“Quero trabalhar como atriz até morrer”
“Extremamente leal, frontal e com caráter”, é desta forma que a atriz e professora Estrela Novais se define. Confessa que das coisas que mais gosta no Porto é o caráter das pessoas: estas “sabem o que querem e quando não gostam de uma coisa, não gostam”.
Em conversa com a VIVA! a atriz recordou um pouco da sua infância e adolescência em Gaia, o início da sua carreira no Teatro Experimental do Porto e a época em que fundou, em conjunto com António Reis e Júlio Cardoso, a Seiva Trupe.
Falou-nos também do seu trabalho como professora que inicialmente “não queria de forma nenhuma”. Hoje, aquilo que a faz mais feliz nos 30 anos de ensino é já ter colegas de trabalho que já foram seus alunos.
Enquanto atriz, desde a década de 90 que se dedica quase exclusivamente à televisão, onde tem participado em diversas novelas, como «A Viúva do Enforcado», «Olhos de Água», «O Último Beijo», «Amanhecer», «A Ferreirinha», «Dei-te quase Tudo», «Doce Fugitiva», «Feitiço de Amor», «Deixa que te leve», «Destinos Cruzados», «Dancin’ Days», «Bem-Vindos a Beirais» e, mais recentemente, em «Para Sempre».
Fale-nos um pouco sobre si, como foi a sua infância e crescer em Vila Nova de Gaia?
Eu vivi parte da minha infância, até aos seis ou sete anos, em Monção. Nessa altura já tinha o sonho de ser atriz, era apaixonada por poesia e fiz a minha primeira apresentação, no chamado, quarto ano com “Asas Brancas” de Almeida Garret. Foi um sucesso e a partir daí o teatro esteva sempre presente em mim.
Continuei os meus estudos e fiz o ensino secundário na escola industrial e comercial em Gaia onde estava sempre com ideias. Na disciplina de francês escolhia um texto naquela língua e punha as minhas colegas todas a representar. Em praticamente todas as disciplinas tinha vontade de mostrar coisas.
Aos 14 anos sabia que queria ser atriz, e, ao início, o meu foco era formar-me primeiro e só depois iria ser atriz, mas isso não aconteceu. Tudo se antecipou porque eu fui estudar e de repente já estava, aos 17, a estrear-me no Teatro Experimental do Porto, começando assim uma grande viagem.
Em que momento da sua vida surgiu a representação? Sempre quis ser atriz?
Sim. Desde os quatro anos de idade que tenho memórias bastante nítidas de quando eu me isolava num quarto e me punha a falar com bonecas, a fazer personagens e ai de alguém que me fosse lá incomodar porque eu estava a fazer teatro.
Depois apareceu a televisão e à quinta-feira havia uma rubrica de teatro com atores portugueses que eu queria sempre ver. O meu pai não queria que eu visse, porque aquilo acabava tarde e no dia seguinte tinha escola. Eu dizia-lhe que não adormecia para poder ver e acabava por adormecer, claro, mas eu era fascinada!
Como se define enquanto pessoa?
Sou extremamente leal, frontal e acho que mantenho o meu caráter de fundação do Porto. Isso é, aliás, uma das coisas que gosto do Porto, porque é uma cidade com caráter, as pessoas sabem o que querem e quando não gostam de uma coisa não gostam.
O que mais gosta de fazer nos seus tempos livres?
Ler e ver filmes. Mesmo em casa gravo os filmes e depois estou horas a ver cinema.
Quando pensa no Porto o que lhe vem automaticamente ao pensamento?
Teatro. Foi no Porto que eu comecei a minha carreira e inicialmente só vinha a Lisboa para estar pontualmente na televisão. Acabei por estar no Porto até aos 36 anos, onde fundei a Seiva Trupe.
Se fosse possível, que característica ou lugar do Porto levaria para Lisboa?
Isso eu já trouxe: uma parte de mim é parte do Porto.
A sua estreia foi no Teatro Experimental do Porto, com a peça Bodas de Sangue. Lembra-se de como foram os dias antes da estreia?
Em oito dias apareci em palco e não tinha experiência nenhuma. O que funcionou foi a minha intuição. Estava muito nervosa claro, mas eu continuo a estar sempre nervosa antes de qualquer trabalho, mesmo em televisão. Acho que isso tem até aumentado com os anos porque o público é mais exigente e já pede mais de nós.
Estava obviamente muito nervosa na altura, mas também estava muito feliz.
Em 1973, ainda em tempos de censura, foi uma das fundadoras da companhia Seiva Trupe. Enfrentar um desafio desses aos 20 anos e com toda a conjuntura social, não deve ter sido fácil. Conte-nos um pouco sobre essa experiência.
Senti-me muito honrada porque era uma miúda nova e os meus colegas, António Reis e Júlio Cardoso, que fundaram comigo a Seiva Trupe, eram muito mais velhos. Estava muito orgulhosa por ser convidada para um projeto desses e que aparecia como um complemento ao Teatro Experimental do Porto.
O objetivo era criar outras alternativas, aumentar e enriquecer o ambiente cultural da cidade. Aceitei o desafio com riscos e com medos e não entrei logo como atriz, porque eu tinha um contrato com o Teatro Experimental.
Comecei por ser relações públicas e era muito interessante porque eu ia às terras de comboio “vender” uma coisa que nem sabia o que era. Eram situações caricatas porque era raro vir sem um contrato fechado, sem “vender” a companhia.
Aos 27 anos conseguiu uma bolsa para ir estudar para a Accademia Nazionale di Arte Drammatica Silvio D’Amico, em Roma. O que guarda dessa fase da sua vida?
Foram os três anos melhores da minha vida. Estudei lá um curso de encenação, conheci pessoas maravilhosas que ainda hoje são minhas amigas e mantenho o contacto. Tive grandes mestres e mestras a quem devo muito do que sei. Apaixonei-me pela literatura italiana e por Itália, que acho que é a minha casa.
A Estrela já dá aulas há muitos anos. Como se define enquanto professora?
Às vezes sinto que sou também eu a aluna, pois acabo por me reciclar constantemente. Para ensinar nós não estamos sempre a utilizar o mesmo programa como acontece noutras disciplinas. O meu trabalho depende também do grupo humano de alunos que tiver. Tenho de pensar que textos vou escolher para eles e se se adequam aos seus anseios. Eu nunca repeti num espetáculo, todas as encenações que faço na escola são de textos diferentes.
Sou uma professora exigente, mas aquilo que me faz mais feliz nestes 30 anos é já ter colegas meus que já foram meus alunos. São muito bons atores e atrizes e também tenho outros que seguiram diferentes áreas, ainda assim ligados ao teatro amador ou como formadores no sitio onde estão a trabalhar e é muito bonito e o que fica.
Como é trabalhar como professora e como atriz?
Como professora é uma paixão. Curiosamente eu não queria nada ser professora e foi uma resistência tremenda, porque já na Seiva Trupe um colega meu dizia que eu tinha muito jeito para ensinar e eu não queria de forma nenhuma.
Numa ocasião o Teatro Experimental do Porto pediu-me para ir fazer uma formação aos fins de semana com vários grupos e coletividades de Vila Nova de Gaia, eu lá fui e depois nunca mais saí disto.
Ser atriz é também uma paixão. Eu estou sempre a ler textos diferentes e a ver coisas porque nós atores somos assim, estamos sempre inquietos, e isso faz-nos dar mais valor à vida
São cada vez mais os jovens que entram na representação com base no sucesso que fazem nas suas plataformas de redes sociais. Qual a sua opinião sobre este assunto?
Se um jovem tem um sonho e utiliza as redes sociais para o atingir eu acho bem. Considero que quando se tem sonhos é preciso lutar, seja de que maneira for.
Eu não sou fã das redes sociais, mas admito que internet é uma coisa fabulosa quando o ser humano sabe utilizar devidamente.
Considera que a formação continua a ser essencial?
Absolutamente. Um jovem tem de passar pelos exercícios que o desbloqueiem, que aprenda a gostar do seu corpo como é, a ser também rejeitado. Em qualquer arte é importante saber ser rejeitado, o ator é um ser peregrino, tem de aguentar até ao fim e isso não é fácil. É por esse motivo que alguns aparecem e desaparecem e as pessoas nunca mais ouvem falar neles. Isto é duro e não estamos sempre no auge, é preciso persistir muito e depois encontrar dentro da sua área artística outras vertentes onde possa ser útil.
Na sua opinião a arte de representar ficará bem entregue à nova geração de atores?
Sim, há aí uma geração muito boa de atores. Estão sempre a aparecer rapazes e raparigas cheios de talento. O teatro nunca morre!
Depois de fazer tantas personagens, quais as marcaram mais?
Gostei de fazer todas as personagens, mas poderei dizer talvez a Medeia.
Quais os projetos profissionais que recorda com mais carinho?
Todos. Eu quando entro num projeto é porque acredito nele e por isso fica sempre uma belíssima recordação.
Arrepende-se de alguma coisa em que tenha participado ou que, por algum motivo, recusou fazer?
Não. Eu sou muito tolerante, aliás qualquer ator deve ter essa característica. Posso estar a fazer uma personagem má, mas eu sou tolerante com aquela personagem, tenho que encontrar qualquer coisa boa para eu me apaixonar.
Por isso, quando algo não corre como nós estamos a prever eu digo sempre que faz parte do trajeto e é mais uma aprendizagem.
Como olha para a situação da Cultura em Portugal?
A Cultura está muito pouco apoiada no nosso país. Somos nós os atores, pintores, escultores, bailarinos, etc, os agentes culturais que lutamos. Até no orçamento de Estado a Cultura nem 1% tem. Mesmo depois do 25 de abril houve uma grande agitação cultural e nós não tínhamos teatros, mas lutamos e persistimos.
Quais as medidas que gostava de ver implementadas pelo Governo, em relação à Cultura no geral e à classe dos atores, em particular?
O estatuto de ator, ou seja, a carteira profissional. Deviam também ter em conta o prestígio do ator e da atriz, qualquer pessoa das artes, na realidade, em quando chega o tempo de haver uma espécie de prémio para a pessoa pelo seu mérito.
Quando essa pessoa que chegou à idade da reforma, que lutou tanto, com um trajeto certamente muito difícil, ter direito a um “subsidio” (embora eu não goste nada dessa palavra). O que quero dizer com isto é, que devia existir um mealheiro cultural para ser distribuído a quem o merece.
Se pudesse escolher, que tipo de personagem gostaria de interpretar num próximo projeto?
Eu estou sempre aberta a tudo o que seja trabalhar, a tudo que seja arte. A partir do momento que aceito fazer, gosto sempre de qualquer personagem.
Gostava de trabalhar como atriz muitos mais anos?
Eu tenho muita vontade de viver e pretendo trabalhar como atriz até morrer. Há “sempre uma bruxa para fazer”, já dizia Elizabeth Taylor.
Foto de capa: Flash!