Há muitas formas de viabilizar a cultura e é isso que realmente me apaixona
Guilherme Blanc, diretor artístico do renovado Batalha Centro de Cinema, é o protagonista do mês de janeiro. Em conversa com a VIVA! Guilherme fala-nos um pouco do seu percurso académico e profissional e de como é estar a trabalhar numa instituição há muito aguardada na cidade do Porto.
Falou-nos também do feedback que tem recebido em relação ao Batalha Centro de Cinema, dos diferentes espaços do edifício e daquilo é possível ver e fazer. Houve ainda tempo para conversar sobre a cidade do Porto, de que forma esta o inspira no seu trabalho e o que mais gosta na mesma.
Recorde-se que o emblemático Batalha reabriu as suas portas a 9 de dezembro de 2022, com novos espaços a explorar, como a Biblioteca e Filmoteca, a Sala-Filme, a Livraria e a Cafetaria/Bar.
A descoberta dos frescos de Júlio Pomar – que permitiu recuperar para a cidade um património da década de 1940 que havia sido censurado pelo Estado Novo – é outro dos destaques da empreitada de renovação.
Quem é o Guilherme Blanc? Como se define enquanto pessoa e profissional?
Sou uma pessoa apaixonada pelo que faço, gosto do trabalho que desempenho. Sinto-me particularmente confortável na área de cinema e sou uma pessoa que precisa e gosta de trabalhar. Acho que isso é uma das características que melhor me definem. Sou uma pessoa bastante extrovertida, mas ao mesmo tempo reservada em certos sentidos.
Fale-nos um bocadinho sobre si, onde nasceu e cresceu?
Nasci e cresci no Porto. Tenho memórias felizes desde a minha infância, da família e de crescimento na cidade. Tive a felicidade e a sorte de ter uma infância feliz e estável.
Conte-nos um pouco do seu percurso académico e profissional?
O meu percurso académico foi bastante diversificado, não foi muito lógico ou ortodoxo. Fui sempre estudando diferentes áreas, quer na escola, como na faculdade, onde acabei por estudar Direito. Depois de terminar o curso emigrei, fui para Londres estudar Políticas Culturais e mais tarde acabei por me ligar mais à curadoria e programação e fui caminhando por sítios nem sempre logicamente relacionados.
Sabemos que leciona em diferentes cursos de licenciatura no âmbito da Política e Gestão Cultural. Como é viver essa experiência profissional?
Sim, ainda dou aulas de cinema há já alguns anos e para mim é muito importante ligar a minha componente mais prática de trabalho a uma área de investigação. É muito interessante porque se criam pontes entre estes dois mundos e ambos ganham.
De que forma a arte surgiu na sua vida? Sempre foi uma pessoa ligada à cultura?
A cultura teve sempre presente de certa forma e partir de uma determinada idade mais adulta percebi que a minha vida iria passar por trabalho nesta área. Foi uma coisa que foi amadurecendo em mim e que foi ganhando força e lógica, transformando-se numa certeza cada vez maior. Percebi que o meu rumo de uma forma ou de outra, independentemente de estar a estudar Economia, Direito ou Artes, passaria por estar ligado à cultura.
Mas de onde surgiu esse interesse? Foi curiosidade ou tinha o hábito de ir ao teatro ou cinema com a família, por exemplo?
As pessoas crescem sempre a partir de influências, de coisas que nos rodeiam, às vezes pequenas e simbólicas, umas que nós nem sequer conseguimos explicar muito bem e são caminhos que se vão criando. Os ecossistemas onde nós estamos e os nossos círculos de amizades, familiares tudo isso tem a sua importância nesse sentido.
O que é que mais o apaixona nesta área?
Gosto de coisas que se complementam, o lado da criação. Poder perceber como é que a criação artística parte de um ponto de produção e depois chega a um ponto de receção, ao público. Como é que as pessoas como eu trabalham como mediadores de lugares e criação cultural e como é que depois o nosso trabalho pode ser um trabalho de conduta, de ligação entre pessoas que têm interesse em cultura. Ou até pessoas que não têm interesse em cultura, mas nós acreditamos que podem ter e trabalhamos para isso. O nosso trabalho é de interpretação daquilo que achamos que é interessante e de criação de lugares de fruição cultural, que tanto pode ser uma instituição como o Batalha ou um café. Há muitas formas de viabilizar a cultura e é isso que realmente me apaixona, é servir como interlocutor.
Explique-nos de forma breve que trabalhos foi desenvolvendo como curador ao longo destes anos.
Este trabalho consiste em pesquisar temas e perceber quem trabalha esses temas. Como é que os artistas produzem e depois conseguir tornar a criação lógica a partir de determinadas ideias e criar contextos para que depois chegue a um público. É organizar um conjunto de ideias a partir da criação artística, filmes ou performances nas mais diversas áreas, e perceber como se consegue pegar naquilo que é realizado por artistas e criar contextos em que o público consegue aceder a essas criações.
Qual foi para si até hoje o projeto mais desafiante em que esteve envolvido?
Talvez o Batalha seja o mais desafiante até agora e acho que quando comecei a trabalhar em Londres sem rede e sem apoio, a todos os níveis, seja familiar ou financeiro, também foi um momento muito duro. Foi difícil conseguir criar um caminho numa cidade desconhecida e agora o Batalha pela complexidade que foi de abertura e de início de uma instituição nova, é uma experiência quase que irrepetível.
Como é que recebeu o convite para ser diretor artístico do Batalha?
Com responsabilidade e felicidade. Aceitei o convite porque é a minha área de estudo, investigação, que eu trabalho quase desde a adolescência e na cidade em que eu também já trabalho. Gosto de trabalhar no setor público, para o município, enquanto profissional aquilo que fiz foi dinâmico [Guilherme Blanc já foi responsável pelo Departamento de Arte Contemporânea e de Cinema da Câmara do Porto], por isso, achei que tinha alguma coisa interessante a propor.
No fundo também aceitei porque é a minha cidade e o Batalha era uma instituição que faltava do ponto de vista de missão pública e daquilo que pode ser o serviço cultural do município e portanto encarei o convite com muita pertinência.
Sente a responsabilidade pelo facto de ser um espaço há muito ansiado pelos portuenses e não só?
Sinto claro e toda a equipa também. É um trabalho muito delicado e muito afetivo, que nós acima de tudo, aquilo que queremos construir no Batalha é um lugar de grande conforto para as pessoas. Muito mais do que se as pessoas conhecem os filmes que estamos a programar é que as pessoas entrem no Batalha e que se consigam sentir bem aqui. Que sintam que é uma casa aberta a toda a gente, onde podem ver filmes ou fazer outras coisas, mas que sintam o sentido de comunidade. Aqui podem conhecer outras pessoas, ver filmes clássicos e surpreenderem-se com outros que ainda não conheciam e acima de tudo, independentemente daquilo que façam, que consigam sentir-se bem.
Dos vários projetos para o Batalha qual gostaria de destacar?
Essa pergunta é difícil porque estive envolvido em todos eles, mas posso destacar as sessões de cinema mais clássico que temos semanalmente, uma de cinema internacional e outra de cinema português. Temos também filmes que talvez vão surpreender as pessoas, que são mais contemporâneos e esse tipo tipo de cinemas andam aqui sempre lado a lado. Isso permite às pessoas conhecer diferentes períodos do cinema e formas de trabalho dentro da área, de forma a explicar que o cinema é muito diversificado e uma área muito grande, que dentro dela cabem muitas maneiras de fazer. O que nós queremos aqui é que as pessoas não tenham uma visão limitada do cinema e que possam também conhecer coisas novas, aprender e surpreender.
O que seria para si sinónimo de sucesso?
É sentir que estamos a construir, que conquistamos públicos e criamos espaços de conforto aqui. Podem ser diferentes entre si, não tem de ser um espaço de conforto, podem ser vários, porque há pessoas que gostam mais de um certo tipo de cinema e percebem que há um espaço para elas. Outras gostam mais de outro de tipo de cinema e também têm um espaço para si, e no fundo, achamos que isso é que deve ser uma instituição cultural. Um lugar cívico, aberto, que não discrimina, onde as pessoas podem encontrar formas de conforto diferentes e onde se sentem acolhidas. Se as pessoas sentirem que aqui há um cuidado com elas, acho que o nosso trabalho bem sucedido. São coisas que não se conseguem criar de um dia para o outro quando se abre uma porta, é um caminho que consideramos estar a conseguir fazer, mas é um trabalho diário.
Qual o feedback que têm recebido até agora?
É um feedback bonito, as pessoas estão muito felizes por entrarem no Batalha, por verem o espaço, as exposições e os filmes que gostam ou então outros que não gostam tanto e perceberem que amanhã há outro filme que podem ver. Sabem que têm condições de acesso boas, mesmo a nível económico, e notamos de uma forma geral que há entusiasmo pelo facto de ser uma instituição nova na cidade, que está de portas abertas e que é disponível. Também há pessoas perceber “o que é isto” porque é o mesmo Batalha, mas é novo e, por isso, tentam entender o que é afinal e em quê que consiste e nós estamos aqui para esclarecer. Aqui podem ir ao cinema, podem tomar um café, ir à biblioteca e é isso que queremos que as pessoas percebam.
Em que é que o Batalha se diferencia dos restantes espaços culturais da cidade?
Desde logo é necessário distinguir entre os espaços públicos e privados. No que toca a instituições públicas não há mais nenhuma, no Porto, na área do cinema e era uma coisa que a cidade queria há muito tempo. Aliás em Portugal só há mais uma que é a Cinemateca Portuguesa, portanto, estamos a atuar numa área muito particular, que é a do cinema e numa instituição pública. Tendo isso em conta existe uma enorme diferença do que fazem os nossos vizinhos e o Teatro Nacional de São João faz, e aí existe logo uma relação de complementaridade. Relativamente aos projetos que não são públicos tentamos ajustar àquilo que faz, por exemplo, o Cinema Trindade, ou as multiplexes que fazem estreias de filmes novos e aqui não, fazemos outras coisas. Mostramos cinema novo, mas que não estreou, acolhemos os festivais ou mostramos cinema clássico.
Como é que descreve o panorama cultural neste momento na cidade Porto?
Intenso, rico, estimulante, em crescimento e em mutação também porque o mundo está a mudar e o setor cultural muda também com ele. Ás vezes é a própria cultura que provoca a mudança no mundo, ainda que neste caso, talvez tenha sido mais o contrário. De repente vimo-nos todos expostos a um período de grandes tensões sociais e económicas e a cultura fica sempre muito exposta a essas mudanças também. O Porto tem um tecido cultural efervescente, jovem, em que estão a ser criadas muitas coisas novas e o nosso papel é estarmos muito abertos também ao setor e perceber como podemos criar canais de apoio.
De que forma é que o Porto o inspira no seu trabalho?
Inspira porque a cidade são as pessoas e nós trabalhamos para elas. Quando sentimos que as pessoas querem, que há pulsão cultural e que havia o desejo que o Batalha abrisse, isso é inspirador. Que as pessoas gostam de cinema, que queriam o Batalha cuidado, que há escolas de cinema novas e que há novas pessoas a fazer cinema, tudo isso é um contexto muito interessante para instituição como esta.
Para terminar, o que mais gosta na cidade?
O espírito e o sentimento da cidade. Acho que é único. O Porto tem um espírito cívico e cultural que é muito próprio. Consegue ser uma cidade generosa e ao mesmo tempo provocadora e isso é estimulante.