
A VIVA! esteve à conversa com José Cid, um nome incontornável da música em Portugal e responsável por inúmeros êxitos ao longo de décadas. Ano após ano, continua a cimentar a sua posição no “Olimpo” da arte portuguesa e a encher espetáculos por todo o país.
Em baixo, pode ler a entrevista na íntegra, onde se aborda o percurso de José Cid na música, a rebeldia e o gosto em “provocar”, os segredos para ainda fazer concertos com 83 anos e muito mais.
Começando pelo início, o José Cid criou, em 1956, a primeira banda rock portuguesa: “Os Babys”. Na altura, o que o fez acreditar que este estilo também poderia vingar no nosso país?
Eu não acreditei em nada, eu segui o meu instinto e a minha desobediência aos meus pais. Foi uma fava que lhes saiu, sou a ovelha ranhosa da família. Como diz a canção, queriam que fosse “engenheiro ou doutor”. Praticamente sou professor de Educação Física, eu fiz toda a vida muito desporto. Limitei-me a desobedecer e a fazer aquilo que eu mais queria, que era a música. Eles diziam que não e eu dizia que sim. Fugia do colégio para as noites de Coimbra. Tudo começou aí, onde fomos os primeiros a fazer rock n’ roll.

Um dos projetos mais marcantes que se seguiu foi o Quarteto 1111. Chegou a dizer, numa entrevista ao Expresso, que foi “a banda da Europa continental mais rebelde, mais censurada, mais perseguida pelo sistema”. O que se recorda desses tempos e de que maneira sentiu essa perseguição?
Para já, entre o Quarteto 1111 e o José Cid, há 28 canções censuradas. Essas 28 canções indicam uma oposição ao regime salazarista e marcelista. Só por acaso é que eu não fui preso, porque o Salazar tinha a fobia do comunismo. Ele sabia que eu não estava inscrito no Partido Comunista e sabia que eu pertencia a uma fação monárquica, de uma monarquia bem contundente em relação ao antigo regime. As monarquias do norte da Europa são os países menos corruptos e com melhor nível cultural e de vida. São monarquias, não repúblicas. Eu não sou antirrepublicano. O que eu acho é que há sistemas mais perfeitos que a república. É visível, é palpável. Até em termos culturais, os países monárquicos estão muito acima dos países republicanos. Vejamos a Espanha. A Espanha defende intransigentemente aquilo que é deles. Até defendem aquilo que é mau deles. Estou a falar das touradas, sanguinárias e horrorosas. No entanto, os espanhóis nunca gostaram de nós. São os mesmos que puseram Almaraz a 60 km da fronteira com o rio Tejo. São os que ocuparam Olivença. São as pessoas que têm a Norte, em Salamanca, detritos altamente contagiosos ao ar livre e põem tudo do nosso lado. É preverso. Contudo, sou muito ligado à Galiza. Acho que Galiza é outra Espanha. A Galiza gosta genuinamente de nós e particularmente do Norte do país. Tenho um irmão galego com quem escrevi um tema, que se chama “Sou Galego Até Ao Mondego”. É daquelas músicas que ninguém conhece minhas, mas que é brutal. Tenho muita ligação à Galiza. Espanha nunca nos respeitou, mas as espanholas sim, elas gostam de nós. Mas é por outros motivos. (risos)
Falava há pouco de fazer música no pré-25 de abril. Como era criar nesta altura? Quando se sentava a escrever, a preocupação era expressar o que sentia a 100% ou também pensava muito até onde podia ir sem ter problemas?
Eram as metáforas que nós usávamos que conseguiam iludir a censura, mas não conseguiam fazê-lo na totalidade. Eu tenho canções que são autênticas metáforas e que passaram à censura, como “No Dia Em Que O Rei Faz Anos”, que é cantada um mês antes do 25 de abril. É a história de um povo que invade a cidade e lhe abre as portas. Um povo que mata o ditador, mas tudo em metáforas. A censura era burra, pouco culta, era republicana. Eu tive dois avós: um era maçon e era culto, o outro era monárquico e não era tão culto, mas era muito criativo. A censura muitas vezes é burra. O Salazar perseguiu o meu sogro, que eu não conheci. Ele foi exilado do Algarve para Timor. Teve 5 anos no degredo, cortaram-lhe o tendão de uma mão e de uma perna. Depois, ficou lá em Timor a ensinar português e apaixonou-se por uma senhora timorense que é mãe da minha mulher. Daí, nasceram 12 filhos.

Teve 28 canções censuradas. No entanto, quando pensamos em cantores de intervenção, não falamos em José Cid, geralmente. Porquê?
Os cantores de intervenção acharam que eu era demasiado popular para ser um deles. São histórias antigas de segregações dentro das segregações, dentro daquilo que são os guetos na cultura portuguesa. O Ary dos Santos odiava-me e a Natália Correia amava-me. Ela era muito mais livre e muito mais à frente. O Ary estava agarrado ao partido. Não gravei poemas dele, geniais, mas gravei da Natália. Temas altamente controversos, tão controversos como os do Zeca, do Adriano Correia, de quem eu era muitíssimo amigo. Há histórias minhas e do Adriano que davam para escrever um livro. Uma delas é sabida, em que, no serviço militar, eu roubo uma bicicleta e pus o Adriano a fazer a prova de patrulhas na bicicleta. No dia seguinte, fomos condecorados na parada de Santarém e a rir à gargalhada os dois. Tínhamos uma cumplicidade enorme.
No seu percurso, trabalhou muito a solo e em grupo. Qual das modalidades prefere e quais os desafios inerentes a cada uma?
Eu estive muito bem com o Quarteto 1111, até ser possível. Estive muito bem com os meus sobrinhos, nos anos 80. Estou lindamente e brilhantemente com estes 7 músicos que me acompanham ao vivo pelo país inteiro. Eles são brutais e eu sei que são meus amigos. Vou andando, conforme as músicas que vou escrevendo. De momento, estou muito contente com o Ponte nas Ondas. É um movimento lusófono, que nasce, não em Portugal mas na Galiza. É um tema escrito pela Uxía, muito minha amiga, que me entregou este tema e tem tido bastante êxito e sido bem recebido. Fui nomeado pela Uxía para ser o cantor português a cantar o tema. É um tema na luta contra a xenofobia, para unir 9 países que falam a nossa língua. Esses 9 países são 300 milhões de pessoas e a união faz a força. Efetivamente, eu vou fazendo música a música e, como diz o meu último álbum, “logo se vê”.

Pode parecer impossível, mas José Cid chegou a partilhar que a própria mãe não gostava de o ouvir. Foi sempre assim?
Ninguém gostava! Eu ganhei o Festival da Canção e a minha mãe não me deu os parabéns. A minha irmã mais velha é que dizia para eu desobedecer aos pais. Dizia-me: “o menino tem uma voz lindíssima, não obedeça aos pais e, se tiver de fugir de casa, fuja para minha casa”. Foi a minha verdadeira mãe. Morreu há 3 anos vítima de Covid e de excesso de tabaco também. Era uma pessoa adorável.

Como é que se ganha a coragem de enfrentar milhares de pessoas num palco, quando a confiança não vem de casa?
Essa força é inata. É como o Eusébio também tinha, o Ronaldo também tem, a Amália também tinha. É uma força que nasce connosco e eu nasci também com a força de desobedecer aos pais. Saiu-lhes a fava. Tinham estigmas, particularmente a minha mãe. Achava que nós éramos nobreza e nós não éramos. Éramos uma pequena nobreza provinciana, que é completamente diferente. A minha mãe um dia bateu-me. Disse que nós éramos descendentes do El Cid. No gozo, eu que era mais poeta que a minha mãe disse: “é possível, o Rodrigo Dias de Vivar teve duas filhas. Como não queria que as filhas se casassem com a soldadesca, pô-las no convento. Se calhar, descendemos delas, na medida em que pode ter havido uma invasão do convento e elas engravidaram de forma bastarda”. Eu levei dois pares de estalos e desatei-me a rir.
Mesmo com o reconhecimento, não foi apreciando mais o seu trabalho, com o tempo?
Foi assim toda a vida. Foi um choque. Menos a minha irmã Maria de São João, que ainda por cima tem um nome muito bonito. Hoje, as netas dela são muito minhas amigas. Têm uma banda, chamam-se “Look Alike”, são duas gémeas que cantam.

Por falar em “não gostar de ouvir”: o próprio José Cid tem alguma canção da sua autoria que, passados tantos anos, também já se desapaixonou?
Há umas que gosto mais e outras que gosto menos. Os maiores hits canto todos, os mais conhecidos. Como eu venho do jazz e do fado, eu nunca canto igual. Como nunca canto igual, estou-me sempre a divertir a cantar. Aquelas pessoas que encornaram as músicas e as cantam sempre iguais, no mesmo tem, a certa altura estão fartas delas.
E o público costuma receber bem essas versões? Não estarão à espera de ouvir exatamente aquilo que está no CD?
Eu mostro-lhes exatamente aquilo que saiu no CD, mas só que doutra maneira. Mas sem adulterar a canção. Nunca a adultero e faço sempre de uma forma, ou mais jazzística, ou mais fadista, ou mais pop, ou mais rock. Nunca canto igual. Tenho uma super banda por trás de mim, com músicos extraordinários.
O José Cid canta com uma dinâmica que não está ao alcance de todos. Compõe músicas, letras e toca múltiplos instrumentos. Custa-lhe ver que, hoje em dia, já não é preciso ser assim tão dotado musicalmente para ter sucesso?
Marketing. Eu rio-me. Rio-me para dentro e só gosto dos cantores verdadeiros. Como gosto do Jorge Palma, do Paulo de Carvalho, do Luís Represas, pessoas que sabem cantar e que são poetas natos. Rio-me das Maddonas que andam por aí. Tens 20 Maddonas a cantar melhor do que ela no Porto e outras 20 em Lisboa e noutras partes do país. São cantoras natas, cantam bem. Há cantores, também em Portugal, que são completamente fake. Nunca escreveram um poema, não sabem tocar um instrumento, mas que têm um marketing infernal à volta delas, que ajuda a iludir as pessoas todas.

A tendência é isso acentuar-se?
A tendência é o público escolher, o público escolhe tudo. São eles que decidem e que mandam. Há também um desvirtuar das coisas, nos programas de sábado e domingo à tarde. São programas fabulosos em termos de artesanato local, gastronomia local, tradições. Fazem isso tudo e depois põem músicas em playback, bailarinas gordas a dançar músicas medonhas, convencidos de que aquilo é música. Nem é o terceiro mundo, é o quarto mundo. Isto quando as televisões podiam nivelar por cima. Em todas as regiões, devia partir dos pelouros de cultura das câmaras municipais dizer que vêm cá à cidade fazer o programa, mas que queremos promover os artistas locais. A música que é nossa. E depois, claro, a nossa gastronomia, o nosso artesanato, os nossos costumes, aquilo que temos para mostrar com diferença. Porquê? Porque nós, integrados na Europa, perdemos a nossa identidade política, a nossa identidade económica e a única que resta para impor a nossa personalidade é a cultural e musical. Essa que é tão pouco protegida em Portugal. Devia ser proibido, particularmente câmaras com pelouro de cultura, ter música “terceiro-mundista” nos seus programas, quando há tantos projetos novos e antigos. Se bem que os antigos não são respeitados. Eu dificilmente passo uma vez por dia na Antena 1. Este tema do “Ponte das Ondas”, que é um hino universal da lusofonia e de luta contra a xenofobia, ainda não foi passado diariamente na Antena 1 ou Rádio Renascença, por exemplo. Mas há muitas rádios locais que abriram os olhos e perceberam: ok, isto é fantástico. Não é o José Cid que está aqui em causa e há quem faça uma diferenciação. Uma escolha que parte da verdade, da entrega e da recusa a artifícios, desde playbacks, a loops, voicetuners, coisas essas que me recuso a fazer.
Na música, diria que há uma discriminação dos mais velhos, independentemente da qualidade?
Sim. Tenho falado muito com o Tordo, com pessoas com uma carreira brutal, como o Paulo de Carvalho, o Jorge Palma, e eles sabem que nós somos ostracizados pelo bilhete de identidade. Isso significa que as novas gerações que tomaram conta da imprensa e das rádios acham que somos todos descartáveis e não é bem assim. Há jovens que não estão certos. Há jovens que estão muito certos. Como também há pessoas da nossa geração que estão completamente certas e o contrário. Já estamos no horizonte, acabou. Para mim, que sou gozão e provocador, é um bom álibi. Eu sei que ao vivo faço um concerto de 2 horas e meia com rock, pop, étnico, música popular, fado e os jovens emergentes não fazem isso. Nem vão fazer, muito menos aos 80 anos. É outro patamar.

O José Cid fez recentemente 83 anos. Ter uma voz ao mais alto nível com essa idade é benção genética ou há algo que faça no sentido de a preservar? O chamado trabalho invisível.
Eu tenho muita preocupação com isso. Primeiro, não fumo. Depois, não faço noitadas de álcool. Basta uma noitada dessas, apanhar chuva até casa e, no dia a seguir, estás com uma pneumonia que te dá cabo da voz. Outra coisa é que a minha mulher faz-me sempre umas sopas fantásticas de legumes e faz-me chás de gengibre com limão. Eu tenho o maior dos cuidados com essas coisas. Depois, eu também durmo 12 horas. O dormir 12 horas é o melhor que há para a saúde. Não há nada melhor para a saúde do que dormir. E às vezes até durmo uma sesta. Bebo água, muita água e tenho uma vida saudável. É a vida que eu escolhi e tenho a sorte de ter encontrado uma mulher que cuida imenso de mim.
Então, podemos dizer que a sua esposa tem sido uma parte fulcral do sucesso na carreira?
Sim. Eu conheci a Gabriela, na Austrália, como uma refugiada timorense. Lá, ela era jornalista na CBS australiana. Eu tinha ido à Austrália fazer a primeira parte de uma banda super conhecida nos anos 80: os Men at Work. Tive um álbum editado na Austrália, em inglês e em português. Chegou a estar em número 2 no top australiano e eu nunca soube. Entretanto, deixei de ir à Austrália, deixei de ter contacto com a Gabriela. Eu tinha uma filha cá e ela tinha uma filha lá. Não podíamos largar as nossas meninas e casamos 30 anos depois. Já somos casados há 15 anos. A Gabriela adora estar aqui, adora Portugal, embora tenha duas filhas crescidas e dois netos na Austrália, loirinhos de olhos azuis.
De todas as partes associadas ao processo de criar música, o que lhe dá mais prazer? Escrever, compor, atuar, produzir…
Gosto de tudo. Adoro escrever uma canção, adoro escrever um poema ou adoro ler um poema que eu queira musicar. Para além de ser o cantor mais premiado de sempre da história da música portuguesa, cheguei à conclusão de que também sou o maior escritor de êxitos da música portuguesa, ao fim de 60 anos de canções. O que eu mais gosto é escrever uma canção. Adoro gravá-la, pois eu gravo em analógico e gravar em analógico é bem mais divertido do que gravar em digital. É mais humano até. Depois, sou um cantor ao vivo. Ser um cantor ao vivo é outra coisa. É estar a fazer aquilo que tu gostas e fazer bem, ainda por cima tendo a possibilidade de preservar bem a voz com esta idade. Tudo isso junto faz de mim, quer queiram quer não, um fenómeno pela positiva. Quem não gosta de mim, também pode achar-me um fenómeno pela negativa, mas podem encontrar alternativas.

Pegando no que referiu, de haver quem “não goste” de si, o José Cid já admitiu que gosta de “provocar” e que se considera antissistema.
Não faço favores e também não minto. Acabo de dar uma opinião sobre o que se faz à tarde, aos sábados e domingos, na televisão. Podia ser algo enriquecedor para o país inteiro, a todos os níveis. Nenhum fez. Aqui na Europa, exageramos um bocadinho. As Câmaras são um fator importantíssimo na divulgação da música portuguesa. Por exemplo, quando vês um cartaz de uma câmara, vês “cantores de música popular”, que são antes cantores de música brejeira, não cantores de música popular. Neste tipo de música popular que dizem que é, mas que na verdade não é, está incluído pela positiva Maria Albertina, António Mafra, Diabo na Cruz, Os Cantares do Minho. Tudo isso é verdadeiramente música popular a sério. Até o fado, o cantar alentejano, a música dos pauliteiros de Miranda. Isso é música popular. Agora, música popular em playback com 3 bailarinas gordas atrás? Isso é terceiro mundo. Não devia ser permitido. Temos música extraordinária, feita por novas gerações e pelas minhas gerações.
Nesta fase, ainda dá para “reeducar” o público português?
Culturalmente, o povo português poderia ter logo certas aprendizagens na escola. Uma diretiva do Ministério da Cultura para as escolas, onde se aprendesse a tocar instrumentos, a ouvir Zeca Afonso, Adriano, Quarteto 1111, Fausto, Rui Veloso, muita muita coisa. Muita coisa que era educativa para a formação dos jovens e não estarem todos presos à música estrangeira que passa nas rádios.
Novamente sobre a questão de gostar de provocar e ser antissistema. Diria que é uma lenda da música em Portugal também por causa disso ou apesar disso?
As duas coisas: pela reação positiva e pela reação negativa. Essas reações negativas são tiros nos pés. As positivas são boas para o ego do artista. Permite ao artista pensar que está na boa direção. As negativas podem ser boas para ajudar o artista a entender que pode não estar a ir bem. Eu nunca tenho certezas de nada. Até em estúdio, em misturas de som, peço sempre colaboração de músicos. Acho que 4 orelhas são sempre melhores do que 2. Então 6 orelhas são ainda melhores do que 4. Eu faço isto porque é a minha vida e é o projeto de vida que eu decidi ter. Enquanto tiver saúde, estou cá. Sei que chateio muita gente, sei que 40 concertos grandes até ao final de setembro chateia grandes empresas deste país, com a mania que dominam os artistas e os exploram. Empresas essas onde não estou ligado, porque tenho centenas de agentes no país e câmaras que me podem contratar. Não é preciso passar por pessoas que levam couro e cabelo aos desgraçados dos artistas, particularmente aos artistas mais jovens. Conheço artistas jovens que hoje são completamente explorados, pelas multinacionais, pelas rádios. Há certas ditaduras de rádios que já existem. E são explorados também por agentes, mas há quem já esteja a fugir disso tudo. Isto porque sabem que o que esses agentes podem fazer, também eles podem fazer em casa deles.

É mais assim agora?
Sinto que está a disparar. Começou já com o Rui Veloso, quando criou a editora dele, depois com os The Gift, comigo também, com os UHF. É importante libertarmo-nos do jogo das grandes multinacionais. Como temos uma consciência musical bastante perfeita, fazer aquilo que nós achamos que deve ser feito e depois avançar. As redes sociais também ajudam muito na divulgação da obra das pessoas.
E para quem está a começar e ainda não tem um legado cimentado? É possível libertar-se dessa máquina?
Dificilmente. Precisam de se apoiar nessas grandes organizações poderosíssimas, onde vendem a alma. O que é grave é que são jovens de 19, 20, 25 anos, que têm de vender a alma para singrar, senão não têm hipótese.
Sendo a alma o motor das canções, se começasse tudo de novo, a vontade era a mesma?
Era a mesma, sim. Eu sou o pequeno grande rebelde da música portuguesa. Sou muito mais rebelde do que o Paulo Carvalho e outros cantores da minha geração. Não estou ligado a lobbies de esquerda nem de direita. Não os aceito, não faço parte deles e gosto até de os enfrentar, afrontar e provocar. Isso incomoda imenso. É por isso que as novas gerações gostam imenso de mim. Vão todos atrás de mim. A não ser os clientes da Festa do Avante, que não gostam de mim, mas eu também não vou lá. Eu não canto para chavões políticos musicais. E sou muito amigo de gente que lá vai e ia. Mas nessa não vou, era o que faltava. Eu cheguei a enfrentar o Álvaro Cunhal, a dizer-lhe que ele era um desperdício como pessoa e político. E depois expliquei-lhe porquê. Eu disse que era o político, de todos os que eu conhecia, mais criativo e mais carismático. É o mais culto, o que tem melhor imagem na televisão. Uma pessoa assim devia mudar todos os dias de ideias. Disse-lhe: “você é uma cassete feita, que diz sempre as mesmas coisas, e um homem tão culto devia mudar completamente de opinião todos os dias, porque mudar é bom”.
E lembra-se da reação?
Ele ficou sem reação. Não teve resposta. Eu não fui mal-educado com ele. Como também uma vez disse ao Mário Soares que ele era surdo. Numa viagem de Paris para Lisboa que fez comigo, ao chegar, eu assinei 28 autógrafos e fui chamado ao cockpit e ele não foi. Não me cumprimentou à saída, o que é má educação, até porque fui super educado com ele. Depois, afirmou que esteve a jantar com a grande Linda de Suza, que era a continuadora da voz da Amália no mundo inteiro. Eu virei-me para trás e desatei-me a rir. Eles perguntaram-me se queria comentar a afirmação e eu disse: “quero. Ele está muito mal dos ouvidos e aconselho a ir rapidamente ao otorrino (risos)”. Arte musical não era com ele e nunca foi. “Comparar Linda de Suza com Amália é a mesma coisa que comparar Mário Soares com Karl Marx”. Isto saiu numa primeira página de um jornal e eu a rir-me à grande e à francesa.


Diria que o brilhantismo do que está para trás ofusca a música que vem depois? As pessoas não ouvem tanto o que é novo?
Ouvem, ouvem. As pessoas ouvem. Tenho um tema atual, no meu álbum, que se chama “De Ditadores Está O Cemitério Cheio”, com um ecrã LED cheio de ditadores atrás de mim, desde o Putin, ao Franco, muita gente. Isso é provocador e as pessoas adoram. Adoram também ouvir canções que eu tenho, que são de intervenção, mas que não deixam de ser temas que o público conhece. Como por exemplo “No Dia Em Que O Rei Faz Anos”. Depois canto as músicas antiguinhas todas.
Qual a música que agora lhe dá mais prazer de tocar em palco?
Agora é a “Ponte nas Ondas”!
Continua a apreciar a música que é feita em Portugal?
Eu defendo muito a música que se faz em Portugal. Acho que nestes The Voices que fazem, daria sempre prioridade aos que cantam em português. Depois, eu gosto da música estrangeira, mas não gosto da música estrangeira assim-assim em detrimento da boa música portuguesa, que é o que acontece nas rádios. É uma passagem exaustiva de canções estrangeiras desinteressantes e sem qualidade, em vez de boa música portuguesa que se faz e que fica posta de lado. Mas há rádios que passam boa música portuguesa, como a Antena 1, a Antena 3.
Acha que programas de talentos deviam dar oportunidade não só a quem é cantor, mas também a quem canta temas seus?
Eu, se fosse júri, dava sempre prioridade aos que são originais. Também é verdade que, ao cantar músicas estrangeiras, dá-se sempre uma voltinha pessoal, mas isso não chega. Eu prefiro o que se escreve de bom e há muita gente a escrever bem em português. Miguel Araújo, Os Quatro e Meia, Zambujo, Os Azeitona. Depois o Jorge Palma, que acaba de gravar um álbum extraordinário. Eu sou muito amigo do Jorge, ele é muito talentoso. Vem muito do Bob Dylan, mas afastou-se. Usou até ser preciso e passou a ser o Jorge Palma. É bom que se diferencie que nós tivemos um Bob Dylan em Portugal, na geração dele, que era bem melhor que o Bob Dylan. O Zeca Afonso era melhor de certeza. Comparem a voz brutal que o Zeca Afonso tinha com a voz anasalada que o Bob Dylan tem. Olhemos para a forma como o Zeca escreveu, preso, num regime que o prendia. Depois o outro que vociferava contra o Vietname, mas nunca lá foi fazer nada e ainda bem até porque ninguém nasce soldado. O Zeca Afonso era um homem humilde que andava de autocarro. O outro andava de Rolls-Royce com um chauffeur negro vestido de branco, o que é coisa de americano piroso e novo rico, que nada tem a ver com aquilo que ele deveria defender. O Zeca Afonso era muito mais coerente do que o Bob Dylan, muito mais. O Adriano Correia de Oliveira ainda tinha mais voz do que o Zeca e o próprio Zeca dizia que o Adriano era o melhor de todos nós. No entanto, o Adriano morreu desprotegido da esquerda portuguesa e de tudo. Ele também se afastou de quem gostava dele, mas isso também é o álcool. O álcool faz isso.

Por falar em comparações, também há quem diga, há vários anos, que o José Cid é o Elton John português. Como vê essa comparação?
Eu sou poeta e o Elton John não é. Eu não fiz uma filha com uma proveta, fiz uma filha com amor numa noite de verão (risos). Atenção, não critico a vida pessoal dele, cada um nasce como nasce. Sou a primeira pessoa a escrever sobre isso, inclusive numa música minha que ninguém conhece, chamada “Lobos e Andorinhas”, onde podem ver o que eu digo acerca disso. Defendo o direito das pessoas serem felizes na forma como querem ser, mas que subam as escadas e fechem a porta. Que não atirem à cara a sua diferença, façam-na. Marquem a diferença e sejam felizes dentro dela. Eu sou um homem completamente desportivo, sou praticamente professor de Educação Física. Nunca fui bom em nenhum mas fiz todos. Fui campeão universitário em triplo salto, mas fazia menos meio metro do que a Mamona (risos). Fui campeão universitário de ténis de mesa, mas perdia 20-0 com os campeões nacionais. Fiz hipismo e fui vice-campeão nacional de salto em altura. Mas fiz todos os desportos possíveis. Até que acabei por desistir de Direito em Coimbra, sendo que em 4 anos fiz 2 cadeiras. Sempre fui muito desportivo. O Elton John é uma tia velha e anti-desportiva. Não é propriamente um homem saudável nesse aspeto. Depois, teve a sorte de ter o Bernie Taupin ao lado dele, um poeta genial. Eu nunca tive isso, fui Bernie Taupin de mim próprio. Tal como Rui Veloso teve Carlos Tê ao lado dele, que é um génio. Carlos Tê ainda não foi homenageado como devia.
Fora dos palcos, como é que é um dia normal na vida de José Cid?
É uma vida normal. Levanto-me sempre tardíssimo, tomo o pequeno-almoço por volta da 1 da tarde. Depois, vou andar pela quinta com as minhas cadelas e com a Gabriela. Passeamos e às vezes ao fim de semana vou ver os meus cavalos a saltar, quando não tenho concertos. Criei 2 cavalos aqui na quinta que estão apontados para o campeonato do mundo, eles estão em Leça. Já que não posso fazer muito desporto, ando a pé e vou ver os meus cavalinhos quando não tenho trabalho. Mas isso é raro, muito raro. Depois, temos concertos e mais concertos. Gostava ainda de deixar uma mensagem: votem! Se estiver um dia bonito de praia, votem mais cedo e depois vão para a praia. Mas não deixam de votar, para depois não se queixarem. Votem, que é algo que para mim devia ser obrigatório. A minha mulher tem cidadania australiana também, se ele não votar, é multada em 500 dólares. No Brasil, o voto é obrigatório. Votem em consciência no que melhor acharem e depois não se queixem.
O que falta fazer ainda?
Falta fazer o meu próximo álbum ou a minha próxima canção. E os meus concertos todos que tenho para fazer. Estou em excelente forma e tenho uma super banda a tocar comigo durante duas horas e tal. Sem conversas, sem truques, sem mentiras, sem playbacks, música a 100% e honesta. Depois, falta-me gerir a minha decadência, o que é uma forma de estar bem comigo próprio. Às vezes, as pessoas não conseguem e desistem. Desistir não faz parte da minha forma de estar. Estou ainda a ajudar o Mário Mata a fazer um álbum de canções de amor. É um extraordinário compositor que me acompanha nas minhas digressões. Inicialmente, era um cantor de intervenção e a direita acha que ele é comunista. A esquerda acha que ele já não é um deles. O que eu lhe digo é “não te faças de vítima nem da direita nem da esquerda”, faz canções de amor. Canções de amor a sério, com bons textos.