a expressar-me pelo graffiti, estava longe de imaginar que estava a criar a minha individualidade. Sou completamente devota e suspeita para falar, mas é como se me tivesse salvado a minha vida. Deu-me uma bóia para me agarrar, um caminho para percorrer. Eu fui a África, pela primeira vez, tinha 15 anos. O meu sonho era fazer algo em África. Quando cheguei lá a Cabo Verde e fiz aquilo, foi outro sonho que cumpri. Eu quero cumprir sonhos. Quando cheguei lá, senti-me tão alinhada comigo e a fazer o que era suposto fazer, quando cheguei lá. É uma mistura do que eu faço com o que eu sou. Por isso, resulta. Eu não vou lá ensinar nada. É tão difícil fazer o processo para ti, só te resta partilhar. É sempre mais o que eu faço, do que as palavras. As palavras não interessam para nada. Através de uma linguagem silenciosa, eu começo a desconstruir para construir. É incrível e acontece em qualquer sítio. Tenho histórias incríveis em todo o lado por onde passo. Estive agora a pintar no Douro, no festival de uma aldeia, era incrível, nem sei como consegui pintar. A aldeia era pequenina, cerca de 120 pessoas, começaram-me a dar copinhos generosos. Por eles, era quase das 11h30 às 3 da manhã a beber (risos).
Há algum sítio em específico onde gostasses de intervir artisticamente? Se sim, qual e porquê?
Nos últimos anos, tenho-me dedicado a fazer uma parte do meu trabalho, na vertente humanitária. Trabalho com comunidades, com meninas. Gosto muito de trabalhar com pessoas que não tiveram uma infância fácil. Gosto de semear com eles esperança. Uma parte do que eu faço, hoje em dia, não é só sobre “eu Rafi” como artista, mas sim como um todo. Gostava muito de explorar África e o Médio Oriente. Sem dizer nenhum sítio específico, gostava de ir àqueles lugares onde ninguém tem tempo para ir. Em aldeias remotas e criar experiências e memórias aí. Se puder contribuir para despertar emoções e memórias positivas, até pela minha história, foi isso que me salvou.
O Sam The Kid dizia que “a profissão não é missão, é consequência”. No teu caso, dirias que se aplica? É uma mistura das duas?
Consequência, no entanto, há que ter coragem para fazer as coisas. Depois, há sempre um lado incerto. Mesmo que não queiras, com a tua educação e pressão social com que foste educado, perguntas o que é que andas a fazer. Porque fazes diferente de toda a gente. Mas depois há aqueles momentos em que sei que estou a fazer o que é suposto. Só podes dar ao mundo o melhor de ti. E para fazer o melhor de ti, é preciso ter coragem para viver isso.
Sentes que o graffiti ainda é mal interpretado por muitas pessoas que não o conseguem apreciar como uma arte?
Sim, é um bocadinho assim em relação à arte. Veem como uma coisa supérflua, mas é alimento para a alma. Seja através de novelas, música, o ser humano consome isso. Pode-se achar que é supérfluo, mas não é. Há pessoas cheias de mágoa por dentro e que não têm a alma alimentada por dentro. No graffiti, que é uma coisa muito associada a vandalismo e miúdos, também há isto do “faz aí um desenhito”. Acho completamente ofensivo. Sei que há pessoas que não têm o privilégio de poder escolher, já que há pão para pôr na mesa. Eu tento aproveitar a parte que a vida me deu de privilégio, para lutar pela dignificação do meu trabalho. Enquanto puder recusar e não aceitar coisas que são ofensivas, claro que recuso. Mas sei que é um privilégio e sei que o posso fazer.
França
As tuas obras têm um estilo bastante particular. Dirias que isso é algo que vem com o tempo?
Ao início, há muito a tendência para a comparação. Sinto que comecei a “abraçar-me”. Por exemplo, eu vejo pessoas a pintar realismo e que às vezes fico a pensar o que estou aqui a fazer (risos). No entanto, eu sei que pinto como eu. E não há ninguém no mundo que pinte como eu. À medida que mais abraço isso, é interessante ver que o meu trabalho aprofunda-se, à medida que eu também me aprofundo a mim própria. Ganho confiança, paz interior, o meu trabalho transparece isso. Quando era pequenina, eu escondia-me nos desenhos para retratar o caos exterior, usava o desenho como um escape. Hoje em dia, os meus desenhos refletem a minha vida. Eu quero viver sonhos e torná-los reais, claro que são muito autobiográficos. Represento muito a mulher enquanto criação, em harmonia com a natureza. Tem muitos simbolismos e é transversal a tudo o que eu faço. Pinto muito a memória. Nos animais, represento muito os sentimentos.
Falaste na parte dos “sonhos”. Achas que muitas pessoas vão perdendo isso? Achas que o papel da cultura é também alimentar o sonho?
Há uma parte em ser adulto e em todas as responsabilidades, que é impossível tu fugires. Eu já não tenho pais. Quando és órfã, diria que já não podes ser mais criança. Tens de ser tu a tratar de tudo. Eu tento equilibrar isso com uma parte minha, de menina. Eu em criança queria isto tudo. Em adulta, cumpro-me. Não quero abandonar isto e não há idade para isto. Sempre quis ir à Palestina. Toda a minha vida quis ir. Aos 41 anos, disse: “então, vou dizer isto a vida toda”? Fui à Palestina, cumpri um sonho, pintei lá. Aos 46 anos, cumpri o sonho de andar a cavalo. Aos 44, tive em África, outro sonho.
Há muitos artistas que dizem nunca se sentir satisfeitos, na medida em que procuram sempre mais. O que te falta conseguir nesta área?
Também nunca estou satisfeita (risos). Ainda estou a organizar as coisas todas, mas gostava de continuar a trabalhar uma parte do meu tempo ao trabalho humanitário. É algo muito certo. Gostava também de desenvolver o meu trabalho como artista e o meu profissional, mais a nível de brand. Continuar a pintar muros, telas, ver se publico o meu primeiro romance gráfico. Focar-me mais no trabalho artístico, explorar mais o personagem “Rafi” e continuar a desenvolver trabalho humanitário. Era perfeito!
Hamburgo