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Emília Silvestre: “Ser ator é 80% de trabalho, 10% de talento e 10% de sorte”

Emília Silvestre: “Ser ator é 80% de trabalho, 10% de talento e 10% de sorte”

Natural do Porto, Emília Silvestre é uma das atrizes mais conhecidas e acarinhadas do público português. Com uma carreira artística que transcende gerações, transporta na bagagem a força e a sabedoria de quem já deu a cara, a voz e a vida a inúmeras personagens. Muitas delas que permanecem, ainda, na memória de todos os que a seguem. Mas, Emília Silvestre não é só a atriz que se apresenta diante do público. Por detrás, está todo um trabalho de atores, encenadores, realizadores e tantos outros técnicos, muitas vezes pouco valorizado, mas essencial para que seja possível “encarnar” verdadeiramente a personagem. Um trabalho que a atriz tão bem conhece, uma vez que também ela é encenadora e co-diretora artística do Ensemble – Sociedade de Actores, companhia portuense criada em 1996, da qual é um dos elementos fundadores.

Passeio das Virtudes, Livraria Lello, Jardim da Cordoaria, Serralves, Parque da Cidade ou Teatro Nacional São João (TNSJ). Seria, certamente, num destes sítios, os eleitos por Emília Silvestre no Porto, que nos teríamos encontrado, não fosse a situação de pandemia de covid-19, que obrigou, também a equipa VIVA!, a manter o distanciamento social e entrar em modo “teletrabalho”. Assim, falamos com a atriz à distância de um monitor, mas, nem por isso, foi impossível perceber o ser luminoso e genuíno que é, e, sobretudo, o amor que sente pelo palco, com destaque para o de teatro, onde tudo começou, e que a apaixona verdadeiramente. Afinal, como salienta, é o teatro que permite “as experiências, a improvisação, os erros e o amadurecimento na construção do espetáculo”.

Tudo começou no Teatro Experimental do Porto, ainda “muito novinha”, quando foi convidada para entrar no primeiro espetáculo pós 25 de abril da companhia. “A Excepção e a Regra”, de Bertold Brecht, assim se intitulava a peça, que a faz recordar “um tempo de novidades, de rebuliço, de alegria, de felicidade constante”. Durante os anos que se seguiram fez outros espetáculos na companhia, sem nunca se descuidar da importância dos estudos, mas a verdade é que a paixão pela representação surgiu apenas mais tarde, por volta dos 18 anos, quando percebeu “intimamente” que era aquilo que queria fazer para o resto da sua vida. “Fui crescendo em cima das “tábuas” – como costumamos chamar ao palco – e só depois tomei consciência de que nunca mais queria ser outra coisa que não atriz”, revela. Um testemunho, contado na primeira pessoa, sobre quem é a atriz e encenadora Emília Silvestre…

O que sentiu na primeira vez que se estreou como atriz?

A minha primeira experiência num teatro “a sério” aconteceu numa idade improvável… Tinha 13 anos e a Seiva Trupe precisava de uma miúda para entrar na primeira produção da companhia, a peça infantil “Musicalim na Praça do Brinquedos”. Por acaso, falaram ao meu pai – que era ator na companhia do TEP – e ele levou-me ao primeiro ensaio, a ver se eu “servia”. E lá fiquei! Lembro-me de me divertir muito a fazer os espetáculos com a plateia cheia de crianças. No fundo, não era muito diferente de brincar no sótão dos meus avós, algo que eu fazia com muita frequência.

No seu percurso profissional, já conta com inúmeras peças de teatro, várias produções televisivas e, inclusive, de cinema. Destes três “palcos”, qual é o que mais a apaixona?

Eu gosto muito de fazer televisão e de fazer cinema, dos desafios, especificidades e tempos próprios de cada um destes “palcos”. Gosto do que os distingue: a urgência mais própria da televisão e o tempo que se esquece e dilata no cinema, em busca do momento certo, da luz ideal, dos pequenos pormenores. Mas, o teatro continua a ser a minha maior paixão! É um lugar físico e espiritual! De pessoas! De comunhão! Adoro quando começamos uma nova produção e nos juntamos todos, elenco, encenador, criativos e técnicos, numa sala de ensaios: o entusiasmo, a paixão, a brincadeira, o prazer de estarmos todos juntos com o mesmo “material” na mão, a desbravar, a descobrir, a questionar, a surpreendermo-nos, a apaixonar-nos por aquelas palavras e aquelas personagens que o autor criou. Adoro o tempo que o teatro nos dá para as experiências, a improvisação, os erros, o amadurecimento na construção do espetáculo. Adoro quando passamos para o palco, onde sinto mais medo e mais conforto. E adoro o público, porque estamos ali, frente a frente, em carne e osso, sem rede, num momento inesquecível porque irrepetível!

Qual foi a peça e a personagem que mais a marcou no seu percurso de atriz?

Cada uma é diferente, não só pelas circunstâncias em que é feita, a equipa que se junta para trabalhar, o momento em que eu estou. É também diferente se se trata de um monólogo ou não. Mas se me pergunta em relação às mais difíceis foram, sem dúvida, as de Samuel Beckett, o “Não Eu” e o “Ah, os Dias Felizes”. Mas depois penso no Shakespeare, no “Hamlet” ou no “Macbeth” que fiz recentemente… Ou nos Molières que fiz no Ensemble e na “Primavera Selvagem” que adorei fazer e que era uma personagem fascinante, mas tão complicada e difícil! Eu tenho a sorte de ter podido representar grandes personagens femininas da dramaturgia clássica e contemporânea. O mais incrível é que nunca fui eu que fiz as escolhas… De alguma maneira elas vêm ter comigo e, por isso, sinto que tenho muita sorte.

O que significa para si ser atriz?

Ser atriz é ser portadora de palavras, ter consciência do lugar que o seu papel tem na encenação e no espetáculo e ser capaz de transmitir ao público uma enriquecedora experiência de sentidos.

Nos dias de hoje, em que lidamos com bizarrias tipo “pós-verdade” e falsidades que se disseminam a uma velocidade vertiginosa, o papel do teatro é servir-nos de âncora. Ao expor preocupações e inquietações universais sobre o mundo em que vivemos, o teatro ajuda-nos a questionar, a refletir, a focar o nosso pensamento no que verdadeiramente importa.

Qual é o grande desafio de um ator?

É ser uma espécie de compositor textual, visual e sonoro do seu próprio jogo em cena tendo sempre em mente a comunicação com o público. Para isso, deve ser altamente competente e qualificado, exigente do ponto de vista técnico e estar em permanente desassossego.

As chamadas “borboletas na barriga” continuam a existir sempre que sobe a um palco?

Sempre e cada vez mais! É uma coisa que não melhora com a idade e experiência, antes pelo contrário. Sofro horrores antes de entrar em cena, por isso, tenho uma espécie de ritual de concentração: o texto anda sempre na minha cabeça durante o dia e, à noite, quando chego ao camarim, volto a folhear todas as páginas da peça, a relê-las, a focar-me na “viagem” que vai começar…

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Pisar os palcos portuenses e estar diante do público do Porto é, de alguma forma, mais especial?

Nós dizemos sempre o mesmo: o público do Porto é reservado, mas especial. Mesmo que não se dê conta de todo o trabalho que está a montante do espetáculo que está a ver, ele sente e valoriza quando os atores os convencem com a verdade nos gestos, na voz e na expressão de pensamentos e sentimentos. É gente sincera e genuína, mas acima de tudo, é generosa e tem o coração na boca e nos aplausos quando gosta do que vê.

Que significado tem o TNSJ para si? O que sente quando pisa este palco?

É, verdadeiramente, a minha casa e a minha segunda família! Acolheu-me de braços abertos há 24 anos e, desde então, sinto-me bem-vinda, acarinhada e protegida por todas as pessoas que lá trabalham ou trabalharam. É o paradigma do que deve ser um teatro nacional de nível europeu: o cuidado e rigor obstinado na criação e na produção são uma verdadeira escola aberta a todos, público incluído. E é o melhor palco do mundo! Quando tive a sorte de entrar naquele palco vazio, pela primeira vez, e olhei a plateia iluminada fiquei tomada por uma emoção indescritível… sente-se uma espécie de abraço na relação do palco com a plateia.

Presumo que, em alguns momentos, já tenha precisado de esconder o sotaque do “Puorto”. Como foi, ou ainda é, esse desafio?

Como comecei muito novinha a minha formação passou logo também por aí, ter cuidado com o sotaque. Eu adoro sotaques e, então, o do Porto é extraordinário. Tem uma prosódia maravilhosa, uma riqueza de vocabulário e um humor desarmante como não há outro. Sempre que posso adoro falar à moda do Porto! E, muitas vezes, para “espantar” o medo e o nervosismo antes das estreias, digo o meu texto com sotaque e rio desalmadamente com o efeito que produz. É uma forma de libertação! E fico “cuma fezada de que bai correr bem, carago”.

Como vê atualmente o teatro, a ficção nacional e o cinema?

A construir um país melhor. A lutar contra a ideia de que tudo é mercadoria. A desesperar por ainda não ser reconhecida a coragem, a entrega, o valor e a abnegação. A dar abraços e beijos e risos e lágrimas de empatia e solidariedade em tempos estranhos de distanciamento social. A resistir, a reinventar-se, a seguir caminho.

Em que palcos ou ecrãs poderemos ver a Emília Silvestre este ano? E no próximo?

Devido ao confinamento que estamos a viver, a minha companhia – o Ensemble de Actores – está a reagendar a programação, que tinha previsto estrear nos meses de maio e julho, para o segundo semestre do ano. Tenho previsto estrear em setembro a peça “Vivo ama Morta,” no auditório da Lusófona e ir a Braga, ao Theatro Circo, e a Viseu, apresentar “A Grande Vaga de Frio”, ambas produções do Ensemble. Em novembro estarei no Teatro Nacional São João com a peça “O Balcão” de Jean Genet, um convite do encenador Nuno Cardoso e, em dezembro, vou a Vila Real com o “Vivo ama Morta”. No próximo ano, em janeiro, estarei de novo no palco do TNSJ para estrear “As Três Irmãs”, em abril vou estar no Teatro Carlos Alberto com a peça “Jacques ou la Soumission” e também irei estar em Viseu, numa parceria com a Câmara Municipal, numa nova encenação do Ricardo Pais, tudo isto criações do Ensemble. No cinema, há-de estrear o filme “Surdina”, do Rodrigue Areias e “Dulcineia” de Artur Serra Araújo, ambos produção do Bando à Parte.

O que é que ainda gostava de fazer enquanto profissional?

Habituei-me a não fazer muitos planos para não ter de lidar com a pena de não os ver tomarem forma. Mas, como adoro atores e gosto muito de assistir às escolhas e processos obscuros e sinuosos de cada um na construção de personagens, gostava de voltar a dirigir um espetáculo. No ano passado dirigi “Émilie” e “Voltaire”, do Arthur Giron, e foi uma delícia.

Que mensagem gostaria de deixar aos atores, em particular à nova geração que se forma?

Que não desistam, que trabalhem muito, estudem muito e sejam sempre inquietos e insatisfeitos. E mantenham isso pela vida fora. Ser ator é 80% de trabalho, 10% de talento e 10% de sorte, portanto, não cedam às desilusões, aos falhanços, às humilhações e aos que anunciam a desgraça. Concentrem-se no que é verdadeiramente importante: o teatro precisa de sangue novo, do convívio e partilha de saberes entre gerações! É só respirar fundo, erguer a cabeça, sorrir e seguir em frente…

Fotos: Cortesia de Emília Silvestre

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