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Miguel 7 Estacas: “O Senhor Limpinho é um registo de comédia que ninguém o faz”

Miguel 7 Estacas:

A VIVA esteve à conversa com Miguel 7 Estacas. É um dos humoristas mais conceituados do país e o nosso protagonista do mês de janeiro. Desde o início no mundo da comédia, aos desafios criativos, à personagem do Senhor Limpinho, ficamos a conhecer um pouco mais sobre o artista.

Começando pelo nome: para o público que não está familiarizado, o que fez adotar o nome artístico “Miguel 7 Estacas”?

Teve a ver com o meu início da comédia e ao mesmo tempo tem a ver com uma lenda, na localidade onde eu nasci. Está associada às invasões. Quando as tropas vieram para cá, tinham uma forma de contar o calendário que era através de estacas. Contavam de semana a semana, através de 7 estacas. Era uma localidade isolada e quando se foram embora as invasões, a população continuou a contar os dias da mesma forma. Um dia, supostamente, o gado tombou uma das estacas e a população apareceu em peso na missa, no dia antes ao que era normal. Por isso, ficou aqui uma alcunha em motivo de chacota. Por contarmos os dias pelas estacas. Quando comecei na comédia, num intervalo de um espetáculo do Óscar Branco, em 1989, alguém lhe deve ter contado. Algo do género “vai aí um míudo meter-se contigo” e contaram a história. Quando me anunciou para fazer a brincadeira no intervalo, ficaram surpreendidos por saberem que era o gajo das 7 estacas (risos). Depois assumi o nome e com todo o orgulho. 

Há muitas pessoas com piada, mas são poucas as que têm apetência para ser humoristas. Consegue definir o momento em que deu o clique de que podia ser comediante de profissão?

Eu tenho uma definição para isso e pode ser discutível. Posso dizer que tenho o amigo engraçado que já me ri mais com ele num convívio do que em qualquer espetáculo de humor. No entanto, são posições diferentes. Eu tenho esse amigo, ele é super cómico. No entanto, se pegar nessa mesma pessoa e a transportar para uma posição de responsabilidade, de assumir um palco e assumir um público em que não conhece ninguém e, mesmo assim, fazer rir, ele se calhar não vai conseguir. A fronteira é logo essa. Num convívio, não há responsabilidade nenhuma. Outra coisa é dizer “acho que tens piada, vamos-te contratar e vais fazer rir aquelas pessoas”. O que é certo é que normalmente não conseguem. Depois, há muito a questão de conseguir ser criativo ou não. Uma coisa é brincar na hora, dependendo da situação e do dia, e somos o brincalhão que dispõe bem. Outra coisa é ter de fazer o trabalho de casa que é tua criação e não vamos estar a avaliar se estás num dia sim ou não. És profissional, vais ter de fazer rir no dia. Estejas bem ou mal. Quando falo de criatividade, é o trabalho de casa feito com autoria. Uma coisa é contar uma anedota que já ouviste e ter um grande talento para o fazer. Sem desvalorizar isso, há depois o trabalho do criativo, que tem de ser muito valorizado. Aquele que vai para casa e constrói algo de novo. Depois, é levar isso a palco, muitas vezes sem ter testado as vezes suficientes. O nosso país é pequeno ao ponto de, quando o produto está no ponto perfeito, o conteúdo já quase está gasto porque foi exposto em todo o lado. 

Entre a parte criativa e o subir a um palco, o que é mais desafiante?

O desafio é a criatividade, no entanto a fronteira é muito curta. Porque entre o criar e o perceber se funciona, a gente precisa do palco. O subdesafio é perceber se o que eu criei tem piada. A primeira vez que levamos apontamentos ao público, essa 1ª vez é o grande desafio. Em palco, depois tentamos perceber o limite até onde se consegue levar certo tema. Ou seja, perceber “ok, o pessoal está a reagir”, agora como é que eu estico mais um bocadinho para tornar isto ainda melhor.

Pegando na questão do palco, atuou pela primeira vez aos 17 anos. Desde então já pisou grande parte dos maiores palcos do país. Ainda há nervos antes do palco? Como é a rotina pré-show?

O procedimento é sentir-me bem. Gosto sempre de alguma antecedência, para sentir-me incluído no grupo de trabalho. Desde o produtor, à equipa técnica, a toda a gente responsável pelo espetáculo que nos rodeia. Se houver esse bom ambiente, sobe-se a palco com outra predisposição. Mas sei que somos diferentes. Há quem lhes mexa com o sistema nervoso e com a ansiedade, a questão de estar muito tempo à espera antes de subir a palco. No meu caso, prefiro ambientar-me e sentir a sala, mesmo vazia, sentir o ambiente. Depois vou com mais à vontade.

Numa entrevista anterior, disse que o Óscar Branco foi uma grande referência na sua vida artística. O que o inspirou nele?

Uma das coisas tem a ver com o facto de me ter chamado pela 1ª vez a palco. O desafio de fazer isto em público, no fundo. Daí, ser logo uma referência. Depois, porque foi através do registo do Óscar Branco que me despertou a vontade de fazer comédia. Nem imaginava, na altura, que podia ser profissional um dia. O Óscar tinha um registo completamente diferente face àquilo que havia no mercado. Não havia uma referência equivalente ao Óscar. Despertou-me muita curiosidade em tentar ser o Óscar Branco número 2. Tive um momento, que foi o que me alavancou profissionalmente, que conto a todos os comediantes a começar. Eu fazia tudo muito em privado, no meio dos meus amigos lançar uns temas que o Óscar falava e depois imitava-o. Punha uns apontamentos meus, mas fazia “plágio”, de certa forma. Com 16 ou 17 anos, não havia problema nenhum em fazer aquilo. Um dia, tive um desafio de um sarau de tunas académicas, em que fui ao Teatro Sá da Bandeira, no Porto, fazer um dos intervalos. Estava eu, na sala principal, a imitar o Óscar Branco e o Óscar Branco, na sala secundária, a fazer o espetáculo dele. É no mínimo irónico (risos). Ele foi corretíssimo comigo. Chamou-me a atenção de uma forma que não me quis magoar, mas foi sincero comigo. Disse “oh Miguel, fazer isto com amigos é uma coisa, mas assumir um papel semi-profissional num palco destes, peço-te que tenhas atenção a isto”. A partir daí, eu assumi comigo mesmo que ele tem razão. Pensei: ou eu consigo criar e ser autónomo na criação em meu nome, ou vou voltar ao convívio de amigos em privado. Foi um desafio e tiro o chapéu à forma como o Óscar me abordou. Outro qualquer tinha avançado para uma forma diferente de chamada de atenção.

Como foi o espetáculo logo a seguir a esse conselho?

No espetáculo imediatamente a seguir, tirei tudo o que não era meu. Comecei a usar só os meus apontamentos. Havia uma situação que, na altura, era muito aceitável, em que podias fazer mistura entre textos de autoria e anedotas sem autor, as chamadas “populares”, ninguém chama a atenção sobre plágios. Nessa época inicial, usava um apontamento desses ou outro. Faz parte do nosso início.

Já fez comédia de diversas formas: sozinho, em grupo, através de sketches, peças teatrais. O que dá mais gozo fazer?

Se estivermos num ambiente confortável, ou seja, salas de espetáculo ou auditórios, adoro fazer personagens. É uma das minhas marcas fortes. Modéstia à parte, acho que tenho um jeito especial para isto. É um dos registos que mais gosto. Por um lado, a stand-up comedy é um registo que te dá uma liberdade maior de trabalhar o público e de, de repente, poder fazer uma leitura inicial daquilo que o público mais gosta. A partir de uma abordagem inicial, às vezes consegues definir o tipo de espetáculo que vais fazer. Isso é a grande vantagem da stand-up. Lanço um tema qualquer, reparo que não está a funcionar. Tenho a liberdade de mudar de tema e mudar para outro. Tem essa grande vantagem.

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Por estar tão dependente do riso constante, diria que a comédia stand-up é a arte performativa mais difícil de executar?

Acho que há mais pressão e vou comparar com a música, para mim, a arte que mais mexe com as emoções. Daí serem os festivais que mais movem multidões. Nenhuma outra arte o consegue fazer. A comédia tem a vantagem de, tecnicamente, ser simples: uma pessoa, um microfone e a voz. Aparentemente, parece muito simples fazer comédia. Ainda há quem ache que nós vamos para palco e estamos lá 1 hora a improvisar. Precisamente porque parecemos aquilo parecer fácil. Agora, explico uma das regras da stand-up, que é uma mistura entre facilidade e dificuldade. Às vezes, fala-se de temas que nos passam todos os dias à frente dos olhos e nos escapam completamente. O melhor resultado que temos num texto de stand-up é lançar um tema e toda a gente se identifica com aquilo. Nem precisamos de acrescentar piada, às vezes. Se a pessoa sente “ei, eu também faço isso”, é a melhor forma de segurarmos um público. Porque o público vai seguir-nos numa viagem. Quem souber evoluir num tema e conseguir acrescentar coisas, levamos o público a viajar connosco. Esse é o melhor stand-up comedian, para mim. O que pega num tema em que nós ouvimos falar e dizemos: “como é que eu não pensei nisto” (risos). Tudo isto que parece tão simples tem uma dificuldade imensa. Daí não haver tantos humoristas de referência a nível nacional e internacional. Há imensos novos talentos, mas a fronteira são aqueles que conseguem assumir 1 hora de espetáculo a solo. O desafio maior é, depois de fazer 1 hora de espetáculo, fazer outra hora. É aqui que se define o maior desafio. Vejo muito poucos a conseguir fazer o segundo espetáculo melhor do que o primeiro.

Não será uma questão de expectativas também?

Tenho outra leitura. Acho que tem a ver com o acumular de informação que vamos tendo em tanto tempo de vivência. No primeiro, conseguimos depositar toda essa informação que já andava cá dentro há imenso tempo. O problema é que lançamos tudo no primeiro. Quando chega o segundo, a informação que temos já foi usada.

Quem o acompanha está a par das suas várias personagens. Uma das mais populares é a do Senhor Limpinho, mas também dá vida ao Mágico Urini, ao Bombeiro Meireles, entre outros. Qual considera ser a mais e a menos desafiante de preparar?

Das personagens que criei, há algumas que lhes chamo básicas. Que é pegar numa profissão ou identidade e agarrar naquele tema. Um bombeiro pode falar de quê? Vamos sempre partir da mesma base, pegar no que aquela personalidade faz no dia a dia. A nível construtivo, vamos chamar-lhe básico. Não tens de criar nada sobre a profissão. É só pegar nisso e acrescentar humor. O Mágico Urini, por exemplo, dá-me muito gozo mas acho que Portugal não está preparado para um registo de humor parvinho, “non-sense”. Daí não estar totalmente explorado. Acho que o pessoal gosta, mas se eu apresentar isoladamente a personagem, acho que ninguém paga para ver aquilo. Agora, se apareço num festival de surpresa com 10 ou 15 minutos da personagem, as pessoas gostam. Não vão é de propósito para vê-la. Falando do meu maior ícone que é o Senhor Limpinho, do qual tenho muito orgulho. Nasceu quase de improviso esta personagem, que é um registo de comédia que, a nível mundial, ninguém o faz. Em Portugal, temos muito a ideia de que “ah, isto não é ideia tua, foste buscar a algum lado”. Eu comecei a receber algum feedback deste género, eu só dizia que não me inspirei a ninguém. Fiz pesquisas a nível mundial e não encontrei nada, apesar de já ter encontrado alguns apontamentos semelhantes, no Brasil. Alguém fez um número de 3 piadas consecutivas com o mesmo princípio. Também cheguei a ver num talk-show uma abordagem muito semelhante, era uma sátira a um canal de notícias. 

Alguém que trabalha com o humor tem predisposição para ver humor, enquanto público? Qual é o humor que o diverte mais e o que diverte menos?

Eu gosto, sendo que tenho a parte do gozo e da obrigação. Eu devo saber o que se passa no mercado, para perceber também onde é que me situo: a minha qualidade, a minha evolução. Não devemos ser egocêntricos ao ponto de achar que estou bem e não quero saber o que se passa. Há quem tenha receio de entender que pode não estar bem. Eu gosto primeiro de analisar e saber como anda o mercado. Depois tenho o prazer de ouvir, mas ao nível de reação, o nosso sentido é muito de observação do que apenas só gozo. Posso adorar um espetáculo, mas não ter dado uma única gargalhada. Estou num sentido de análise e crítico, ao mesmo tempo. Posso adorar sem ter soltado riso. Estou a absorver e pensar como é que foram buscar certa ideia. 

Quem é do Porto já sabe que Natal é sinónimo de “Pi100Pé” no Teatro Sá da Bandeira e este ano não foi exceção. Dá para explicar um fenómeno de popularidade tão grande na cidade, que se repete ano após ano?

Primeiro, viralizou. Depois, somos 4 comediantes do Porto, digamos assim. Mesmo o Seabra, apesar de morar em Braga, é nativo do Porto. Entendemo-nos super bem e tudo o que levamos a palco parece que flui de forma natural. O que despertou para ser um ciclo vicioso tem a ver com a apresentação que a gente faz, em formato de sketchs, no lugar da stand-up. É a única altura do ano em que o público consegue ver estes 4 humoristas neste formato. Estranho em Portugal não haver, que eu tenha conhecimento, gente a trabalhar mais esta vertente da comédia. Um dos segredos é esse. Para além disso, tem a ver com a nossa forma de que todos os anos criamos sempre momentos de interação com o público. Fazer com que o público faça parte do espetáculo. Na análise das vendas, vemos que raramente se vendem bilhetes isolados. Geralmente são grupos, precisamente pela interação. Querem ver aquele amigo e a figura que poderá fazer em cima do palco. Assim nasceu uma tradição. Depois, em relação à sala, antes de desafiarmos o Teatro, quase ninguém queria usar a sala nesta época festiva do ano. Achavam que não ia resultar. Mas é uma semana em que muito pessoal tira férias, está por casa e, a seguir às festas, não sabem bem o que querem fazer. Ou se vai fazer trocas de prendas ao shopping ou porque não irem divertir-se um bocadinho e ver um espetáculo? (risos)

Confirma a teoria de muitos artistas, que atuar no Porto tem sempre um sabor especial?

Tem um sabor especial, em primeiro lugar, porque estamos a jogar em casa e as pessoas vão identificar-se com o nosso género. Depois porque há um calor humano que nos acolhe de forma diferente e nós conseguimos sentir isso. Aquele carinho tão genuíno, tão aberto. Outras zonas do país, ou porque não estão habituados ou porque estão num papel desconfortável de, ok, faz o teu trabalho do teu lado e não te metas comigo. Por vezes, não é o artista que cria a barreira, em que o público que pede por favor “não te dirijas a mim”. Essa barreira, no Porto, acho que já foi quebrada há muito.

Qual a melhor experiência que se lembra ter tido em cima de um palco?

É muito difícil, mas das últimas, estão sempre ligadas ao Senhor Limpinho. Precisamente por ser um registo único. Para quem não conhece, é sempre um fator surpreendente. Em palco, sinto isso. Que o texto é curto, mas que preenche tanto. Sinto que parece que fiz um espetáculo sozinho, mas na verdade só passaram 10 minutos.

O que mais o orgulha ter feito na comédia até ao momento e o que é que ainda falta fazer?

É uma boa pergunta que a gente procura todos os dias (risos). Eu não sou a favor daquela teoria do “não venhas cá com coisas, porque está tudo inventado”. Essa frase não existe. Primeiro, existe o reformular e reinventar. Depois, não seria coerente da minha parte dizer o contrário, até porque disse que criei um novo estilo de humor com a personagem do Senhor Limpinho. Não aceito essa frase, porque eu próprio já o fiz. Portanto, vamos abrir a mente e explorar, porque outras coisas hão de vir e há que continuar a renovar.

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