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Recheio 2024 Institucional

Ana Aragão

Ana Aragão

A VIVA! Porto esteve à conversa com Ana Aragão. Trata-se de um dos nomes mais sonantes da arte em Portugal e nasceu no Porto. Num percurso com vários apontamentos de brilhantismo, já expôs a sua obra em várias partes do mundo, tendo chegado inclusive a sair no ilustre jornal “The Guardian”.

Desde aquilo que já fez, aos planos que tem para o futuro, Ana Aragão deu-nos a conhecer melhor a sua alma de artista que a ninguém deixa indiferente.

Não se define como uma “arquiteta de verdade nem apenas uma ilustradora”. Sendo assim, por palavras suas, como é que se definiria?

Gosto de não encaixar numa definição; isso permite-me ter mais liberdade. Dizer que sou
uma coisa é muito definitivo, pois como diz a Alice, “eu sabia quem era esta manhã, mas
mudei algumas vezes desde então”. Se o meu trabalho não é uma reclamação de
liberdade, então deixa de fazer sentido. Gosto de pensar o tempo, os dias, como espaços.
Espaços que precisamos de ir conquistando com o corpo, com a memória, com a coragem,
com a imaginação, com violência. À habitual questão “o que fazes?”, eu respondo
invariavelmente “faço desenhos”. Também gostava que a minha short bio fosse apenas:
nasceu, fez desenhos, morreu.

A Ana tem um atelier de bastante sucesso em nome próprio. Na sua opinião, quais
são os grandes desafios de dar a cara por um projeto deste cariz?

Como todos os projectos que encabeçamos em nome próprio, talvez o maior desafio seja
separar a vida profissional da vida pessoal. Porventura impossível. A minha cabeça está
sempre a inventar problemas de trabalho e a resolvê-las, é uma forma de estar. O atelier, —
embora dito dessa forma pareça algo externo a mim —, é mais um prolongamento do meu
pensamento e da procura de uma ética e estética, da procura de um método (e poderia
alongar-me muito nesta ideia). O atelier enquanto empresa é uma espécie de montra
necessária para poder viver e pagar contas com esta espécie de profissão (que consegue
ser muito ingrata), mas é também a minha ideia de refúgio, de “Great Escape”, como na
música de Patrick Watson.

Recentemente, Mark Zuckerberg, criador do Facebook, disse que privilegia
conhecimento prático em detrimento de um grau académico, ainda que os dois não
se anulem necessariamente. Tendo a Ana feito formação na FAUP, diria que foi uma
passagem essencial ou o que importava já vinha consigo?

A passagem pela FAUP foi um momento fundamental na minha aprendizagem e sem essa
parte da minha formação eu não poderia fazer aquilo que faço hoje. Nos primeiros anos da
Faculdade, desenha-se muito à mão. Os desenhos técnicos eram inteiramente feitos sobre
folha vegetal, com as canetas rotring, que eram tão frágeis quanto poderosas. Nesses anos
fui descobrindo o poder do desenho. O ensino do desenho à vista — do espaço, da cidade,
de modelo nu, etc. — fez-me aprender a ver, até porque era extremamente exigente. Tive a
sorte de ter professores excelentes, que me ensinaram que aprendemos fazendo. Um curso
de desenho que fiz na FAUP chamava-se precisamente “desenhar desenhando”, que é um
elogio ao exercício prático de fazer. Só se aprender a desenhar desenhando, como com
quase tudo o resto.

Por falar em percurso académico, sempre soube que a sua paixão envolvia a
arquitetura? Ou foi um amor que foi adquirindo com o tempo?

A arquitectura nunca foi, e ainda não é, uma paixão minha. E nunca soube que queria
estudar arquitectura. Fui lá parar por mero acaso, pela minha muito limitada capacidade de
planear coisas e inteira irresponsabilidade. Sabia que gostava de desenhar, e sabia que em
arquitectura se desenhava, mas não fazia ideia do que era arquitectura. E ainda hoje tenho
dúvidas. Talvez por isso esse seja o tema central (visual) mais identificável e constante no
meu trabalho (visível). Tenho gosto por arquitectura, mais pelos projectos do que pelas
obras em si. Gosto de investigar o pensamento e a lógica que levou a determinado
resultado. Encontro beleza nos espaços, mas a dimensão da cidade e do urbano toca-me
mais.

Seja em que profissão for, todos precisamos de referências. Quem é que mais a
inspira, na sua carreira profissional até ao momento?

Tenho muitos heróis. Saul Steinberg, um arquitecto que se tornou um dos mais importantes
ilustradores na América no século XX, é um deles. O corpo de trabalho deste desenhador
emociona-me profundamente. Madelon Vriesendorp, artista holandesa co-fundadora dos
OMA e com um trabalho ligado à arquitectura, é o-que-eu-quer-ser-quando-for-grande. A
sua invenção da arte misconceptual por oposição à arte conceptual, a ironia e sentido de
humor no seu trabalho são de uma inteligência feroz e dificilmente superável. Peter Cook,
outro “arquitecto de papel”, um dos membros do importante grupo inglês Archigram, tem um
percurso e um trabalho gráfico e conceptual apaixonante. E podia continuar por Hugh
Ferris, Quino, Ledoux, Piranesi, Escher, Duchamp, Batarda, Warhol, Hockney, etc., etc., etc.

Tem obras em vários espaços culturais de renome, entre os quais o Centro Cultural
de Belém ou o Museu Nacional Soares dos Reis. Depois da obra feita, consegue
apreciar o seu próprio talento, ou o olhar crítico impede-a de o fazer?

Mais ou menos. Não é muito fácil olhar para o meu próprio trabalho como se estivesse a
olhar para o de outras pessoas. No das outras pessoas, não reparamos no que não foi feito,
no que está mais mal feito, no que poderia ter sido. Perante o meu trabalho, consigo ver
sempre aquilo que ele não foi, aquilo que poderia ter feito, aquilo que podia ter corrido
melhor. Os trabalhos precisam de tempo e de separação. Precisamos de os esconder, dar,
vender, fazer desaparecer. E deixar passar bastante tempo, anos diria. Só com essa
distância sou capaz de olhar para algo que fiz e perceber se é bom ou é fraco, e sobretudo
se foi importante ou se não importou. E esta última parte não tem tanto a ver com a minha
percepção ou opinião, tem também a ver com imponderáveis factores externos.

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Por falar em locais de exposição, um deles foi o Japão. Artisticamente, como é que
se pensa uma exposição para um lugar tão diferente do nosso? Quais diria que são
as particularidades que o Japão tem nesta área, que nós não temos (tanto pela
negativa como pela positiva).

A exposição sobre o Japão não foi pensada para o Japão, o que é curioso, porque
geralmente penso para os sítios onde exponho. “No Plan for Japan” foi pensada para o
Museu do Oriente e tentou reflectir uma procura minha. Eu tentei construir um Japão
através das memórias que tinha dessa viagem. No fundo, eu tentava era não perder o
Japão para sempre. E não perder a memória (que é o que tento sempre, sempre). Os
desenhos acabaram por resultar num Japão freestyle mistura dos livros, dos filmes, da
iconografia, das fotografias, das recordações. Foi a partir dessa exposição que surgiu o
convite de a expor no Japão por ocasião da celebração oficial da Embaixada de Portugal no
Japão dos 480 anos da chagada dos portugueses lá. E aí, sim, aconteceu qualquer coisa
de mágico. A exposição mudou de nome para “My Plan for Japan” e foi apresentada na
Hillside Gallery em Tóquio. Houve uma peça que fiz propositadamente para essa efeméride.
Chama-se “O Auto da Barca do Efémero” e é uma reinterpretação contemporânea dos
biombos Nanban. Não sei se no Japão se vê as coisas de forma diferente, mas eu volto
sempre outra pessoa.

Outra distinção significativa que teve foi uma publicação feita pelo famoso jornal The
Guardian. Considera que esse tipo de “validação” é essencial na área em que se
insere?

É sempre bom vermos o nosso trabalho reconhecido, seja em que área for, embora o
reconhecimento seja algo muito relativo. Não só na minha profissão, mas também, tenho
que avançar com o trabalho e depois colher (quando colho) os frutos desse esforço.
Portanto, todo o meu trabalho é uma espécie de adiantamento, como se de um jogo de azar
se tratasse. Se eu não aposto, não há jogo. Ora, eu odeio gosto de jogos de sorte e não
sou crente, portanto o meu trabalho contraria a minha natureza: exige saltos de fé e é
instável. Eu também não gosto de instabilidade no geral, mas suponho que sem
precariedade e sem uma boa dose de irresponsabilidade não é possível criar algo que não
existia antes. Todos os reconhecimentos públicos são, portanto, um momento de luz sobre
aquilo que se passou na sombra. Ter uma fotografia minha no The Observer/The Guardian a
propósito de uma exposição importante em Londres é uma espécie de conquista, só que
com delay.

Pegando nas suas raízes, a Ana Aragão é do Porto. O que é que mais a apaixona
na nossa cidade?

É tão complicado falarmos daquilo que é nosso sem parecermos parciais e apaixonados e
por isso um pouco ridículos também. Acho que devemos ter um certo pudor em falar sobre
o que nos apaixona, porque vai soar a cliché. O Porto é a cidade que mais me intriga e
simultaneamente a que melhor conheço. E mesmo assim, falta sempre conhecer tudo de
novo, reconhecer. Vivo e trabalho no Porto e ainda assim tenho sempre muitas saudades
do Porto.

Em Matosinhos, tem neste momento a exposição “Cidade, Casa, Corpo – Os Mapas
e a Linguagem”. Sem revelar tudo, para quem ainda não teve a oportunidade de ver,
o que é que diria que lá pode encontrar?

É uma exposição feita com o Gonçalo M. Tavares que tem textos dele e desenhos meus.
Os meus desenhos são mapas, que são os documentos que mais me apaixonam. Diria que
uns são mais mapas que outros, mas todos são documentos que se assemelham aos que
usamos para nos orientarmos nas cidades ou para seguir instruções, com a diferença que
os meus não servem para coisa nenhuma. Quando olhamos para alguma obra que nos
interessa, o que está em causa não é o que está lá, mas aquilo que nós vemos lá. Uma
espécie de eco — como dizia Baldeweg, uma caixa de ressonâncias — que espelha mas
não revelar tudo, qualquer coisa fica fora de campo. Julgo que estes meus mapas
convocam, através da densidade de desenho e referências, algo que está ligeiramente
deslocado, algo que está fora dos limites do desenho. Tenho ideia, embora não tenha
provas, que estas obras falam de tudo aquilo que não está lá e de tudo aquilo que fica por
dizer.

Um projeto impressionante no seu trajeto envolveu a criação de mundos
imaginários. Face à sensibilidade que o trabalho artístico requer, diria que este foi
“só” um projeto de sucesso ou é, na verdade, uma espécie de modo de vida em que
muitos artistas se reveem?

Talvez a função dos artistas (esclareça-se: os artistas são os cronópios e não os famas)
seja essa, a de criar a hipótese de outros mundos. Repare que não acho que precisem de
criar os novos mundos, mas sim essa hipótese. Julgo que conseguimos sobreviver, quase
exclusivamente, graças a essa possibilidade. Utopia, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, O
Deserto dos Tártaros, A Terra do Nunca, Atlântida e tantos outros lugares, nascem da
contingência mas são absolutamente necessários. Não sei para que serve a arte
senão para construir, com rigor, a realidade desses ilusões. O mundo novo pode nem
sequer ser outro lugar, pode ser este sítio onde estamos e ao qual nunca tínhamos
dedicado a nossa atenção atenção.

Qual é o projeto que um dia gostava de fazer mas que ainda não teve oportunidade?

Acho que, sem pedir a ajuda do público, vou manter a resposta que dou há mais de 10
anos: fazer um desenho infinito. Não sei bem como, nem onde, e só vagamente porquê,
mas acho que um dia destes ainda acabo por conseguir.

Fotografias: Cláudia Rocha

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