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“O Príncipe Encantado”: uma história de Natal à Moda do Porto, de João Carlos Brito

Marta e Rafaela eram irmãs, gémeas monozigóticas, para não dizer univitelinas, palavrão caro e pouco usual. Digamos, então, que as duas eram gémeas idênticas, fabricadas a partir de óvulo e espermatozóide únicos. Por tal motivo, achavam que nada as poderia separar até que a negra ceifeira fizesse a sua aparição e cortasse o cordão umbilical que as unia.

Percorreram juntas os degraus da escola e juntas abandonaram precocemente os estudos para irem trabalhar como balconistas de uma loja de perfumes, pois tinham, dizia-se, olfacto canino.

No dia em que uma foi despedida, a outra escreveu carta de demissão e regressaram novamente aos bancos da escola, desta vez à noite, onde completaram o ensino secundário, o suficiente para se candidatarem a diversos lugares de emprego de Estado até que conseguiram ocupar vaga na repartição de finanças. Ficaram as duas e dedicaram-se, de corpo e alma, à nobre arte da burocracia, carimbando atestados, aplicando coimas e sermões aos incautos contribuintes.

A sua vida foi uma espécie de história do Patinho Feio, mas ao contrário. Logo, fábula de Cisne Bonito, se quiserem. Arejadas e vistosas, foram, com o tempo, perdendo o encanto até que, quando já cruzada a casa dos trinta e muito mais próximo dos quarenta, Marta e Rafaela tinham perdido o brilho, a esperança de que havia mais vida para além do amparo que proporcionavam mutuamente, sobretudo a partir do falecimento precoce dos pais.

Funcionárias públicas na mesma repartição, já se deu a entender, levavam uma vida pacata, sem grandes emoções. De ilusões desfeitas, não pensavam em casar. Todos os namorados que tinham tido apenas queriam ver satisfeitas as suas fantasias sexuais que, normalmente, coincidiam com uma noite majestosa passada com duas gémeas, simultaneamente.

No início, ainda iam embarcando e até, por vezes, brincavam elas, que se iam revezando sem que o pobre amante disso se apercebesse, levando-o à exaustão. Mas isso era, definitivamente, passado. Já há uns tempos que os homens tinham perdido o interesse por elas e a resignação acabou por triunfar. Em consequência disso, os dias foram-se tornando cada vez mais iguais e sem graça. Deixaram de festejar aniversário, de ir de férias, de sair ao fim-de-semana e mesmo a internet não lhes ocupava muito tempo.

Há muito tempo que a véspera de Natal era, também, uma noite como qualquer outra. Bem, como qualquer outra não, pois, nessa altura nem a companhia que se proporcionavam lhes servia para afugentar a solidão. Assim, como o que os olhos não vêem, o coração não sente, baniram, para sempre, a ementa natalícia e procuravam voluntariar-se para trabalhar até às seis, ou mais se fosse preciso. Foi o que aconteceu nesse ano e, não tendo comprado nada para o jantar, aceleraram no Clio e tentaram apanhar o supermercado ainda aberto.

Quando aparcaram, faltavam dez minutos para as sete, hora a que tudo encerrava. Apesar do adiantado da hora, a loja rebentava pelas costuras e os corredores tresandavam de retardatários, que, desesperadamente, se batiam pelos restos.

Já não havia muito nas prateleiras. Bacalhau nem pensar. Marta sugeriu duas francesinhas congeladas e Rafaela nem hesitou. Limitou-se a ir à secção das bebidas e colocar no cesto duas superbóques de litro. Porque, para acompanhar a maior invenção gastronómica do século XX do Porto, mesmo que refém de gelo e conservantes, só umas bejecas meide ine Inbíqueta.

Lembrou-se do convívio anual dos funcionários das Finanças realizado nos arredores da Capital e de todos, no restaurante, estarem a beber mistelas por cerveja. Via uns diante de garrafas de marca espanhola, dinamarquesa e até lisboeta. Então, quando pediu a bebida, recordou a anedota e demandou uma cola… já que ninguém bebia cerveja naquela mesa, não ia ser ela a beber…

Mais trinta minutos na fila, a aguardar a vez do pagamento, uma hora de carro para percorrer uns longos dois quilómetros, uma mão-cheia de palavrões e, finalmente, chegaram a casa, a tempo de ver o telejornal. Gostavam de andar bem informadas para responderem acertadamente a muitas perguntas dos concursos televisivos. Eram verdadeiras milionárias de sofá, embora nunca tivessem tido a coragem de se inscrever em nenhum.

Mas, nesse ano, algo de insólito estava para suceder. Quando retiraram o invólucro e se preparavam para colocar a francesinha no micro-ondas, qual não foi o seu espanto quando uma delas, por sinal a mais apetitosa, lhes dirigiu a palavra:

– Ó bondosas gémeas, não me comais!

Não queriam acreditar no que ouviam e beliscaram-se. Todavia, não estavam a dormir e, que soubessem, as tostinhas de cogumelos do lanche almoçarado estavam um bocado foleiritas, mas daí a terem efeitos alucinogéneos ia uma distância muito grande. Era bem verdade o que estava a acontecer. A francesinha, como que aguardasse aquela reacção de incredulidade, não se deteve e apressou-se a explicar mais pormenorizadamente o insólito episódio:

– Em tempos idos, fui um garboso príncipe de um país muito longínquo, chamado Quatar. Já deveis ter ouvido nele falar. É um pequeno reino, mas extremamente rico, graças, sobretudo, à profusão do ouro negro. E, por esse motivo, somos muito invejados e cobiçados por potências estrangeiras.

Susteve a narração quando Marta gritou. Julgou que exteriorizava a sua revolta e dor pelo infortúnio do Quatar. Não, tinha sido apenas Rafaela que a tinha beliscado, pela quarta vez consecutiva. Então, prosseguiu:

– Mas não temos que estar apenas alerta em relação aos perigos externos. O pior… o pior, como, aliás, a história é fértil em casos análogos, são as ameaças que vêm do interior… Quando estava prestes a subir ao trono, por assassinato de meu pai, o rei, a Malévola Morgana, minha tia, lançou-me esta maldição para, assim, se apoderar do reino e usurpá-lo a seu bel-prazer, através de, até tenho nojo de o recordar, uma política de aumento fiscal desmesurada…

– Ó filho, isso não é só no teu país, atalhou Marta, talvez para o confortar. – Aqui, vivemos sempre sem crise e com pagamentos de impostos desmesurados.

– Sim, nós sabemos disso, acrescentou a irmã. Somos funcionárias das Finanças! O nosso trabalho é sermos, em triplicado, a mão justiceira de um poder cego e cruel, sobretudo para com os mais humildes.

– Somos muito competentes, informou Marta. Ainda no outro dia, apareceu lá um chico-esperto que queria fugir ao fisco, mas nós topámos o mânfio de longe. Daquela laia, comemos nós ao pequeno-almoço…

– Credo, deixou escapar, manifestamente preocupado, o príncipe.

– É maneira de dizer, descansa! Ninguém te vai comer…, sossegou Rafaela.

– A não ser que tenhas escapado ao fisco…

– Não, donzela Marta! Fui sempre um cidadão cumpridor, juro!, e teria, naquele momento, feito figas com os dedos, caso os tivesse.

Um sorriso cínico, misto de carrasco e de balconista que percebe claramente que estão a tentar dar-lhe o golpe, desenhou-se nos dois rostos. Por isso, fizeram questão de contar, detalhadamente, o episódio. E ainda mais uns quantos, porque com o fisco não se brinca!

Até que a fome apertou e tomaram conta de que estavam sem ceia de Natal. Rafaela, que não tinha grande apetite, sugeriu que se colocasse a outra francesinha no forno e a repartissem. Pelo sim, pelo não, puseram mais batatas a fritar. Mais prudente, Marta achou por bem questionar, antes de abrir a porta do forno:

– Tu também és um príncipe?

Não obtendo resposta da outra francesinha, concluiu que já havia naquela sala realeza suficiente:

– Se és príncipe, és mudo. E como não temos mais nada para o jantar, olha, paciência! – E enfiou a outra a 200 graus, como mandava a embalagem, no tabuleiro inferior.

Rafaela continuava com ar de ralada, cofiando o buço, matutando, certamente, sobre a inusitada situação. Questionou sua Alteza se haveria algo que pudessem fazer. O príncipe, provavelmente, aguardava, já há bastante tempo, a pergunta, pois a resposta surgiu debaixo da língua. Ou da linguiça, que se afigura mais acertado:

– Estou plenamente convencido de que, se me derdes um beijo, à semelhança do que aconteceu com a Branca de Neve e com a Cinderela, voltar-me-ei a transformar no belo e charmoso príncipe que era.

Marta, que mirava a outra francesinha a gratinar – é sempre um espectáculo de rara beleza – voltou-se subitamente e interveio:

– Ó bacano, mas isso é grande grupe! Quem é que tu queres endrominar? A Cinderela nem chegou a adormecer. Tás a meter os pés pelas mãos. Quem levou grande quisse foi a Bela Adormecida!

– Ou isso, assentiu, conformado, ciente de que era apenas pormenor, comparado com a tragédia que sobre ele se tinha abatido. Achou oportuno anexar informação complementar:

– Como recompensa, e assim obriga o protocolo, farei de vós minhas princesas.

Rafaela já sentia o leve peso da tiara cravejada a diamantes na cabeça, mas Marta, desde pequena a mais avisada das duas, não estava totalmente esclarecida:

– Às duas… hum, a história está mal contada…

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– Sim, às duas! No meu reino é permitida a poligamia. Vivereis sem problemas até à hora da morte. Só para calculardes, a minha fortuna rondava os 150 mil milhões de dólares.

As gémeas escutavam-no com atenção. A mando da irmã, Rafaela foi buscar uma calculadora activada por energia solar e, à luz do candeeiro, converteu a fortuna em euros. Não havia números que chegassem na máquina de bolso! Não havia que hesitar: era beijocar o gajo e viver à fartazana para sempre. No entanto, no momento em que se aprestava para depositar o ósculo da metamorfose, Marta deteve-a:

– Espera! Que vais tu fazer? Queres tornar-te escrava de um homem? Fazer parte de um interminável harém? Ter sexo só quando o rei faz anos?…

Rafaela não houvera pensado nisso e, apesar de lhe parecer ter ouvido uma vozinha, de baixo, dizer algo que parecia “o meu aniversário é já amanhã”, ponderou e parou, ainda com os lábios unidos e em posição. Eram sábias as palavras de Marta. Como sempre, aliás. Quantas vezes não a tinha impedido de fazer asneiras. Ainda bem. Ou ainda mal! Às vezes, lamentava o juízo da outra. Mas, naquele preciso instante, uma vez mais, foi forçada a dar-lhe razão.

– E, não te esqueças, Rafaela – continuou Marta – que, com uma Francesinha que fala, podemos ganhar muito mais dinheiro! Tornar-nos-emos empresárias e encetaremos turnés à volta do Mundo para mostrar a única Francesinha falante do globo!

A situação estava problemática para o ex-soberano quatarense. No entanto, fruto de uma educação rigorosa e assaz pragmática, voltou à carga:

– Compreendo e louvo, inclusivamente, o vosso espírito empreendedor. Houvesse mais cidadãos como vós e o vosso país não estaria tão mal colocado nos ranquingues. Não restam dúvidas de que, com um magote de súbditos da vossa estirpe, a actual desfavorável conjuntura macroeconómica seria, facilmente, ultrapassada. Mas pensais, porventura, que a minha pessoa – apesar de, hoje, ser uma Francesinha – ir-se-ia prestar a um papel tão vilipendioso? Ousaríeis atrever-vos a mostrar-me às multidões como um fenómeno do Entroncamento?

As gémeas acenaram afirmativamente. O príncipe cerrou fileiras e usou de todo o seu tacto geoestratégico:

– Se persistis inamovíveis nos vossos propósitos, também eu me recusarei, terminantemente, a pronunciar uma sílaba que seja, só para agradar a uma audiência esfaimada e expectante e para encher os vossos infames bolsos de dinheiro!

E, numa atitude de menino irreverente, tentou cruzar os braços, esquecendo-se de que não os possuía.

Marta e Rafaela entreolharam-se e, através de uma sinalética que só elas descodificavam, compreenderam que era necessário chegar a uma plataforma de entendimento, capaz de abarcar satisfatoriamente as partes interessadas. O momento requeria cuidadas e bem delineadas negociações. Marta, talvez fruto dos seus dez minutos a mais que tinha de vida, tomou a iniciativa, no firme intento de resolver o impasse:

– Como o senhor Príncipe-Francesinha deve compreender, não é decisão que se tome de ânimo leve. Portanto, pedia-lhe que voltasse por uns instantes para dentro do saco para que eu e minha irmã conferenciemos sobre o caso.

Depois de uma hesitação inicial, o soberano lá teve que saltar para o invólucro de plástico, onde aguardou, pacientemente, a sua sorte. O destino que lhe fora estigmatizado não era definitivamente muito agradável. Ao fim e ao cabo, não era carne nem era peixe…

Os cinco minutos que decorreram até ao veredicto final pareceram-lhe uma eternidade pois, como toda a gente sabe, o tempo demora mais a passar quando se está metido num saco térmico do Continente que, por grande azar, não tinha nenhum orifício por onde espreitar furtivamente. Entretanto, a campainha do micro-ondas tiniu, indicando que a genuína Francesinha estava pronta a comer.

Cá fora, as gémeas colocaram pausa nas negociações, porque a fome já apertava. Dividiram a iguaria, acrescentaram mais batatas fritas e repartiram o molho. Para Francesinha congelada, não estava mau. Ou então era da fome. Provavelmente deveria ser.

Escutava rumores por entre o ruído dos talheres a bater no prato. Mas as palavras não se percebiam e perdiam-se entre o abafado som do telejornal da televisão que tinham ligado. Mas por que cargas de água não o osculavam elas? Se lhes prometia, como recompensa, uma choruda conta bancária num dos mais prestigiados bancos suíços e, para mais, os seus favores sexuais?… Por Rafaela, o seu problema estaria há muito equacionado. Mas Marta, com o seu ar desconfiado e calculista, era, sem dúvida, a barreira mais séria. Enfim, um típico perfil de mulher frígida, com fortes indícios de frustrações e recalcamentos de infância, que faziam antever uma velhice ascética e solitária.

Entrementes, afagaram a saca e baixaram as abas, de maneira que pôde observar, preocupado, num dos cantos da sala anexa, veladas por um poster gigante do Toni Carreira, as gémeas, que retomavam a mini-cimeira, ultimando os pontos que iriam decidir sobre as causas francesínio-humanas do Príncipe. A avaliar pelo fácies da mais velha, dir-se-ia que o consenso não era possível, mas Rafaela, gesticulando e verborreando, ia conseguindo levar a sua nau a bom porto, pois um dos seus grandes sonhos era, de facto, casar com um Príncipe e tornar-se Princesa. Depois de muito esgrimir, Marta acedeu, não sem que primeiro impusesse condição sine qua non:

– De acordo, mas és tu quem o vai beijar!

Que não era justo, replicava a outra, que deveria ser feito um sorteio, que Marta beijava melhor, que preferia depositar o seu beijo no focinho de um sapo, defendeu-se Rafaela. Porém, a mana mais velha utilizou, em último recurso, aquele argumento para o qual não existe, até à data, resposta:

– Porque não!

E pronto. Marta decidiu, por unanimidade, que competia a Rafaela o ósculo da metamorfose.

Com as mãos trémulas, a moçoila abriu a saca e tirou de lá o garboso, que já tinha estado a abafar e agora revirava os olhos de tanto se esticar. Solenemente, deitou-o sobre a toalha de sinos e pais-natais da mesa e arrumou para o lado a terrina de cajus e amendoins a substituir fruta seca e pinhões. Antes de passar ao acto, quis certificar-se de um aspecto que lhe atormentava a alma:

– Preciso que me diga, ao certo, onde é a sua cara, pois não quero beijá-lo em sítios duvidosos…

O Quatarense, surpreendido pela inusitada questão, não quis demonstrar que também ele nunca havia pensado naquele pormenor:

– Osculai-me no ângulo diametralmente oposto ao meu véu de queijo e acertareis em cheio no que, daqui a pouco, se transformará na minha bela face.

Rafaela detectou algum sarcasmo na explicação e temeu o pior. Mesmo assim, benzeu-se, cerrou os olhos e, num impulso violento, levou os lábios em direcção à mesa. Estava frio, o que era normal, e, curiosamente, o Príncipe tinha um gosto salgado e cheirava bastante bem para uma Francesinha ainda bastante congelada.

– Rafaela, interrompeu Marta, Estás a beijar os amendoins!

A jovem corou e deu graças a Deus por a sua tia Dolores, que era muito gozona, não se encontrar ali.

Preparava-se para repetir a cena quando, para espanto de todos, um dos amendoins (o mais gordo) se transformou, mesmo diante dos seus olhos, num belo jovem loiro, de olhos azuis, de postura altiva e real. Era o filho herdeiro de um dos mais ricos armadores gregos, cuja história se assemelhava à do seu homónimo Francesinha.

Eternamente grato, antes de se despedir, sacou do livro de cheques e passou-lhes um donativo de um valor tão exorbitante que, para não ferir mentes susceptíveis, nem me atrevo a quantificar.

As gémeas cantaram e dançaram de alegria. Podiam, agora, realizar todas as viagens de sonho, viver à grande e à francesa, sem precisarem de se sacrificar pelo petulante Príncipe.

É verdade! E o Príncipe-Francesinha?

Nada satisfeito com o andar da carruagem, perguntou-lhes:

– Então e eu?

– Tu vais é pr’ó micro-ondas, disseram, em coro.

Não casaram e viveram as duas, muito felizes para sempre.

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