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Pintor António Cruz, o maior aguarelista português

Pintor António Cruz, o maior aguarelista português

Considerado, justamente, o maior aguarelista português, António Cruz foi, por relativamente pouco tempo, professor de Desenho e de Modelação na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, no Porto. Uma faceta sobre a qual me vou reter, ao olhar para um desenho que muito gentilmente me ofereceu em 1980, e o tão salutar convívio que com ele mantive desde a década de 1970 e até escassas semanas antes do seu falecimento.

Como seu aluno, retenho muitos e curiosos aspetos da sua vida deveras interessantes que julgo, poderão contribuir para um melhor conhecimento deste notável Pintor, nascido no Porto em 1907 e falecido também nesta cidade em 1983.

As primeiras impressões dos seus alunos em relação àquele professor de rosto fechado e de poucas palavras eram, naturalmente, de algum receio comparativamente a outros seus colegas, mais comunicativos e alegres.

Contudo, António Cruz depressa se revelou um professor de excelência, não abdicando nunca da postura fleumática que lhe reconhecemos assim que entrou pela primeira vez na sala de aulas.

Era diretor o Escultor Sousa Caldas, um dos muitos nomes de referência que passaram por aquela Escola.

Eis o que todos aprendemos com este Mestre: a libertar a mente e ver para além do que o nosso olhar captava. Fazia-o com poucas palavras, mas com muitos exemplos, todos eles de surpreendente impacto em todos nós.

Para aqueles que, como eu, seguiu mais tarde para Belas Artes, algo ficara dos “truques” deste nosso professor da Soares do Reis.

Nunca usou bata nas suas aulas, nem das de modelação, o que significa que, destemido, corrigia algumas das nossas peças de cópia de bustos romanos abraçando o barro e cobrindo-se dele, o que das primeiras vezes suscitava piada geral ao vê-lo acabar a aula com o seu fato escuro coberto de branco, igualmente por efeito do gesso que também não o incomodava levar agarrado ao fato.

Avaliava os nossos trabalhos de Pintura, feitos em folhas de papel cenário de 50X40 cm., passeando sobre eles no corredor comum a outras duas salas. Depois de os agrupar, espalhava-os pelo chão, e assim ia tomando as suas notas. Daqueles que lhe mereciam menor avaliação, levantava-os do solo, e já munido de uma tesoura recortava o “bom trabalho a desenvolver” a partir de um recorte que não raras vezes, pouco mais era do que 10 centímetros quadrados.

“De todos os pintores do Porto do séc. XX, António Cruz foi decerto aquele que melhor soube entender a alma da cidade.”
(António Pinto de Almeida)

Por vezes, de costas voltadas para a turma, fazia desenhos a giz no quadro negro, invariavelmente de animais. Ele sabia que o estávamos a ver e pouco depois, tanto poderia pedir que deitássemos fora o que tínhamos na prancheta e repetíssemos o que víamos no quadro, ou simplesmente deixava ficar o que desenhara até acabar a aula, apagando antes da saída. 

Certa vez, quando decorria um campeonato do mundo em hóquei em patins, um colega divertiu-se, com António Cruz ausente sala, a desenhar uma cabra de patins a marcar um golo à eterna rival Espanha. Quase a terminar aquela brincadeira, o aluno em questão, pressentindo o regresso do professor, preparava-se para apagar o “boneco”, quando todos ouvimos, meio assustados, Cruz a bradar: “Não apague isso!”.

Ao contrário do que inicialmente esperávamos, Cruz pegou na caderneta da turma, e após ter nela anotado algo, voltou-se para nós e falou, já num tom sereno, mas sem esboçar qualquer tipo de emoção: “Não lhes digo sempre para libertarem essas cabeças dos vícios habituais que ainda por aqui vejo na sala? Este, foi o melhor trabalho do vosso colega até hoje. Espero ver-vos, a todos assim, soltos e criativos daqui para a frente. Não tenhais medo de pintar como quando éreis crianças…”.

Anos mais tarde, viríamos a ser bons amigos. Estava a preparar com ele a sua terceira exposição individual, a seu pedido.  O convite viera de uma galeria de Lisboa. António Cruz apenas expôs duas vezes individualmente, ambas inauguradas por presidentes da República. A primeira em Lisboa, corria o ano de 1939 e nela este presente Óscar Carmona, a segunda na Casa do Infante, no Porto, inaugurada por Ramalho Eanes em 1982.

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Numas das vezes em que ia até sua casa, a seu convite, para pintarmos o que nos apetecesse, estala uma trovoada por cima das nossas cabeças. Cruz volta-se para mim e diz: “Nazareth, isto é a Natureza a falar…, vamos acabar estes trabalhos lá para fora, concorda comigo?”.

António Cruz habitava na rua dos Castelos, numa casa como que nascida num pequeno bosque e cujas traseiras eram contíguas de um terreno bravio, onde os pinheiros e os arbustos emprestavam àquele recanto a paz que o Mestre encontrava muitas vezes para pintar, ou apenas ler ou ouvir música do gira-discos que deixava a tocar de sua casa, alto e em bom som.

Naquela zona da Prelada, era igualmente conhecido pelo “senhor do Cinema”, numa alusão ao filme de que fora protagonista.

E lá fomos, com os cavaletes em riste, para o terreno anexo, nas traseiras de sua casa, a fim de “conversarmos” com os céus. Encharcados, mas de mentes limpas. Tal como as telas, por efeito da chuva intensa que se seguiu. Um café, que muito apreciava, rematou o encontro dessa tarde, já se fazendo noite.

Um dia, conversando com Manoel de Oliveira sobre o seu filme de 1956 “O Pintor e a Cidade”, revelou-me este que chegou a perguntar a Cruz se não gostaria de participar num outro filme seu, mas noutra personagem.

“Não tive sorte – adiantou o realizador – ele só o faria quando eu fizesse 100 anos.”

Lamento não ter conseguido convencer a RTP a realizar um documentário sobre a sua vida, já que a António Cruz, finalmente, agradara a ideia. Guardei o guião, que ele aprovou, mas a vida não lhe deu mais tempo.

Ficam a incontornável magia das suas obras e também a sua inesquecível mestria no modo de ensinar.

“Preciso de me habituar a rir”, disse-me aquando de um dos nossos derradeiros encontros. Foi na Ordem da Lapa, onde estava internado, e enquanto desenhava, a carvão, aquele que teria sido o seu último trabalho: a fachada da igreja da Lapa que ficava como que a “posar” para ele, assim que António Cruz abria a janela.

Guardo dele uma opinião sua e a de um galego ao vê-lo desenhar numa rua de Vigo. Porque apenas o ouvi falar uma vez da morte, recordo que a definiu como “o descanso total”. Do galego, como que preso ao chão, vendo-o a desenhar, este comentário: “Que cosa rara!”.

Cruz pincelava as suas aguarelas, talvez a mais difícil técnica da Pintura, com um poderio e determinação quase inatingíveis. Por certo com emoção, mas essa ele muito raramente a fazia transparecer.

“As minhas emoções estão nas minhas obras”. Foi a resposta que dele obtive um dia, quando o entrevistei na Antena 1.

Álvaro Nazareth
Jornalista

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