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O Outro Lado da Pandemia: o que se vive para lá dos Cuidados Intensivos

O Outro Lado da Pandemia: o que se vive para lá dos Cuidados Intensivos

Ser enfermeiro é uma profissão exigente física e psicologicamente, mas muito gratificante e desafiante! Mais do que uma profissão, ganha uma imensidão de sentidos e sentimentos quando emancipada pela vocação, cuidar com dedicação, com responsabilidade e humanidade!

Neste mês tão especial dedicado às comemorações do Dia Internacional do Enfermeiro, partilho um projeto que surgiu em março de 2020, no início da pandemia em Portugal, quando a Unidade de Cuidados Intensivos onde trabalho dedicou-se, a cuidar exclusivamente de pessoas em estado crítico, infetadas com o vírus SARS-CoV2. Desta experiência nasceu espontaneamente a arte curativa do desenho e dos poemas, resultando na publicação do livro: “O Outro Lado da Pandemia: o que se vive para lá dos Cuidados Intensivos”.

Enquanto enfermeira de Cuidados Intensivos, faz parte do meu dia-a-dia cuidar de pessoas em estado grave. Contudo, foi um derradeiro desafio preparar-me para dar resposta às necessidades das pessoas que chegavam à UCI, resultante desta era pandémica jamais vivida ou imaginada. De um dia para outro, fomos desafiados a recolher os medos e a enfrentar os riscos e o desconhecido, para fazermos aquilo que melhor sabemos: cuidar! Tendo o privilégio de cuidar do maior tesouro que é a vida de Outro Alguém!

No início, as preocupações surgiram em catadupa, a escassez de informação, o medo de ficar doente e o risco de contagiar os colegas e a família, forçou muitos de nós a afastarem-se de casa para os proteger.

Além do distanciamento da família, a permanência na zona vermelha (zona onde estão as pessoas com COVID-19) e a adaptação aos equipamentos de proteção individual testaram as minhas capacidades ao limite! Recordo-me do medo que senti quando entrei pela primeira vez na zona vermelha, do desejo imediato de querer sair e das dúvidas sobre as minhas próprias capacidades. Nos primeiros dias tive dores de cabeça muito fortes, a pressão dos óculos sobre as orelhas era insuportável e a sensação de sufoco provocada pela máscara era constante. À medida que as horas passavam, cada vez tinha menos energia e mais dificuldade em respirar e em concentrar-me…

Num dos primeiros turnos na zona vermelha, o tempo não se fazia passar e o desconforto da máscara e dos óculos acentuavam, aumentando a ansiedade a cada instante! Foi nesse momento que peguei numa caneta e numa folha de papel e comecei a desenhar. A partir do primeiro traço, todo um mundo de sentimentos e emoções se espoletou… Atrás de um desenho veio outro e mais outro, surgindo, assim, a minha terapia em tempo de pandemia, na procura de apaziguar o stress, o sofrimento, as dificuldades, os desafios, os medos…

Com o tempo, a adaptação aos equipamentos foi-se atingindo, o conhecimento e medidas de tratamento sobre esta misteriosa doença foram melhorando, e as dificuldades também foram mudando, exacerbando-se particularmente com o aumento descontrolado de casos face à escassez de recursos do Sistema Nacional de Saúde.

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Ao fim de meses a fio a cuidar de pessoas com COVID-19, nas mesmas circunstâncias, a exaustão e o cansaço tornam-se cada vez mais evidentes, sobre a necessidade de descanso efetivo há muito desejado. Aos sinais de cansaço, por vezes, surgem também sentimentos de frustração, quando a sede de quebrar as medidas de precaução ditam-se mais alto por pessoas com ideias deturpadas desta pandemia rotulada como uma “simples gripe”.

As experiências vividas dentro das “quatro paredes” do hospital são variadas, muitas vezes marcadas pelo silêncio de derrotas, mas também de vitórias, por sentimentos de gratidão face a um sinal de melhoria ou num simples “obrigada” ou sorriso, mas também sentimentos de frustração e impotência perante as necessidades e a escassez de recursos. Por turnos cansativos e stressantes que refletem a exaustão em mazelas no corpo, mas também o dever cumprido quando vemos aqueles por quem lutámos esboçarem um sorriso e saírem da Unidade.

Neste misto de sentimentos constantes, a arte curativa do desenho surgiu na procura de apaziguar o stress, dar sentido às coisas e àquilo que sinto, ao cansaço, à adrenalina, à responsabilidade de um cuidar altamente diferenciado e humano, inerentes às situações vividas que, de alguma forma, foram significativas e marcantes durante a prestação de cuidados.

Aos desenhos juntam-se poemas que dão “voz” às emoções e sentimentos expressados em cada situação! Cada poema traduz diferentes perspetivas e desvenda experiências de resiliência, resistência e superação, que suportam esta batalha compartilhada entre quem cuida e quem é cuidado, desmistificando uma realidade, que poucos conhecessem, sobre aquilo que se vive para lá da porta dos Cuidados Intensivos!

Entre fios, tubos, máquinas e equipamentos, o compasso continua a ser marcado pelo ruído do ventilador e de alarmes de monitores que se cruzam com a voz de quem cuida, que abraça novos desafios, numa relação terapêutica dotada de aprendizagens, partilhas, conhecimentos, de momentos alegres, outros difíceis e sempre desafiantes!

Apesar da pandemia persistir, ainda que por vezes despercebida, os desenhos e os poemas preservam a intenção original, de transmitir uma mensagem às famílias que estão distanciadas de quem cuidamos, retratando momentos esperançosos, harmoniosos, sedentos de coragem, de espírito de equipa, de missão e entrega! Por este motivo, enquanto houver lápis e papel, continuarei a partilhar aquilo que de certa forma também me cura, a realidade desenhada!

Marli Vitorino
Enfermeira

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