Afastou-se da vida autárquica em 2005 (altura em que ocupava o cargo de vice-presidente da câmara do Porto), mas está a preparar o regresso à cena política. Para o matemático Paulo Morais, há três batalhas a travar: contra a corrupção, contra o medo e pela liberdade de expressão.
Atravessa parte do Jardim Botânico do Porto – espaço que, aliás, bem conhece dos seus tempos de estudante – entra numa das estufas, senta-se e aguarda, serenamente, o início da conversa. Não se inibe de sorrir, de puxar da ironia, de gesticular e de explicar, com calma, o seu ponto de vista, ou não fosse a “autenticidade” o “valor máximo” que o docente universitário Paulo Morais atribui às relações humanas. E é neste cenário maioritariamente verde, de plantas exóticas, que o matemático e vice-presidente da direção da Transparência e Integridade Associação Cívica (TIAC) demonstra a força do cordão umbilical que ainda o liga a Viana do Castelo, sua terra natal. “Camilo Castelo Branco dizia que o Minho era o verde sobre o granito. E é essa imagem que tento transmitir ao longo da minha vida. Ser uma pessoa verde, no sentido de ser bem-disposta, mas com valores graníticos”, frisou, lamentando que, na política portuguesa, a boa disposição ainda seja associada a uma certa falta de competência. “Existem políticos sisudos, austeros, magros, de fatos cinzentos, mal dispostos e que, por isso mesmo, passam a ser competentes. E depois há aqueles que se riem e que, como são bem-dispostos, são incompetentes”, ilustrou, defendendo que “ser sério não é ser sisudo, mas sim honesto”. “Temos, hoje, um exemplar máximo desse paradigma – o atual Presidente da República – que põe um ar sisudo e circunspecto, tentando transmitir a ideia de que é sério, quando, de facto, não tem sido intelectualmente honesto no exercício da sua função”, sustentou.
Conhecido dos portuenses não só por ser considerado uma voz ativa contra a corrupção, mas também por ter sido vice-presidente da autarquia local entre 2002 e 2005 (responsável pelo pelouro do Urbanismo), Paulo Morais é frequentemente abordado pelos cidadãos nas ruas da cidade, onde tem vindo a detetar um sentimento geral de medo face às dificuldades económicas enfrentadas no presente e à incerteza do futuro. “Dizem-me que tenho muita coragem e isso é uma forma de, envergonhadamente, dizerem que estão com medo”, apontou, reconhecendo, assim, que assumiu um combate diário em três frentes. “No fundo, eu tenho três lutas: contra a corrupção, contra o medo – esta é a mais importante – e pela liberdade de expressão”, garantiu. É por isso que o vianense concilia os cargos de professor auxiliar na Universidade Portucalense e de investigador sénior do INESC Porto (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores do Porto) com o trabalho, voluntário, desenvolvido no âmbito da TIAC, entidade que representa, em Portugal, a rede global anti-corrupção “Transparency International”. “O que nós fazemos é estudar e combater a corrupção, na perspetiva de que, quanto melhor conhecermos o fenómeno, mais capazes estamos de o combater”, resumiu.
“Estamos a caminhar a grande velocidade para o subdesenvolvimento”
Apesar de reconhecer que a corrupção em Portugal “não é um fenómeno novo”, pois já era “uma das preocupações centrais dos Capitães de Abril”, responsáveis pelo golpe militar que derrubou o Estado Novo, Paulo Morais considera que, “ao fim de 41 anos de Democracia, o regime não só não combateu a corrupção, como se estruturou de forma a favorecê-la”. O país ocupa, neste momento, o 33.º lugar do CPI (Corruption Perceptions Index), um indicador de reputação que avalia os países em termos de transparência. “A nível europeu, estamos a par da Espanha, que tem escândalos de corrupção permanentes, da Itália, que tem, ainda hoje, uma forte influência da Máfia sobre a administração, e da Grécia, que é a anarquia que todos conhecemos. Mas se é grave a nossa posição, tanto mais grave é se analisarmos que, entre 2000 e 2010, Portugal foi o país que mais se degradou em termos de transparência no mundo”, frisou, realçando que, como a transparência e o desenvolvimento “andam sempre a par”, Portugal está “a caminhar a grande velocidade para o subdesenvolvimento”. “Se ainda ocupássemos o 23.º lugar [de 2000], os nossos parceiros seriam a Irlanda e a Áustria; o nosso desemprego poderia ser de 6 ou 7% e o IVA de 19%”, concluiu.
Para o matemático, a corrupção foi um dos agentes ativos na crise nacional, atirando os portugueses para “uma ditadura fiscal”. “Há dois fatores que podem identificar a crise: a dívida pública e a privada”, começou por explicar, referindo que a dívida pública “resulta, em mais de 30%, de fenómenos sucessivos de corrupção que saíram caros: na Expo 98, no Euro 2004, no BPN, nos submarinos, nas Parcerias Público-Privadas (PPP), no BES…”. “Só no caso do BPN, os portugueses pagaram (e estão a pagar) cerca de 7 mil milhões de euros, massa financeira que dá quase para pagar a toda a Função Pública durante um ano”, notou. Por outro lado, acrescentou, no início da crise, em 2008, “68% da dívida privada portuguesa era dívida imobiliária, decorrente de fenómenos de especulação imobiliária, alicerçados em corrupção nas câmaras municipais”. E prossegue com a análise do fenómeno: “os promotores imobiliários compram terrenos baratos, em reserva agrícola, e depois, de uma forma criminosa, conseguem, com a influência que têm nas autarquias locais, transformá-los em terrenos urbanizáveis através da obtenção de uma licença de construção ou de um alvará de loteamento. Com esse alvará, transformam um terreno que vale quatro milhões de euros em 20 milhões”.
Aliás, segundo confirmou, foi exatamente essa luta contra a corrupção no urbanismo que o levou a retirar-se da política, em 2005. “Saí da Câmara do Porto porque, entre o presidente da autarquia de então, Rui Rio, eu próprio e o partido [PSD] – que, entretanto, abandonei – não havia o mesmo entendimento da forma de combater os interesses imobiliários que estavam instalados na cidade até à nossa entrada”, contou, acrescentando ser apologista de “uma atitude claríssima, contundente e marcante face aos interesses imobiliários”. “Havia, como é evidente, uma grande pressão dos imobiliários junto da estrutura do poder para que eu saísse, mas, na altura, fui claro: se era para ficar alguém que cedesse a esses interesses que arranjassem outro porque não faltava quem quisesse ser vice-presidente da câmara”, contou. Entretanto, a batalha do docente continuou.
Foi testemunha em processos disciplinares, mantendo uma posição “não muito confortável” que já lhe trouxe “alguns dissabores”. “É natural que aqueles que combatem a corrupção num país em cuja política o fenómeno está tão instalado tenham inimigos. Eu vejo isso como medalhas”, garantiu, revelando, por exemplo, que já tentaram depositar-lhe 150 mil euros numa conta a fim de o descredibilizarem. Além disso, “aqui e ali aparecem processos por difamação”: só três deles chegaram ao fim, dando a vitória ao investigador. “Isto é importante para as pessoas perceberem que não vale a pena ter medo de denunciar estas situações”, defendeu, salvaguardando que quando fala de um caso concreto de corrupção é porque se encontra devidamente documentado.
“É imoral demolir o Aleixo e fazer lá um condomínio para gente rica”
Apesar de não colocar em causa “a decisão democrática” – com a qual não concorda – de demolir o Bairro do Aleixo, Paulo Morais considera que o processo não foi bem conduzido. “Na zona em que o Aleixo está, sobranceiro ao rio, os apetites imobiliários são gigantescos. E, para mim, é imoral demolir as torres, tirar os moradores e fazer lá um condomínio para gente rica”, defendeu, realçando que, mesmo que a autarquia quisesse vender o terreno para futura exploração imobiliária, “teria de tê-lo feito através de uma hasta pública municipal”. Para o investigador, a ser demolido, o bairro deveria dar lugar a um parque ou jardim para as pessoas fruírem.
Voltar à política para uma nova batalha
Dez anos depois de ter deixado a vice-presidência da autarquia portuense, Paulo Morais admite voltar à política, não desvendando, contudo, em que moldes será feito esse regresso. “Tenciono voltar porque, a partir do momento em que denuncio a corrupção como o maior problema da política nacional, acho que posso fazer a expressão dessa luta na atividade política”, justificou, assumindo ser um “republicano convicto”, que faz questão de participar sempre nas comemorações do 31 de Janeiro e do 5 de Outubro, no Porto ou noutra cidade qualquer. “Entendo que a República é a forma ideal de sistema, onde as pessoas nascem sem privilégios e com direitos”, notou, mencionando que, nas suas reflexões, gosta de recordar o discurso de tomada de posse do primeiro Presidente da República eleito em Portugal, Manuel de Arriaga, que prometeu “combater os privilégios malditos que existiam na sociedade portuguesa e que ainda hoje se mantêm”. “As privatizações a que temos assistido de equipamentos verdadeiramente estratégicos para o país – a água, a eletricidade, o saneamento, a recolha de lixo, a TAP – permitirão que um conjunto de grupos económicos tenham receitas gigantescas e permanentes à custa da população”, lamentou.
Desta forma, o matemático não tem dúvidas de que “em termos políticos, não existe, no país, uma estratégia de combate à corrupção”. Para Paulo Morais, Portugal enfrenta, hoje, “uma perversão no funcionamento do regime constitucional”: o poder legislativo, “que devia estar centrado no Parlamento, está nas grandes sociedades de advogados”; o poder executivo, “que devia submeter-se ao legislativo”, facilita os “negócios aos grandes grupos económicos” e o poder judicial “não tem meios” porque “depende, em termos orçamentais, do Governo”. “Neste cálculo em que o poder legislativo não legisla, o executivo não executa e o judicial não tem meios, é natural que se crie corrupção”, afirmou, defendendo que, na área da justiça, “há dois aspetos que devem ser acautelados”: a existência de meios próprios para uma atuação permanente e de tribunais especializados na área da corrupção. “Não é possível um procurador, num tribunal de província, num gabinete exíguo, sem ar condicionado, sem aquecimento e sem impressora a funcionar, litigar com uma grande sociedade de advogados de Lisboa”, destacou, acrescentando que a justiça deve ainda começar a “recuperar os ativos tirados pela via da corrupção”. “Em Portugal, curiosamente, a PJ tem um gabinete de recuperação de ativos e há uma legislação nesse sentido. No papel está tudo bem, ativos recuperados é que não existem. No caso BES é incompreensível que, ao fim de todo este tempo, não tenham sido confiscados os bens da família”, apontou.
Ainda assim, reconhece que “a ideia da total impunidade dos poderosos face à justiça está a perder terreno”, alteração que atribui à ação da equipa da nova procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. “Nos últimos tempos assistimos a algo que, há um ano, não era expectável: a prisão de um ex-primeiro-ministro e quatro diretores gerais de topo do Governo que tiveram de sair, envolvidos no processo dos ‘Vistos Gold’”, referiu. Segundo frisou o docente, independentemente da detenção de José Sócrates ter sido bem ou mal feita, há um aspeto do qual não duvida: a sua governação “foi das mais danosas que Portugal teve desde o tempo de D. Afonso Henriques”. “Entre outras coisas, nacionalizou o BPN e mandou pagar a tranche final da compra dos submarinos – um negócio que estava sob suspeita há muito tempo – sem que o Governo tenha pedido esclarecimentos adicionais”, justificou, acrescentando que as PPP da era Sócrates “agravaram ainda mais os danos que já vinham de trás”. “Nas PPP rodoviárias em particular, permitiu que, quando há redução da sinistralidade, os prémios sejam 100 vezes superiores às multas quando há aumento da sinistralidade. Isto é ilegal”, garantiu, salvaguardando, contudo, que o fenómeno das PPP começou com Cavaco Silva, na construção da Ponte Vasco da Gama. “Na altura, foi vendido à opinião pública como tendo sido um investimento privado porque o estado não teria dinheiro para fazer a ponte. Ora, os privados entraram com apenas um quarto dos cerca de 900 milhões do investimento”, recordou o docente, referindo que o restante foi garantido pelo Estado através do Fundo de Coesão da União Europeia e da cedência da receita das portagens da Ponte 25 de Abril e por um empréstimo do Banco Europeu de Investimentos.
Saber “receber como em nenhum lugar do mundo”
Apesar de passar muitos fins de semana em Viana do Castelo, o dia a dia de Paulo Morais é vivido no Porto, onde reside, nas Antas. Não prescinde dos passeios pela baixa da cidade, visitando frequentemente a Livraria Lello, o Majestic e a zona do rio, e reconhece aos portuenses uma empatia e uma capacidade de receber “como em nenhum lugar do mundo”. No entanto, para o vianense, Portugal tem uma mão cheia de características privilegiadas – a situação geográfica e o clima, por exemplo – que não são potenciadas. “Na Serra da Estrela faz-se ski, mas quando neva não se consegue lá chegar. Como é possível? O coração de D. Pedro IV está no Porto, mas não há qualquer exploração turístico-cultural”, enumerou, frisando que, tal como acontece na indústria, “quando a matéria-prima é boa e o resultado é mau, a culpa não é nem da matéria-prima nem dos operários”. “É da falta de estratégia e de um mau modelo de gestão. Isso, no país, tem um nome: chama-se política”, concluiu o matemático.