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recheio 2025 2º

“Francesinha Azul” (parte 1): um texto de João Carlos Brito

– Rodolfo, Rodolfo, você está passando mal, benzinho?

Claro que Rodolfo já tinha passado por dias melhores. Bastava olhar para ele. Não era preciso
ter curso de medicina para perceber que o homem estava a entrar em colapso. As mãos sapudas
estrangulando o próprio pescoço como se tal gesto o fosse libertar de uma pressão imensa que
colava traqueia, esófago, laringe, faringe e tudo o mais que, porventura, existia nas suas
entranhas.

O rosto encarnado, do queixo até ao ponto mais alto de uma careca mal disfarçada
por uma penugem que o homem miraculosamente esticava com risca por cima da orelha. O
olhar lânguido e vazio de quem já não via senão a própria morte. E a língua. A língua atirada para
fora da boca, assumindo proporções dantescas.

Uma língua que não passou despercebida, nem em momento de tal aperto, a Jurassi, que descobriu naquela hora malfadada que aquele órgão muscular também inchava e poderia ter utilizações bem mais proveitosas do que simplesmente apaladar novo petisco, que maravilhava toda a cidade do Porto.

– Oi, querido! Me fala, vai! Vôcê quer um copo de água?

Como a resposta tardava daquela amálgama de ossos e cento e cinquenta quilos de carne,
solícita, Jurassi decidiu entender o silêncio como afirmativa, e procurou rapidamente com o
olhar o tal copo, que nas mesas em volta já os talheres tinham parado de tinir e os olhares se
voltavam para o desgraçado homem.

Mas na mesa só havia bebida branca. Que era quase a cor da água, deve ter pensado, pois agarrou com toda a convicção do mundo um cálice de aguardente, com o qual penetrou violentamente a boca semicerrada de Rodolfo, que já não estava em posição de escolher acompanhamento do cardápio. Bebeu tudo.

Tudinho até à última gota, com sofreguidão, constatou a moça, verdadeiramente satisfeita pelo seu acto e pela sua acertada decisão. Depois é que foi o cabo dos trabalhos. Se o homem estava malzinho, pior ficou com o álcool quase puro a derreter-lhe as goelas. Se pudesse, teria gritado. Teria, certamente,
insultado, com os melhores impropérios, Jurassi, usando o vasto léxico que era língua oficial de
cama, todas as sextas-feiras, à tarde, depois do almoço, entre as duas e as quatro, na Residencial
Cinco Estrelas, ali plantada no Bonjardim, discretamente atrás de um jardim de malmequeres e
gladíolos brancos, num primeiro andar sombrio q.b.

E pouco se importava o utilizador que das Cinco Estrelas supostamente anunciadas apenas duas (com a terceira prometida pelas autoridades sanitárias, avisava grosso letreiro, à porta) existissem efetivamente no firmamento da pensão.

-Queres tu ver, meu estapor, que a Jurassi, aquela deslambida, arranjou outro ninho? Ai a
granda mula, que já me está a lixar. Com efe grande e tudo…

Quem assim se lamentava era Dona Guilhermina d’Oravante, generosa de carnes, mas pouco
dada a partilhas de contos de reis que se transformaram em euros, sobretudo quando o tinha
por garantido. Que, se não era sempre, era quase sempre, o que lhe tinha valido na vida
desilusões suficientes para não mais se iludir.

Ou, pelo menos, iludia-se com estes pensamentos.
Junto dela, estava Dolores, espanhola da raia, do lado de cá, mas com viagens bastantes às
Espanhas para passar por dama madrilenha. O leque e uns olés, aqui e ali, entrecortando a
pronúncia acentuada do Alto Minho, faziam o resto e convenciam quem, na verdade, nem se
dava ao trabalho de se desconvencer e viajava até ao Porto para comer o bacalhau à espanhola,
chalaça que rapidamente galgou montes e vales pelas imediações.

Mas não era para Dolores o desabafo. Seria, seguramente, mais para os seus botões, que eram parcos, mas que abotoavam portas pouco secretas e de muito prazer, orgulhava-se, ainda, Dona Guilhermina, cinquenta anos bem rodados e mais alguns, mas cuidadosamente estimados.
E tinha o seu quê de ser tal dito de maldizer. Ora um quarto de hora já lá ia e o quarto
permanecia virginalmente vazio, cama feita e arejada, lençóis imaculadamente brancos e
perfumados a sprei de jasmim, como tanto apreciava o senhor Rodolfo Baeta, empresário de
sucesso, de ramo incerto, mas cuja riqueza, se devia ao ferro e lata, desconfiavam as moradoras
da Cinco Estrelas sem, no entanto, se darem ao trabalho de tirar a limpo.

Muito mais claro era o pagamento em notas de cinquenta euros, carinhosamente apelidados de beijinhos cinquenta, certinho como o motor rabor. Pegasse ou não pegasse o seu próprio engenho que, nestas lides, o desgaste masculino é mais evidente na intimidade que o do sexo oposto. Se Jurassi ajoelhasse,
tinha de rezar; se o pagador usasse o quarto, tinha comida à disposição… pois se a deixasse no
prato, tinha de custear a despesa à mesma, ora bem. E, no Porto, as contas são à moda do porto,
pois nunca se sabe quando o marinheiro tem de partir.

Dolores partilhava da preocupação da proprietária, a avaliar pelo seu ar circunspecto,
contrastante com a normal alegria que exalava, facto que teria certamente algo a ver com a
doença súbita da mãe. E também com o tamanho da conta da clínica privada a pagar se queria
que ela vivesse o suficiente para não ter de esperar pelos dois anos que o médico especialista
asseverara ser o tempo normal de espera por uma operação desse calibre no público. Dona
Guilhermina, entretanto, não fazia por calar a revolta:

-Doravante, é só com pagamento adiantado…, repetia, pesarosa, mas, simultaneamente, com
aquele tom de quem agradece um erro para enveredar pelo caminho correcto. E glosava
poeticamente a sentença com voltas pegadas:

-Doravante, pelo menos para aquela coirona, cobro-lhe o quarto, com antecedência.
Dava para perceber a alcunha que lhe valia de apelido. Sem ter um léxico demasiadamente
profuso no que a palavras caras dizia respeito, Dona Guilhermina adorava a palavra doravante.
Utilizava-a amiúde. E normalmente com todo o propósito, diga-se de passagem.

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-Isto assim não pode ser! Não quero que ninguém morra, só quero que a minha vida corra.
Ainda por cima, agora, com a crise que aí vai. Doravante…

E voltava à ladainha. Dolores tinha marcação para as três da tarde com cavalheiro de bem,
igualmente bom cliente, mas não tão assíduo, regular e generoso quanto Rodolfo Baeta que,
provavelmente, tinha o toque de Midas, sempre que tocava em ferro-velho. Para além dos
cinquenta beijinhos da praxe, fazia questão de deixar pródigas e pedagógicas gorjetas pelos bons
serviços. Daí que fosse belicamente disputado em toda a residencial.

Seria, repetiam inúmeras vezes as meninas, mais do que altura para Dona Guilhermina ampliar
o negócio. Um quarto era manifestamente pouca oferta para tanta procura, mas a cinquentona
não queria dar nas vistas, desculpa esfarrapada para justificar a diminuta apetência para o
investimento. Ainda por cima em tempos de crise.

Além disso, o seu negócio era a restauração, nome algo pomposo para a encolhida casa de pasto do rés-do-chão que o falecido Domingos herdara do pai, que manteve de pé à custa de meios bagaços e sandes de presunto e que, até exactamente um ano após a sua morte, já se disse, se mantivera como um pacato local de copos e sueca ao sábado à tarde, muito raramente entrecortado por passageira zaragata, que Dona Guilhermina, nestas coisas, era implacável e sabia manter a ordem na casa e a contenda terminava sempre com festim de francesinha, iguaria que, justiça seja feita, a senhora preparava como ninguém.

E tudo teria morrido com o pobre Domingos, que Deus o tenha em paz, se um ano depois do
malfadado enfarte que o vitimou sem apelo nem agravo, a viúva não tivesse deixado,
inadvertidamente, cair uns comprimidos azuis, que nunca antes tinha visto nem fazia ideia do
que eram nem para o que serviam, no molho das francesinhas.

O diabo das pastilhas que se tinham escondido, durante um ano inteiro, no forro descosido do casaco de sair do bom do Domingos. Sim, porque o Domingos era um santo homem, mas também tinha os seus fracos. O maior era o de, invariavelmente, aos sábados à noite, ir ver a bola ao Café Imperial, que tinha
um plasma do tamanho do mundo e onde podia ver os seus ídolos tão pertinho…. Mais pertinho
do que no Estádio das Antas! Depois, punham-se a discutir as faltas, os lances para penálti que
o árbitro não marcara, os golos, até às tantas. E só chegava de madrugada. Os comprimidos
deviam ser para o acalmar quando o Porto não ganhava. Por isso, decerto, eram azuis. E se o
falecido os tomava para não chegar a casa mal-disposto por causa dos dissabores do FêQuêPê,
não iam fazer mal, também, ao molho, porque era o que mais faltava deitar fora aquele
molhinho. Era um pecado, olá se era. Vai daí, resolveu o assunto, ao som triturador da varinha
mágica. Que haveria de fazer magia.

Reza a história que o molho não só não caiu mal aos comensais daquele sábado de grande
suecada da casa de pasto Cinco Estrelas, como também lhes deu forças e energias miraculosas,
que o comprovaram descaradamente sete das fiéis esposas no dia seguinte, de manhãzinha, na
padaria, sendo que a Rosinha Padeira jurava a pés juntos que não via assim o seu Manel desde
o dia do casamento. Podia ser encanto, coisa do arco-da-velha, mas Dona Guilhermina que era
viúva, mas não era parva, somou dois mais dois e quando viu toda a tasca de membro em riste,
numa sinfonia de urros de espanto e de incredulidade, homens de setenta e oitenta anos, não
disse a ninguém, mas percebeu que o milagre a ela o deviam. Daí que, após a debandada do cio,
retornasse ao armário onde estava o casaco de sair do Domingos e tanto vasculhou e tacteou
pelo forro que encontrou mais um comprimido. Azul, naturalmente.

Na segunda-feira, bem cedo, deixou a Dolores a tomar conta da casa e foi em passo lesto em direcção à Farmácia, a Sá da Bandeira, perguntar ao senhor Eustáquio se sabia que diabo de comprimido era aquele. Pois o Eustáquio devia ser do Benfica, porque quando viu o azul da rodinha, ficou vermelho que nem
um pimento. Aliás, pelos vistos, todos, no estabelecimento, do lado de cá e de lá do balcão,
sabiam, se não não teria ouvido ditos e risos que percorreram tanto faces imberbes como
enrugadas. O Eustáquio puxou-a o mais discretamente que a situação permitia para a sala de
medir a tensão e explicou-lhe o que ela já desconfiava. Porém, levava já a dela ferrada Dona
Guilhermina:

-Ó senhor Eustáquio, e onde é que eu posso arranjar mais?
E aclarou que doravante iria precisar de dose reforçada daquela mezinha. Que, segredava o
farmacêutico, só se obtinha com receita médica.

-Uma gaita é que é só com receita médica, senhor Eustáquio. O meu homem, esse… – ia dizer
santo, mas rectificou a tempo, de acordo com as novas revelações – esse valente filho da polícia,
nunca foi ao médico… Quer-me convencer que os obtinha com receita médica?

E, dito isto, colocou-se naquela pose tão característica de mulher de espera triunfante, braços cruzados, olhar de desafio, olho direito ligeiramente semicerrado, o pezinho esquerdo a bater compassadamente no chão de mármore da farmácia. As cores voltaram a assomar, de encarnado ainda mais vivo, à face de Eustáquio, que baixou ainda mais o olhar e a voz, ele que normalmente sussurrava em vez de falar.

-Sabe, Dona Guilhermina… juro que pensava que eram para consumo caseiro… O senhor
Domingos parecia tão recto…

A mulher interrompeu-o:

-O que lá vai, lá vai… Doravante pretendo que me abasteça regularmente com esses
comprimidos azuis!

-Mas, senhora Dona Guilhermina, não é fácil… se alguém descobre, é uma desgraça…

Foto: (via Copilot)

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