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CMPorto

“Francesinha Azul” (parte 2): um texto de João Carlos Brito

– Nem tus nem mus! Isso vende-se como? À embalagem ou avulso? Olhe, para mim, tanto se me
dá, desde que, todas as segundas-feiras, de manhã, me arranje uma dúzia deles. E nem pense
que eu, senhora de bem, venho cá buscá-los! Vai o senhor levá-los ao meu estabelecimento.
Toma um cafezinho, paga e entrega-mos discretamente. E não se apoquente, senhor Eustáquio,
que, no final do mês, recebe envelope fechado, aqui, na farmácia, com o pagamento, que, a
partir de agora, vamos acertar.

Acertaram, pois, os pormenores. E rapidamente a encomenda duplicou. Nem um mês decorreu, os doze iniciais passaram a uma centena. E o negócio ia prosperando, à velocidade da luz. Com a fama a propagar-se a norte e a sul. E a oriente e a ocidente, se contarmos com os pescadores de Matosinhos que, vindos da faina, também passaram a ser clientes do Restaurante Cinco Estrelas, nas noites de sábado, porque só nessas ocasiões a Dona Guilhermina servia aquela que baptizou, pouco imaginativamente, diga-se, de Francesinha Azul.

No segundo mês, perante tanta procura, tomou duas decisões: aumentar o preço à iguaria e
servi-la não apenas ao sábado, mas todos os dias, com excepção, evidentemente, do domingo,
dia de descanso. Decisão que veio rapidamente a revelar-se acertada, com a clientela a lotar
todos os almoços e jantares. Dona Guilhermina e Dolores não tinham descanso. Eustáquio
começava a pensar em trocar de carro e hesitava na marca. Alemã seria, com certeza.
Foi, contudo, ao terceiro mês, nada tendo, contudo, a ver com a simbologia do número, que a
grande mudança aconteceu.

Uma noite, depois de ter servido mais um batalhão, que já faziam fila cá fora – e até urinavam nos gladíolos, os porcalhões! – esperando vez, Guilhermina tomou consciência da mina de ouro que explorava. E, sobretudo, que estava a dar o ouro ao bandido. Não se conteve e, por breves segundos, dirigiu-se directamente ao galã da novela portuguesa que ocupava todo o tamanho do plasma. Não tão grande como o do café Império, mas de dimensão já bastante respeitável. O falecido haveria de gostar ver a bola nele. Ou não, o grande filho de uma cabra.

-Mas por que carga d’água ando eu a botar bolas fora? Se os gajos saem todos com ganda tusa,
mortinhos por chegar a casa ou sabe-se lá onde – se calhar, mais sabe-se lá onde, reconsiderou
– para dar duas ou três seguidas – ou mais, voltou a reflectir, desta vez sentindo uns calores que
há muito não sentia – nas sirigaitas… não deverei eu, Guilhermina da Conceição, aproveitar a
maré? Doravante, é isso que farei!, terminou, resoluta.

E tão compenetrada estava nesses pensamentos que os calores voltaram a esfriar. E assim, 90 dias depois da primeira Francesinha Azul, ou Aviagrada, chamavam-lhe outros, mandou restaurar o quarto de hóspedes de casa que, de hóspedes só tinha o nome, e decidiu dar-lhe bom uso e proveito. Todos os dias de semana, o primeiro andar da Rua do Bonjardim, por detrás dos gladíolos cada vez mais amarelados, haveria de estar aberto e a funcionar, das duas às seis, discretamente, dando vazão aos tórridos efeitos do molho. Precisava de mão d’obra, de preferência barata, e por esse motivo abriu concurso interno, mais de entrevista do que de prova escrita, acabando por se apresentar diversas candidatas ao lugar. Dolores ajudou à selecção e, ao fim de três horas, as duas foram unânimes em designar uma brasileira morena, formas redondas e bem apetecíveis. Jovem, ambiciosa, vinha lá do nordeste com o firme intuito de ganhar muita grana. Para quê, Dona Guilhermina não perguntou. Também não era da sua conta. Foi só ligar para o telemóvel, aguardar uns instantes ao som da Lambada, e ouvir a melosa voz de Jurassi a afirmar que sim, senhora, se apresentaria no dia seguinte, viu, terminando com um expressivo Que legal!

As instruções foram claras. Jurassi entraria ao serviço à uma da tarde, escolheria uma mesa do
canto, almoçaria no Cinco Estrelas (a descontar no pagamento final) e trocaria, de forma muito,
mas muito discreta, uns olhares com os cavalheiros presentes, que os havia em bom número e, embora fosse principalmente à noite que mais saía a Francesinha Azul, deveria estar particularmente atenta às mesas onde estas fossem servidas. Para não haver dúvidas, Dona Guilhermina mandou Dolores ao Chinês comprar umas sacas cheias de bandeirinhas azuis, que haveriam de ser colocadas, no topo da iguaria, com muito cuidado, para não furar o ovo estrelado. Jurassi tinha nascido para o negócio. Parecia que não partia um prato, mas era o desterro da louça. Com a maior das discrições, fazia pesca à linha e não havia dia em que não apanhasse três ou quatro peixes graúdos. Servicinho acelerado, mas também não de Pepe Rápido. Trinta minutos bem contados na ampulheta rústica expressamente adquirida para o efeito. Seguiamse outros trinta de descanso e para cuidados higiénicos, enquanto Dolores tratava da bagunça que os safadinhos aviagrados aprontavam. Passou a ser assim, de segunda a sexta, entre as duas e as seis. Tudo no mais perfeito recato, que Dona Guilhermina D’Oravante fazia questão de manter as aparências. As aparências e os lucros, fífeti-fífeti, metade de nota de cinquenta beijinhos, como previamente combinado na concertação social do primeiro dia de trabalho. O facto estava consumado. Já não havia como manter as aparências. Jurassi apercebeu-se que a calmaria resultante da ingestão do bagaço não deveria ser sinal benigno. Como sempre acontece, todos olhavam, mas ninguém dava um passo para ajudar o pobre Rodolfo Baeta. A mocinha perdeu a compostura e bradou:

-Me ajudem, me ajudem! Seu Rôdôlfo está passando mal!

Reformados continuavam a ser clientela prioritária na casa, mas agora, de entre a classe dos excedentes do labor, já pontificavam professores, engenheiros, juízes e até médicos. Por azar, na altura, não estava lá nenhum. Mas Eustáquio, de tanto cafezinho que ia tomando, acabou por ficar cliente. Era o mais próximo que havia de um médico. Jurassi agradeceu aos deuses e se benzeu:

-Puxa, Nossa Senhora, ainda bem que você tá aí, Seu Batráquio…

-Eustáquio, menina, Eustáquio, corrigiu.

-Vêrdade, seu Cardápio… vê aqui o que se passa com ele… tá branco como a cal. Parece que viu
chupa-cabras…

Dolores e Jurassi, entretanto, se iam dando mal. Uma não ia com a cara da outra e a outra não gramava a uma nem à lei da bala. Competiam, numa disputa silenciosa, quem primeiro cumpria as suas obrigações: se Dolores a limpar o quarto e a mudar os lençóis, se a brasileira a sua tualete íntima. A primeira cada vez mais do género deita-lhe a mão e enfia dedo, a segunda com os tchap-tchapes do bidé cada vez mais ritmados e em menor número. Sempre que terminavam a sua missão, apresentavam-se perante Dona Guilhermina que, qual general perante o seu pelotão, se maravilhava com tanta eficiência e zelo no trabalho. Um dia, Dolores chamou a patroa e pediu conversa em privado. Paleio assim tresandava a pedido de aumento, cogitou Dona Guilhermina, que se deu imediatamente a ares de malhumorada, não fosse o diabo tecê-las. Sim, porque o tempo era de crise.

-Dona Guilhermina, já estou aqui há tempo suficiente para lhe dizer isto. A senhora sabe que
eu a tenho como minha mãe…

Queria aumento, de certeza, a mafarrica, confirmava a mulher, de si para si. Vais ter sorte, vais…
Mas enganava-se. Para variar, Dona Guilhermina enganava-se redondamente. O que a rapariga
desejava, sim, era aumentar os seus rendimentos, mas de uma maneira completamente
diferente e que, sublinhou a patroa no seu pensamento mais íntimo, lhe poderia trazer ainda
mais dividendos.

-A senhora sabe que eu a tenho como minha mãe, repetia Dolores, com a frase por terminar
por causa da comoção.

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-Chora, filha, chora. Deita cá para fora o que te vai na alma, incentivou-a a senhora D’Oravante.

Deitou tudo cá para fora. Contou que a mãe sofria de doença incurável e que para se curar (esta parte Guilhermina também não percebeu muito bem, mas achou que seria incorrecto interromper para pedir explicações sobre o paradoxo) precisava de muito acompanhamento médico, toneladas de medicamentos. E que a Caixa não era solução, que só no Privado a atendiam, que era muito caro e tal. Em suma, o que a moça queria era fazer umas horas extra na parte de cima do restaurante. Mas não como empregada de limpeza! Até tinha um plano: seria Dolores, espanhola de Madride, aproveitando os seus conhecimentos da língua castelhana de quem nasceu e cresceu entre Valença do Minho e Tuy e o seu aspecto mediterrânico: tez morena, cabelo bem escuro e peito ousado e generoso com decote a
condizer.

De resto, até o nome era espanhol! Ninguém iria notar! Mas o plano não estava completo: tal como Jurassi, também ela queria bandeirinhas na francesinha. Justificava que o marquetingue já estava feito e que bandeirinha na francesinha, no Cinco Estrelas, era sinal de impulso-reacção pavloviano. Pormenorizou que rapidamente os clientes perceberiam que bandeirinha espanhola significaria ida ao andar de cima… com a espanhola! E até sugeriu que, para ser diferente, Dona Guilhermina confeccionasse umas francesinhas de bacalhau. Esta, boquiaberta com tanta sabença, só dizia que sim, meneando a cabeça, de espanto… e de agrado. Como era política da casa, começou a trabalhar no dia seguinte. Rapidamente encontraram um esquema para a nova realidade. Alternavam e, a correr lindamente, das duas às seis, aviavam uns oito clientes.

Porque o ganho era a dobrar, Dona Guilhermina, a custo, lá achou por bem contratar uma miúda para a limpeza, paga consoante as horas que fazia, obviamente. Jurassi viu que o melhor era assinar um pacto de não agressão com a vizinha Espanha e, durante uns meses, as coisas serenaram. Ao ponto de, terminado o turno, irem as duas beber um copo, juntas, em animada cavaqueira, sobretudo quando a mãe, com muito melhores tratos, parecia ter-se curado da doença incurável que a assolava. Dolores e Jurassi, numa aliança hispano-brasileira, arrasavam a movida portuense. Do Suingue ao Ivaoua, ganharam fama e aumentaram, infinitamente, a carteira de clientes. Bons clientes, tudo gente da alta, de muito dinheiro. Ou grana, dependia da perspectiva. E teria sido no Suingue, ou talvez no Ivaoua, ou, quiçá, no Aniquibobó – pouco importa o local.

De noite, no Porto, todas as gatas são pardas – que as duas travaram conhecimento com Rodolfo Baeta. Ficaram, desde logo, a saber que o homem não era dado a noitadas, se bem que gostasse, que a mulher lho não consentia e se ali se encontrava era por efeméride especial da empresa, da sua empresa, com os seus mais de cem empregados. Por outro lado, se a noite lhe era madrasta, vingava-se na luz do dia, com tardes consagradas aos apetites, que o ferro era bom, mas a carne fraca. A partir dali, ferrinho se tornou do Cinco Estrelas, às duas, depois do almoço. Com bandeirada muito acima dos cinquenta beijinhos da tabela. No início, variava. Ora ia na Francesinha Azul, ora comia o bacalhau à espanhola. Mas depressa se fidelizou à marca brasileira, pois deve ter algum fundo de verdade o dito de que ninguém o sabe fazer como elas. Aqui, sofreu os primeiros rombos a aliança transatlântica, porque cliente como Don Rodolfo no se quedam del cielo a los trambolhones.

O golpe de misericórdia foi dado pela doença incurável da mãe que, afinal, não estava
completamente curada. Os médicos falavam novamente na necessidade premente de operar.
O quanto antes, antes que seja tarde de mais, sentenciaram-lhe na Ordem, em jeito de veredicto
final. Claro que uma operação destas tem os seus custos, acrescentaram. Mas a saúde de uma
mãe não tem preço, atalhou um deles, não se ficando a saber a quota-parte de sarcasmo com
que o disse.

Marcou para a data apontada, o quanto antes. Depois se veria como haveria de pagar. Claro que
é necessária uma fracção inicial, informou o médico com jeito para a contabilidade. O que
piorava o cenário.

-Com certeza, senhor doutor. Amanhã, ao final da tarde, cá estarei com a fracção que me
pedem, terminou a inconsolável Dolores, que não fazia ideia de como conseguir a tal fracção
que, para fracção, mais parecia número inteiro.

Pedir adiantamento a Dona Guilhermina era pura perda de tempo. Conhecia-a bem e sabia que
dali só com assalto à mão armada. E mesmo assim… Amigos com dinheiro não tinha e Jurassi,
que era a que mais próximo disso estava, dificilmente lhe emprestaria uns cobres. Ainda lhe
ligou para o telemóvel, ouviu três vezes a Lambada, mas recebeu o que esperava, mesmo
invocando motivo de Estado: uma nega redondinha.

De noite, congeminou o plano, por entre os ais e os uis da mãe: a salvação chamava-se Rodolfo
Baeta. Claro que o balofo Rodolfo não iria abdicar da brasileira, mas e se, enquanto preparava
o molho da francesinha, o fizesse com dose aviagrada bem reforçada? Só a Azul de Don Rodolfo,
é claro. Colocar-lhe-ia tanto comprimido que, no mínimo, o homem ficaria com uma moca capaz
de deitar abaixo o Bolhão e o Bom Sucesso! Ora, sorriu, para além de Jurassi, a fruta disponível
ali… era ela, Maria Dolores del Bosque! E há lá melhor altura para sacar guita a um homem do
que essa? Dona Guilhermina bufava, bufava. Olhou para o relógio. Passavam mais de trinta minutos das
duas.

-Ó rapariga, esta brasuca tira-me do sério. Vai lá abaixo ver o que se passa. Eles que venham,
que tempo é dinheiro.

Dolores também estranhava a demora. Já Jurassi deveria estar a terminar o serviço e a largar Rodolfo Baeta nos seus braços, ainda pleno de vigor, e recheado de generosidade. Por via das dúvidas, decidiu não facilitar. Três, cinco, dez, um frasco inteiro de comprimidos azuis que despejou no molho especialmente confeccionado para a Francesinha Azul do empresário. Normalmente, numa dose individual, um chegaria para pôr o Manuel de Oliveira a rodar o Garganta Funda. Ainda suspeitou que os fosse encontrar na escadaria ou por trás dos malmequeres e dos gladíolos amarelos a fazer o que era suposto estarem a fazer, não conseguisse Rodolfo suportar a longa espera de contornar o jardim e subir as escadas. Não. Nada disso. Chegou mesmo a tempo de ver os paramédicos do INEM de saída do restaurante, os maqueiros ofegando pelo volumoso corpo tapado que tentavam transportar para a ambulância.

Soube de tudo por Jurassi. Que ela fez os possíveis e os impossíveis. Que seu Eustáquio bem tentou. Respiração boca-a-boca, massagem de reanimação, mas nada. Seu Rôdôlfo não resistiu a um AVC fulminante, diagnosticaram os clínicos, ele que era uma pessoa de altíssimo risco. Pânico é pouco para o sentimento que penetrou violentamente em Dolores. Num turbilhão de ideias pouco claras, contou até 10 e fez por se acalmar. Bebeu um copo de água e lembrou-se que, provavelmente, tinha estragado a sua vida. Na morgue, rapidamente iriam perceber na autópsia a causa do AVC. Correu para a cozinha. Havia que esconder as provas, deitar o molho pela sanita. Triturar os restos da Francesinha assassina. De pânico passou a terror no momento em que não encontrou quaisquer vestígios da arma do crime. Maria de Fátima que, quando não estava de serviço nos quartos, dava uma mãozinha na cozinha, segurava o tacho onde, umas horas antes, se fizera história de policial, naquela afamada casa de pasto. Dolores, num último assomo de coragem, perguntou-lhe, a tremer:

-Por acaso sabes onde estão os restos da Francesinha que serviste ao senhor Rodolfo?

-A Francesinha do senhor Rodolfo? Menina, deu-lhe o fanico tão depressa que o pobre diabo
nem chegou a tocar na Francesinha. Olhe, servimo-la ao Eustáquio…

Foto: via Copilot

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